“Queremos acrescentar vida aos anos e não apenas anos à vida”, diz Alexandre Kalache

Em entrevista ao Habitability, médico-gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional da Longevidade (ILC-Brasil) fala sobre a conquista (e os desafios) de envelhecer.

Por Marcus Lopes em 29 de abril de 2024 15 minutos de leitura

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Alexandre Kalache (Foto: Maurício Sarmento)

Em pouco mais de um século, a humanidade acrescentou cerca de 30 anos na expectativa de vida média da população. O Brasil acompanhou esses passos, mas ainda tropeça quando o assunto é oferecer melhor qualidade de vida, proteção social, econômica e dignidade às pessoas mais idosas. 

“Nós conseguimos a façanha de envelhecer sem ter enriquecido antes, na contramão da história dos países desenvolvidos”, explica o médico-gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional da Longevidade (ILC-Brasil), referência mundial em estudos sobre a longevidade. 

Entre 1995 e 2008, ele foi diretor do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), onde idealizou e conduziu diversos estudos e políticas públicas ligados ao tema do envelhecimento. Entre eles, o Programa Cidade Amiga do Idoso. 

A sociedade como um todo, alerta o gerontólogo, parece que ainda não entendeu que estamos envelhecendo cada vez mais, o que impõe uma série de desafios para as mudanças em decorrência desse processo, que vão ocorrer nos próximos anos, inclusive no mercado de trabalho. “Atualmente, 16% da população brasileira tem mais de 60 anos. Até 2050 nós vamos dar um salto e virar um grande Japão. Porém, vamos continuar com muita pobreza, pois as desigualdades sociais no Brasil só pioram”, diz Kalache.

Alexandre Kalache (Foto: Maurício Sarmento)

Apesar de todos os desafios presentes e futuros, que inclui preparar as cidades para acompanhar essa radical alteração demográfica, Kalache afirma que as mudanças são positivas. “A grande conquista social nos últimos cem anos foi o envelhecimento. É a revolução da longevidade”, explica o médico, em entrevista exclusiva ao Habitability

VOCÊ COSTUMA DIZER QUE PRECISAMOS TRAZER MAIS VIDA AOS ANOS E NÃO APENAS MAIS ANOS À VIDA.

Alexandre Kalache – Eu nasci em 1945, logo tenho 78 anos. Isso mostra que sou completamente diferente de qualquer ancestral meu. Até 1900, a expectativa de vida no planeta girava em torno de 30 anos. A mais alta do mundo era a da Alemanha, com 46 anos. Nesses últimos 120 anos, nós acrescentamos mais de 30 anos à expectativa de vida e não é só um aumento da expectativa de vida ao nascer. Isso quer dizer que acrescentamos anos à vida, mas não necessariamente vida aos anos. Há muitas pessoas que apenas sobrevivem em meio a tantos problemas, como a pobreza. Logo, o que nós queremos é acrescentar vida aos anos e não apenas anos à vida. 

A POPULAÇÃO BRASILEIRA ENVELHECE RAPIDAMENTE. O PAÍS ESTÁ PREPARADO PARA E ACOMPANHAR ESSE PROCESSO DE ENVELHECIMENTO DE MANEIRA CORRETA?

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Alexandre Kalache – O País não está preparado. Nós conseguimos a façanha de envelhecer sem ter enriquecido antes, na contramão da história dos países desenvolvidos. Até hoje, os países envelhecidos são os mais desenvolvidos, com mais de 30% de sua população com mais de 60 anos. O mais longevo é o Japão, com 33% de sua população sexagenária. Esses países primeiro enriqueceram e depois envelheceram. Nós, por outro lado, estamos envelhecendo com muita pobreza e miséria. 

QUAL NOSSA SITUAÇÃO HOJE EM RELAÇÃO AO ENVELHECIMENTO?

Alexandre Kalache – Atualmente, 16% da população brasileira tem mais de 60 anos. Até 2050 nós vamos dar um salto e virar um grande Japão. Porém, vamos continuar com muita pobreza, pois as desigualdades sociais no Brasil só pioram. Se você nasce e vive no bairro do Morumbi, terá uma vida mais longa e melhor em relação àquela pessoa que nasceu no outro lado do muro, em Paraisópolis (favela ao lado do bairro do Morumbi, em São Paulo). Se você nasce na (favela) Rocinha pode morrer de tuberculose amanhã. Mas se você nasce a 800 metros da Rocinha, em São Conrado, terá uma vida longa e muito melhor. No geral, o brasileiro está com uma expectativa de vida hoje de 77 anos. Quando eu me formei na faculdade a expectativa era de 57 anos. Quando eu nasci, era de 47. São 30 anos mais de vida, mas isso não significa com mais qualidade.

QUAIS OS MAIORES DESAFIOS PARA QUEM ENVELHECE, HOJE, NO BRASIL?

Alexandre Kalache – Em primeiro lugar, a falta de atenção da sociedade. Somos um país hedonista, em que você tem de estar bonito, não pode ter rugas no rosto, não pode ficar careca e tem de estar com o corpo sempre sarado. No Brasil, o velho é sempre o outro, não tem nada a ver comigo. Se não tem nada a ver comigo, não vou me preocupar com envelhecimento. 

EM RELAÇÃO AO BRASIL, VOCÊ LEMBRA QUE NO PAÍS EM QUE 27,6% DA POPULAÇÃO ENFRENTA ALGUM TIPO DE INSEGURANÇA ALIMENTAR É COMPLICADO PENSAR NO FUTURO. O PROBLEMA DA INSEGURANÇA ALIMENTAR É AINDA MAIS GRAVE NAS FAIXAS ETÁRIAS MAIS ALTAS?

alexandre kalache entrevista

Alexandre Kalache – Por incrível que pareça, não. No Brasil temos uma pensão praticamente universal que é paga quando chegamos na velhice. Sem entrar no mérito dos valores pagos, existe uma renda e é muito raro quem não a recebe. O segundo grande marco civilizatório é o Sistema Único de Saúde (SUS). Hoje, 83% dos sexagenários têm acesso a serviços de saúde exclusivamente por meio do SUS. Essas garantias, renda e saúde, são importantes. O SUS tem problemas, poderia ser melhor, mas, sem ele, teríamos tido o dobro de mortes na pandemia, por exemplo. É o maior sistema universal de saúde do mundo, algo para termos orgulho e defendermos com unhas e dentes. O SUS funciona para quem é rico e para quem é pobre. Então, para as pessoas idosas, a pobreza não é tão perversa como para outros grupos da população. 

OU SEJA, SOB ESSES ASPECTOS O BRASIL TEM VANTAGENS EM RELAÇÃO A OUTROS PAÍSES? PODEMOS OLHAR O COPO MEIO CHEIO TAMBÉM? 

Alexandre Kalache – Sim, há países de níveis socioeconômicos similares ao Brasil que nos invejam exatamente por isso: o fato de contarmos com um sistema de pensão e de saúde universal. Países muito mais ricos, como os Estados Unidos, não têm isso. 

O ESTATUTO DA PESSOA IDOSA, ANTIGO ESTATUTO DO IDOSO, COMPLETOU, 20 ANOS NO ANO PASSADO. QUAL AVALIAÇÃO O SENHOR FAZ DESSE PERÍODO?

Alexandre Kalache – O Estatuto da Pessoa Idosa é um marco civilizatório. Ele é requintado e sofisticado, mas precisa sair da prateleira. De que adianta termos um documento muito bom, caprichado e que, embora sendo uma lei, não é colocado em prática? Você chega em Brasília e há a percepção clara de que não caiu a ficha que o País está envelhecendo. O que é a coisa mais importante do estatuto? A questão do direito. Todos têm direito a envelhecer, à saúde, ao trabalho, educação, moradia e transporte. Esse é o significado do Estatuto da Pessoa Idosa. Por conta da pobreza e desigualdade social no País, temos um estatuto que fica parado e acumulando poeira na prateleira, o que não adianta muito para nós. Eu faço uma aposta: fazer uma enquete entre os membros do Congresso Nacional e perguntar quantos já leram o Estatuto da Pessoa Idosa. Não serão muitos.

QUAL O PAPEL DO PODER PÚBLICO NESSE PROCESSO? COMO DEVEM SER DIRECIONADAS AS POLÍTICAS PÚBLICAS, EM ESPECIAL NA QUESTÃO DA SAÚDE E DA PREVIDÊNCIA?

Alexandre Kalache
Alexandre Kalache (Foto: Maurício Sarmento)

Alexandre Kalache – O poder público exerce um papel fundamental de coordenação dessas políticas, que devem ser intersetoriais. Para que a pessoa possa envelhecer bem são necessários quatro eixos fundamentais. Em 2002, após anos de trabalhos, estudos e discussões envolvendo toda a sociedade, lançamos na Organização Mundial da Saúde (OMS) o marco político do envelhecimento ativo. Quais são os eixos desse marco político? Em primeiro lugar, a saúde. Mas a saúde no contexto do dia a dia, do cotidiano. Ou seja, como você trabalha, como e onde você mora, como vive, se locomove e como você interage com as outras pessoas. Quando acontece alguma coisa, aí sim é necessário um sistema de saúde para tratar o problema. Então, saúde vem em primeiro lugar. É necessário pensar na prevenção e no preparo do serviço de saúde para uma população cada vez mais envelhecida.

O segundo eixo fundamental é o conhecimento e a aprendizagem adquiridos ao longo da vida. Aprender sempre, desde criança até a velhice. As taxas de crescimento populacional estão caindo. O único grupo que continua a crescer é o formado pelos sexagenários. Em 2038, nós vamos parar de crescer, a população vai estacionar e começar a declinar no Brasil. No processo de crescimento econômico, nós, idosos, somos fundamentais para a produtividade e competitividade.

O MERCADO DE TRABALHO JÁ ESTÁ ATENTO A ISSO? 

Alexandre Kalache – Em alguns segmentos, sim. O único recurso que um país tem de forma natural, reciclável e perene não é a soja, minério de ferro ou energia eólica e solar. É gente! São pessoas. E pessoas velhas. Essas pessoas mais velhas são fundamentais em um país que parou de produzir gente mais jovem, como produzia há 25 anos. A sociedade e o mercado de trabalho terão de cultivar e atrair o único segmento que está aumentando, o dos idosos. Serão necessárias políticas de gênero para a inserção da mulher no mercado de trabalho. Serão necessárias creches para cuidar das preciosas crianças, que serão poucas por conta do envelhecimento. Teremos de investir muito no ensino, desde para as crianças e adolescentes, passando pelos jovens, adultos e ao longo de toda a vida, pois queremos que este idoso, essa pessoa que envelheceu, ainda possa ser produtiva e participar do mercado de trabalho. As empresas que se derem conta disso vão estar na frente, porque elas irão renovar o capital humano, que é o capital mais importante de qualquer sociedade. 

E A QUESTÃO DO DIREITO À PARTICIPAÇÃO?

Alexandre Kalache – É fundamental você ter direito a participar da sociedade. É o estatuto da pessoa idosa colocado em prática. Eu não posso envelhecer naquela palavra que eu abomino, que é o “aposento”. O Brasil criou essa linguagem, idadista por natureza, lá nos anos 30, quando a seguridade social chegou ao País. A palavra “aposentado” não tem equivalente em nenhuma outra língua. De onde foram tirar essa palavra? “Aposento” significa e remete àquelas casas antigas, no interior, sobretudo, onde, lá no fundo, existia um “aposento”, onde colocavam os velhos. Eu, quando envelhecer, quero ficar na sala da frente, ciente dos meus direitos. Isso significa direito à educação, trabalho, transportes e moradia. Mas tudo isso com dignidade, não da forma como estamos envelhecendo. Há ainda um outro pilar nesse processo que é a segurança e a proteção. O horror de envelhecer sem se sentir seguro, amparado, sempre foi e será o horror do envelhecimento.

ESSA FALTA DE AMPARO REMETE A OUTRO PROBLEMA, QUE É A SOLIDÃO DOS MAIS VELHOS. COMO ENFRENTAR ESSE OUTRO GRANDE DESAFIO? 

Alexandre Kalache – Basta olhar para o que aconteceu na pandemia. De repente, constatamos que quatro milhões dos idosos brasileiros eram solitários. Não é só isso. Há oito milhões de pessoas idosas que vivem apenas com o cônjuge. Estar no mesmo espaço com outra pessoa não significa que ela não está só. Porque pode estar com uma pessoa que deixou de ser o que ela era, em decorrência, por exemplo, de um derrame ou doença de Alzheimer. E sem um serviço de apoio. A pessoa vive com alguém que deixou de ser o que era por conta de uma enfermidade grave e, mesmo assim, não é considerada só. Essa questão da solidão é muito pesada e complexa. 

MAS É IMPORTANTE SABER DIFERENCIAR A SOLIDÃO DA SOLITUDE, CERTO?

Alexandre Kalache – Sim. A solitude é quando você escolhe um momento para estar só, em paz e consigo. Há pessoas mais e menos propensas a isso: se centralizar, internalizar em um espaço que é seu. Isso não traz sofrimento. Há pessoas que gostam e vivem muito bem na solitude. Há outras que são mais gregárias. A solidão é quando esse estado te afeta, dói. Às vezes, eu até digo que o brasileiro está precisando de mais solitude, ter mais introspecção, porque a nossa tendência é levar sem olhar, não revisar nem revisitar o passado. E daí nega-se o racismo, o sexismo, o LGBtismo, desconsidera a pessoa idosa e trata as mulheres como fêmeas. Foi até incrível que tinha de ser uma mulher feminista, a Simone de Beauvoir, que escreveu um dos livros mais inspiradores sobre velhice que é o “A Velhice”. Ela diz uma coisa fundamental, que é a ressignificação das nossas etapas de vida. Não pense você que vai chegar aos 80 anos vivendo como vivia aos 25. Ressignifique, revisite. Mas isso exige empatia e até auto empatia, de estar em contato com si próprio, ter a introspecção necessária para saber que é necessário se reinventar, revisitar valores. 

POR OUTRO LADO, SURGEM PROPOSTAS COMO A CRIAÇÃO DE VILAS E COMUNIDADES DE AMIGOS. SOLUÇÕES CRIATIVAS COMO ESSAS SÃO UMA TENDÊNCIA? 

Alexandre Kalache – É uma tendência. A pessoa adquire capital social. Quando traduzo o marco político do envelhecimento ativo, deixo claro: você tem de investir na saúde, nos conhecimentos, no capital social e na proteção que espera ter como segurança no final da vida. O capital social é fundamental. Pode chegar uma hora, não necessariamente na velhice, em que você pode precisar de quem te apoie, que cuide de você. As pessoas no Brasil não são acostumadas a pensar nisso. Há exemplos, em geral dos países mais desenvolvidos, que já envelheceram e tiveram mais tempo e recursos para pensar em alternativas. No Brasil isso está começando agora. Como existem as repúblicas de estudantes, agora existem as de pessoas idosas, com moradia. Eu moro em Copacabana. Há pessoas idosas, carentes e sem lastro financeiro, mas que moram em apartamentos enormes e que percebem: “poxa, se eu tiver gente morando aqui, vou matar dois coelhos com uma pedrada só: aumentar minha renda e ter companhia.” 

Há outra coisa muito comum: casais que resolvem morar na costa do sol, como ocorre na Europa e Estados Unidos. No começo é tudo muito bom.  Mas aí o casal não tem nenhum contato com a cultura local, com as pessoas. De repente, um dos dois morre ou tem uma doença incapacitante. E não há capital social. Porque aquele mundinho de festa e bebida barata não serve. Você precisa realmente de um lastro social, um capital social, de ter amigos e pessoas que você possa contar com elas na hora do aperto. Eu vejo vários exemplos aqui na Baixada Santista, por exemplo. 

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NO IMAGINÁRIO DA POPULAÇÃO, HÁ UMA PREMISSA DE QUE CIDADES MENORES, OU LITORÂNEAS, SÃO MELHORES PARA O IDOSO. É UM FATO? ONDE O IDOSO DEVE VIVER?

Alexandre Kalache – Existe uma expressão em inglês que diz para você envelhecer no lugar onde você sempre viveu. Se esse lugar te oferece as condições para sua qualidade de vida, fique ali. É ali que você conhece o dono da venda, o vizinho, onde você sabe a quem recorrer na hora do socorro. Quando você se muda para um lugar idealizado, há muitos riscos envolvidos. A pessoa mora em São Paulo e acha que, de repente, vai para o litoral e está tudo bem. Mas ela esquece um fator importante que é o capital social. Ela não conhece aquela história, aquela cultura. E muitas vezes acaba vezes sendo rechaçado porque é um velho, o idadismo. Então, fique atento. 

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AS CIDADES ESTÃO PREPARADAS PARA O ENVELHECIMENTO DA POPULAÇÃO? O QUE DEVE SER FEITO PARA QUE ELAS SEJAM MELHORES E MAIS AMIGÁVEIS AOS IDOSOS?

Alexandre Kalache – No geral, não. Em 2005, trabalhando para ONU na área da saúde, eu sabia que seria anunciado, dali a dois anos, que a população urbana mundial superaria a rural. Essa tendência de urbanização no século 21 é muito clara. O Brasil já tinha se urbanizado, e de forma caótica. Agora é a vez da Ásia e da África. Por outro lado, há a questão do envelhecimento. Naquela época eu já pensava: haverá cada vez mais pessoas envelhecendo nas zonas urbanas. As cidades estão preparadas? claramente não. 

Eu nasci e fui criado em Copacabana, que é o bairro mais envelhecido da América Latina. Resolvi fazer um estudo qualitativo com as pessoas envelhecidas e que moram em Copacabana, para saber por que moram, do que gostam, do que não gostam e o que seria melhor para elas. Esse estudo piloto foi apresentado no congresso internacional de gerontologia, em 2005. Descobrimos três coisas ouvindo os idosos: quem são os seus melhores amigos, quem são seus grandes inimigos e qual é a grande preocupação deles. Os melhores amigos são os porteiros dos prédios. Ele que está lá, monitorando tudo, avisando o filho sobre eventuais problemas e questões relacionadas aos idosos etc. É o porteiro que está sendo amigo.

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DIANTE DOS RESULTADOS DO ESTUDO, O QUE FOI FEITO?

Alexandre Kalache – Treinamos os porteiros, inclusive com cursos no Senac, para que eles tomassem um banho em gerontologia e aprendessem a lidar da maneira mais correta possível com os idosos que moram nos prédios onde eles trabalham. Eles são amigos, mas muitas vezes não têm o instrumental para saber o que fazer em determinadas situações. 

E quais os grandes inimigos? Os ônibus do transporte coletivo, que correm demais e sem oferecer segurança alguma aos passageiros. O ônibus é construído sobre um chassi de caminhão, muito alto, difícil para o idoso embarcar. Então, o grande amigo da pessoa idosa é o porteiro e o grande inimigo o transporte por ônibus. Já a grande preocupação é a insegurança nas ruas. 

DAÍ VEIO O PROJETO CIDADE AMIGA DO IDOSO?

Alexandre Kalache – Lancei essa ideia no congresso e várias pessoas nos procuraram demonstrando interesse. Conseguimos verbas do governo do Canadá e fomos para Vancouver onde fizemos uma força tarefa com planejadores urbanos e acadêmicos durante três dias para – com base naquilo que fizemos de forma improvisada em Copacabana – consolidar uma metodologia bem amarrada. O resultado é o Protocolo de Vancouver com oito dimensões. Entre elas, a cidade mais amiga do ponto de vista de transporte, moradia, acesso a serviços, inclusão e cidadania. Em outubro de 2007 foi lançado o guia da OMS da cidade amiga do idoso. Ou seja, completamos 17 anos. Hoje, na rede mundial da OMS há 1.553 cidades que aplicam a metodologia de Vancouver. Esse número é oficial porque sabemos que muitas outras cidades adotaram o protocolo, mas que não fazem parte oficial da rede da OMS por questões relacionadas à burocracia etc. Mas, por exemplo, apenas no Canadá são 980 cidades. Na França são 700 e na Espanha 320 cidades. Portugal está lançando agora um programa amigo do idoso, não só as cidades, mas o país como um todo. Na verdade, já atingimos mais de cinco mil cidades amigas do idoso, em um cálculo conservador. E eu tenho muito orgulho disso. 

E NO BRASIL, QUANTAS SÃO?

Alexandre Kalache – No Brasil, a situação é lamentável. Não conseguimos aplicar direito um projeto que nasceu aqui. Nós, do centro internacional da longevidade, fizemos com rigor o estudo em algumas cidades pequenas na Serra Gaúcha, Jaguariúna, no interior de São Paulo, São José do Rio Preto e agora vamos fazer em São Carlos. Belo Horizonte está com o projeto desenhado. O que precisamos é de financiamento. No governo Michel Temer, o então ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, criou um programa chamado Brasil Amigo do Idoso. Na ocasião, ele contou com pelo menos 1.100 prefeitos, que foram à Brasília tirar fotos. Não é isso que eu quero. Não é tirar foto e sim ações concretas. 

DESSAS 1100 FOTOS, QUAIS OS RESULTADOS PRÁTICOS?

Alexandre Kalache – Nada. Não aconteceu nada. 

OU SEJA, A CIDADE BRASILEIRA AINDA NÃO É AMIGA DO IDOSO…

Alexandre Kalache – Eu tenho esperança maior agora porque o Ministério de Direitos Humanos conta com uma secretaria especial de direitos das pessoas idosas. Mas conta com um orçamento mínimo. E não é só um ministério, é necessário articular com o Ministério da Saúde, da Educação, Ciência e Tecnologia, Cidades, enfim… 

EM RESUMO, O QUE SERIA UMA CIDADE AMIGA DAS PESSOAS IDOSAS?

Alexandre Kalache – É uma cidade onde você exerce o seu direito de participar da cidadania, onde a sua voz é ouvida e que atinge não só a zona residencial, a cidade formal, mas que vá para a periferia. Nós estamos agora começando na Rocinha, no Rio de Janeiro. O meu sonho é fazer um projeto “favela amiga do idoso.” Eu não quero apenas que o Leblon ou os Jardins sejam mais amigos dos idosos. Eu quero que (a favela) de Paraisópolis e a Rocinha também tenham projetos de cidadania para a população idosa. 

COMO OS EVENTOS CLIMÁTICOS EXTREMOS AFETAM AS PESSOAS IDOSAS?

Alexandre Kalache – Quando era diretor da OMS fizemos 16 estudos sobre situações de emergência, não só em termos climáticos, mas terremotos, guerras e tempestades de neve. Tudo isso vai atingir mais as populações mais vulneráveis, que são as crianças e os velhos. Basta ver o que está acontecendo em Gaza. Quando você é adulto, ainda tem uma força para escapar. É possível encontrar algum caminho. E se for idosa? O que vai acontecer neste século? Haverá mais mudanças climáticas e situações que vão atingir populações envelhecidas. A canícula (calor muito forte) me atinge muito mais do que a uma pessoa jovem. Se estiver muito quente ou muito frio na rua quando eu sair vou correr um risco de saúde muito maior. Isso é biológico. 

As mudanças climáticas estão levando a enchentes. Conheci uma senhora em Teresópolis que perdeu tudo em uma enchente. Ela conseguiu reconstruir, com muito esforço e ajuda dos filhos, que eram novos. Hoje ela mora sozinha, pois os filhos se mudaram. Ela disse: minha grande preocupação é que eu tive força e ajuda dos filhos para reconstruir na mesma área. Se acontecer de novo, não vou ter nenhuma força porque sou uma pessoa mais velha e só.

Multiplique isso por milhões de pessoas no Brasil. Porque uma certeza nós temos: é igual pandemia, não é sobre se haverá outra pandemia e sim quando haverá outra pandemia. Não é saber se haverá outro cataclisma climático, e sim quando. 

MESMO ASSIM, VOCÊ DIZ QUE A MELHOR COISA QUE PODE NOS ACONTECER É ENVELHECER. POR QUE?

Alexandre Kalache – Morrer cedo não é uma boa opção. Você quer viver o máximo possível, mas é aquela história que falei no início de acrescentar vida aos anos. A indústria antienvelhecimento e os charlatões alimentam o sonho fútil e inútil da juventude eterna. Não chegamos lá e acho que nunca vamos chegar, mas há bilionários americanos que querem congelar os seus corpos seduzidos pela ideia de viver para sempre e acordar daqui a cem anos. Imagine só acordar em um mundo muito estranho, que loucura é essa. Então eu digo: envelhecer é bom, morrer cedo é o que não presta. Mas temos de prestar atenção nas condições de vida desde que a gente nasce. A grande conquista social global nos últimos cem anos foi o envelhecimento. É a revolução da longevidade. Eu só espero que a gente não transforme essa grande conquista social dos últimos cem anos numa grande catástrofe social ao não sabermos o que fazer e não oferecermos condições para que essas pessoas possam viver bem.