A História sob os nossos pés

Mais de 15% dos sítios arqueológicos estão em áreas urbanas. Por meio da arqueologia urbana, eles revelam até mais de 6 mil anos de história escondidos pelos processos de urbanização.

Por Marcus Lopes em 7 de fevereiro de 2024 7 minutos de leitura

arqueologia urbana

A História de um país ou de uma sociedade pode ser contada por meio dos livros, documentos e até de maneira falada, com os fatos sendo passados oralmente de geração em geração. Mas ela também está mais perto do que imagina-se, bem debaixo dos nossos pés. Cabe à arqueologia urbana o minucioso trabalho de juntar as evidências para tentar desvendar os mistérios por trás de indícios históricos encontrados no solo das cidades brasileiras. 

Esses indícios podem ser desde pequenos fragmentos, um pedaço de garrafa ou cerâmica, por exemplo, até áreas inteiras que, durante décadas e até séculos, ficaram escondidas sob camadas de urbanização. Juntos, esses pedacinhos de história formam um mosaico que, graças aos arqueólogos urbanos, recompõem ou mesmo desvendam a trajetória de uma sociedade e até mesmo um país. 

Nos últimos anos, diversos sítios arqueológicos foram descobertos nas grandes cidades brasileiras, em obras como construção de linhas de metrô, no caso de São Paulo, ou de revitalização urbana de antigas áreas centrais, como ocorreu no Rio de Janeiro. Em todas elas, a arqueologia urbana entrou em cena para estudar e preservar os mais diversos materiais encontrados durante as obras civis. “As cidades antigas são grandes sítios arqueológicos, com várias camadas de ocupação. Esses sítios, quando localizados, podem remontar ao processo de formação dessas cidades ou mesmo das sociedades que viviam ali antes do nascimento delas”, explica Jeanne Crespo, diretora do Centro Nacional de Arqueologia, ligado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

Jeanne Crespo, diretora do Centro Nacional de Arqueologia (Foto: Leonardo Paes Troiano)

Mais de 15% dos sítios arqueológicos estão em áreas urbanas

O Brasil, segundo dados do Iphan, possui 2.973 sítios arqueológicos cadastrados. Deste total, 460 estão localizados em áreas urbanas. O estado do Rio de Janeiro concentra o maior número de sítios arqueológicos urbanos: 126 no total. Em seguida vem São Paulo (70), Rio Grande do Sul (57), Santa Catarina (36), Bahia (28) e Ceará (20). Os demais sítios estão distribuídos pelos outros estados brasileiros. “A arqueologia urbana é importante para entendermos todo o processo de povoamento e as sociedades que, de alguma forma, passaram e produziram naquele território”, completa Jeanne. É o caso de São Paulo, onde recentemente foram localizados sítios arqueológicos durante as escavações da Linha 6-Laranja do metrô. 

Uma das descobertas ocorreu no primeiro semestre de 2022 na Praça 14-Bis, no bairro central da Bela Vista, onde será construída uma estação da futura linha, que vai ligar o bairro da Brasilândia, na Zona Norte, à Liberdade, na região central, num total de 15,3 quilômetros de extensão. Os artefatos encontrados, como pequenos pedaços de cerâmica e vidro, podem ser vestígios de um antigo quilombo que existia na região, o Quilombo Saracura. 

Embora o Bixiga, como o bairro da Bela Vista é conhecido, seja marcado pela grande concentração da comunidade italiana, a região tem fortes laços com a comunidade negra, que a habitou antes da chegada dos italianos. Não à toa, uma das escolas de samba mais tradicionais de São Paulo, a Vai-Vai, que existe há quase cem anos, tem raízes na comunidade negra da Bela Vista. 

Sítio arqueológico encontrado em São Paulo, nomeado como Saracura (Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil)

“Naquele local há registros de ocupações em épocas distintas, como esconderijo de escravizados fugidos, um pouso para viajantes com suas tropas de mulas, grandes chácaras e outros tipos de ocupação”, explica Ingrid Hötte Ambrogi, professora de História na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em relação aos artefatos encontrados durante as obras na futura estação de metrô 14-Bis, que ficará no terreno da antiga quadra da Vai-Vai.

A professora Ingrid cita outra descoberta arqueológica, essa bastante curiosa, no terreno onde está a Casa da Marquesa, no Centro Velho. No século 19, a casa foi residência de Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, amante do imperador Dom Pedro I. “Artefatos considerados comuns revelaram o lixo na época de Domitila e gerou curiosidade sobre os hábitos cotidianos da famosa personagem histórica, servindo como indícios de seus hábitos de consumo. Por isso, esses objetos foram guardados e catalogados”, explica Ingrid.

A cidade de São Paulo foi pioneira nos estudos de arqueologia histórica. Os trabalhos começaram no início da década de 1980, por meio de um programa de colaboração técnica entre o Departamento do Patrimônio Histórico (DPH), da Prefeitura, e o Museu Paulista da Universidade de São Paulo (Museu do Ipiranga). 

“Nesse período, foram realizadas escavações arqueológicas nas sedes rurais paulistas, denominadas Casas Bandeiristas, e alguns imóveis no Centro Velho da cidade”, explica a geóloga com mestrado em arqueologia, Lúcia Juliani. O primeiro grande projeto de arqueologia urbana na capital paulista, explica a geóloga, ocorreu durante as obras de requalificação do Vale do Anhangabaú, entre 1989 e 1991, quando foi possível a recuperação de vestígios associados à evolução urbana de São Paulo. 

Lúcia Juliani, diretora de A Lasca Arqueologia (Foto: Divulgação)

“Graças à arqueologia urbana, pudemos conhecer como o ribeirão Anhangabaú foi domado para que a cidade se expandisse para além do Centro Velho. Retificado e canalizado, o córrego foi encontrado coberto por cerca de quatro metros de solo de aterro durante as obras de requalificação do Vale do Anhangabaú”, explica Lúcia, que é diretora de A Lasca Arqueologia, uma das principais consultorias dedicadas à arqueologia urbana no Brasil. No portfólio, estudos e trabalhos realizados em diversas metrópoles, como São Paulo/SP, Campinas/SP, João Pessoa/PB, Salvador/BA.

Segundo Lúcia, os sítios arqueológicos das grandes cidades permitem entender como e quando as cerâmicas de produção local, manufaturadas por indígenas e africanos, começaram a ser substituídas pela louça europeia, sob influência da Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra no início do século 19. Posteriormente, essas louças foram substituídas por peças de produção nacional, decorrentes do processo de industrialização em São Paulo. “Esses acervos arqueológicos também contam muito sobre as relações humanas, os agentes responsáveis pela manufatura desses itens, as mudanças culturais e as práticas de consumo da população urbana”, explica a diretora da Lasca.

Outras descobertas permitem recontar episódios importantes da própria História do Brasil, escondidas durante décadas por camadas de terra, asfalto e concreto. Um dos casos mais emblemáticos são as obras no Cais do Valongo, na região portuária do Rio de Janeiro. No final do ano passado, foram concluídas as obras de recuperação do principal cais de desembarque de pessoas escravizadas na América do Sul, no século 19. “Celebramos aqui um momento de consolidação do Cais do Valongo. Essa história começou a ser descoberta há dez anos e agora a gente vê a transformação desse espaço”, declarou, na ocasião da entrega das obras, o prefeito do Rio, Eduardo Paes. O Cais do Valongo foi descoberto em 2011, durante as obras de requalificação da região portuária do Rio, o Porto Maravilha. 

Cais do Valongo (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Trata-se de um sítio arqueológico dos vestígios do antigo cais de pedra construído para o desembarque de escravizados trazidos da África. O objetivo era retirar da Rua Direita, atual Primeiro de Março, no Centro do Rio, a chegada e o comércio das pessoas tratadas como mercadoria. Assim o Valongo tornou-se o principal entreposto de escravizados do país. A estimativa é que até um milhão de pessoas africanas escravizadas tenham passado pelo Valongo, a maior parte do Congo e Angola. 

Cerca de R$ 35 milhões foram investidos para a recuperação e transformação da região do Valongo em um centro de atração cultural, memória e turística, segundo a prefeitura do Rio. Em julho de 2017, o local foi considerado Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). “Por meio da arqueologia urbana, conseguimos recuperar um pouco dessas histórias, algumas muito tristes, mas que também podem mostrar resistências e novas oportunidade de a gente contar a história, inclusive a história oficial”, diz Jeanne, do Iphan, sobre a representatividade de locais como o Cais do Valongo. 

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O projeto de recuperação do cais do Valongo e a transformação em um local de turismo e memória, explica Jeanne, é um exemplo de integração positiva entre o sítio arqueológico e a vida na cidade atual. “O Valongo é um sítio de muita relevância. É um caso que mostra como podemos trabalhar essas imagens do passado e inseri-las em novas paisagens urbanas”, explica a diretora do Centro Nacional de Arqueologia.

Dinossauros no Triângulo Mineiro

Outros sítios arqueológicos urbanos espalhados pelo país jogam luz a episódios poucos conhecidos da nossa história. A cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro, abriga um dos mais ricos sítios arqueológicos do Brasil, incluindo fósseis de dinossauros. O acervo encontrado no município mineiro abrange mais de quatro mil espécies de diversos grupos de animais, alguns com registros fósseis de até 65 milhões de anos. No total, Uberaba possui 31 sítios arqueológicos, parte considerável deles localizados na zona urbana. 

Em São Luís, no Maranhão, um cemitério indígena foi descoberto recentemente durante a construção de um condomínio residencial para o programa Minha Casa, Minha Vida. As escavações revelaram fragmentos de esqueletos que podem ser de indígenas que habitaram a região há cerca de dez mil anos. A construtora MRV, responsável pela obra, catalogou 45 esqueletos e mais de cem mil peças arqueológicas, entre cerâmicas, objetos feitos de pedra e conchas. As escavações no sítio arqueológico Chácara Rosane, como foi batizada a área, devem continuar nos próximos meses.

Todo o trabalho está sendo feito por arqueólogos especializados e supervisionado pelo Iphan. A MRV está construindo um centro de curadoria, em parceria com a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) para preservação e estudo do novo acervo, que pode revelar muitos aspectos da pré-história brasileira.

Segundo o instituto de preservação, o sítio Chácara Rosane, datado de mais de 6 mil anos, é um testemunho da longa história de ocupação humana na ilha de São Luís, demonstrando um passado anterior aos registros históricos convencionais do Brasil. “Ele representa um marco da pré-história brasileira, remontando a um período da ocupação das Américas pelos povos sambaquieiros, ancestrais distantes e indiretos dos povos originários anteriores à chegada dos colonizadores”, explica o Iphan, em nota. 

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