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Abalando as estruturas: inclusão, diversidade e direitos humanos
Foi a partir de sua própria experiência como mulher, pobre e negra, que a mestre em ciência política Mércia C. Silva começou uma jornada sem volta para quebrar barreiras e mexer com as estruturas históricas da desigualdade.
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Paula Caires em 23 de julho de 2024 14minutos de leitura
Mércia C. Silva (Foto: Divulgação)
Mulher, nascida e criada em uma favela de Belo Horizonte/MG, Mércia C. Silva começou a sentir o peso da desigualdade social ao tentar entrar para o mercado de trabalho como estagiária de automação industrial – segmento da escola técnica do Colégio Técnico da UFMG (COLTEC), na área de física. Mal sabia que além de mulher e pobre, pesava contra ela mais um adjetivo: negra! Foi ao entrar no curso de Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP) que ela se percebeu muito diferente e como o diferente era tratado, o que a levou a fazer parte de diversas linhas de pesquisas na iniciação científica, dando-lhe a oportunidade de trabalhar com pessoas de referências no Brasil nos temas de racismo, discriminação, direitos humanos, diversidade e inclusão. Assim, a percepção dessa identidade negra foi sendo fortalecida, trazendo a reboque o foco que direcionaria toda a sua trajetória profissional em defesa da inclusão, da diversidade e dos direitos humanos.
Tornou-se mestre em Ciência Política e participou de um programa de intercâmbio, como fellow do Departamento de Estado Norte Americano Humphrey Fellowship Programa, via Fulbright. Ao retornar ao Brasil, passou a atuar com empresas brasileiras e de outros países do mundo, contribuindo para o melhor entendimento e avanço na gestão desses temas. Em 2013, como coordenadora de Políticas Públicas do Instituto Ethos de Responsabilidade Social, foi além neste propósito, colaborando para o direcionamento dos acordos e processos de criação do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e Infantil (InPACTO) – uma organização sem fins lucrativos que busca mobilizar empresas públicas e privadas, dos diversos setores, a fim de prevenir e erradicar o trabalho escravo e infantil em cadeias produtivas.
Internacionalmente, por meio da Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE) atuou em diferentes projetos executados em países da Ásia e Europa voltados para promover os direitos humanos e combater o trabalho escravo e infantil.
Atualmente, com sua própria empresa de consultoria, a ESG Fractal, tem contribuído com uma agência de desenvolvimento alemã para ajudar alguns setores econômicos a entender e implementar as mudanças necessárias para atender à nova legislação alemã, assim como também liderou e facilitou, como expert, ciclos de diálogo sobre a devida diligência em direitos humanos com a Embaixada da Comunidade Europeia no Brasil. “Meu foco é mediar conversas e ajudar as empresas a entender e a implementar políticas de direitos humanos e diversidade, porque conheço as dores”. Na entrevista que você confere a seguir, Mércia, que também é professora em cursos de pós-graduação, oferece uma visão humana, histórica e aprofundada sobre os desafios e avanços para uma sociedade mais diversa, inclusiva, com os trabalhos escravo e infantil erradicados.
No primeiro contato que tivemos, você se apresentou de forma muito objetiva, como parte de grupos sub representados. Poderia compartilhar um pouco da trajetória que te levou a essa clareza sobre sua identidade e te trouxe até aqui, em defesa dos direitos humanos, da diversidade e da inclusão?
Mércia C. Silva: é interessante essa pergunta porque faz parte da história da minha vida e de como e quando eu me descobri “não branca”, o que também reflete as relações sociais no Brasil. Eu nasci em uma favela de Belo Horizonte/MG, onde todos se viam como pessoas pardas, que tem a ver com a cor do cabelo e dos olhos. Mas onde também tinha pessoas como minha irmã, de pele extremamente branca e cabelo totalmente sarará e amarelo, pessoas com pele escura e cabelo liso, olhos verdes e castanhos, e o negro, que para nós era o pretoretinto com cabelo afro. Embora houvesse todas essas misturas e diferenças, nunca tinha me atentado a essas desigualdades. Primeiramente, porque não se aprende isso em sala de aula. Depois, porque vivíamos em uma ditadura militar. Então, democracia racial não era um tema. Mas quando fui crescendo, comecei a ter dificuldade de conseguir estágio, emprego… e eu sempre achava que era por ser pobre. Seguir com os estudos em física ou trabalhando como técnica de automação industrial tornou-se inviável. Achei que era por ser mulher e fui estudar Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) para entender aquilo tudo. Logo na primeira semana, o professor Paulo Sérgio Pinheiro, que é uma referência no debate da discussão racial, destacou o fato de haver apenas duas pessoas negras no curso. Todos me olharam porque uma delas, para minha surpresa, era eu.
Então foi já no curso de ciências sociais que você passou a se ver como uma pessoa com a identidade negra?
Mércia C. Silva: entrar em contato com essa situação em que eu era diferente me ajudou a pensar a questão da identidade e me levou à iniciação científica e a trabalhar com referências acadêmicas no tema. Mas isso refletia a situação do País,cuja classificação racial é complexa.Em uma pesquisa nacional em que a pergunta sobre a cor das pessoas tinha resposta aberta, foram mais de 150 respostas diferentes. A pesquisa mostrou que muitas pessoas se identificam com termos como “moreno” ou “pardo” em vez de “preto” ou “branco” ea maior diversidade de nomenclaturas estava entre os brancos.Isso reflete uma tentativa de branqueamento e a falta de espaço para discutir a identidade racial. E tinha ainda o viés do registro de nascimento, que já vinha com a definição da sua cor. Isso chamou a atenção do próprio IBGE, que fez um novo levantamento com uma nova pergunta, pedindo para as pessoas se classificarem em seis categorias – branco, pardo, moreno, preto, indígena e asiático. Nessa segunda fase, prevaleceram as classificações que usamos até hoje: Branco, Preto, Pardo, Amarelo e Indígena. O uso do termo NEGRO é uma classificação política e engloba as pessoas auto declaradas pretas e pardas.
Isso já foi um avanço para um melhor entendimento das nuances que compõem a população brasileira e as desigualdades que as acompanham?
Mércia C. Silva: a partir de como me classifico é que eu assumo uma postura política. Portanto, a autodeclaração é importante para entender a realidade e promover políticas públicas eficazes a partir de informações mais claras e transparentes, que permitam diferentes recortes.
Nos estudos feitos com relação à população brasileira, pretos, pardos e indígenas tinham quase a mesma situação socioeconômica em termos de indicadores sociais, como analfabetismo, desemprego e renda. Então adotou-se o termo negro como categoria de análise de estudo e de luta política, que incorpora os três grupos. Hoje o debate que se aflora é todas as nuances que compõem essa população, com a discussão do colorismo – sistema de classificação baseado no tom da cor da pele das pessoas. A partir de 1995 começa uma pressão maior da sociedade civil e do movimento negro. Tendo como chefe do poder executivo um sociólogo (Fernando Henrique Cardoso), começam a ser demandadas informações qualificadas, dados mais precisos, com série histórica e, principalmente, com o recorte de raça/etnia. Só a partir disso é possível pensar que pressão fazer para ter novas políticas públicas baseadas em dados, pressionar por mais e melhores leis.
E isso de fato avançou?
Mércia C. Silva: se olharmos para trás veremos diversas melhorias. Nós não tínhamos direito de ter conta bancária, enquanto não provássemos uma certa renda. Cada banco exigia uma renda mínima diferente. Até que o Governo Federal sob a gestão de Lula, determinou que a Caixa Econômica Federal abrisse contas para todos, independentemente da renda. Isso facilitou o acesso ao crédito e aos serviços bancários, evitando que as pessoas ficassem reféns de agiotas. Porque antes, quem precisava comprar algo parcelado e não tinha cheque, dependia de agiotas – pessoas que emprestavam folhas de cheque, cobrando taxas e juros abusivos por isso.
Uma das últimas legislações avançadas que conseguimos foi a igualdade salarial para empregos de igual valor para mulheres. Essa é uma convenção que o Brasil assinou há muitos anos, mas que não tinha sido implementada até agora. Recentemente, foi aprovada uma lei no Congresso (Lei nº 14.611/2023, conhecida como Lei da Igualdade Salarial), que estabelece diretrizes claras para empresas quanto à igualdade de remuneração entre homens e mulheres. O Brasil está adotando um sistema para criar esse entendimento, mesmo que seja de forma obrigatória.
Quais foram os principais pontos considerados na criação dessa lei?
Mércia C. Silva: vários aspectos foram pensados para a implementação, incluindo as obrigações das empresas em divulgar os dados, bem como a definição mais precisa sobre os vários elementos que compõem a lei e o que constitui trabalho de igual valor. O objetivo é garantir que as empresas cumpram o seu papel social e sejam eficazes no propósito de promover a igualdade salarial e combater a desigualdade de gênero.
E isso se desdobra para o mundo corporativo?
Mércia C. Silva: hoje há leis que obrigam as empresas a informar corretamente sobre seus colaboradores. Quando houve o acidente com o avião da Tam em 2007, em São Paulo, havia executivos de uma empresa que estávamos pesquisando e trabalhando conjuntamente. Perguntamos sobre o perfil racial dos colaboradores e a empresa não tinha. As informações eram preenchidas indiscriminadamente, como se todos fossem brancos, porque era assim que o grupo majoritário do escritório central se via e era visto. Só que entre as vítimas havia um executivo negro e isso criou um certo problema. Ou seja, os dados enviados para a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e para o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) não eram reais. Esse foi só um exemplo. Na minha jornada, atuando com especialistas e organizações de referência, participei dessa construção, buscando mobilizar as empresas para que elas tenham transparência e responsabilidade sobre as informações enviadas aos órgãos públicos e também publicadas em seus relatórios de sustentabilidade. Enquanto isso não acontece, não se consegue pensar e definir ações afirmativas, programas, metas e avaliações sobre inclusão e diversidade.
Como você mencionou, ter informações claras e transparentes é o primeiro passo, pois permite iniciar-se o debate. No entanto, há termos, como trabalho escravo, que são, de certa forma, um tabu dentro das empresas. Isso dificulta tratar o tema como devido?
Mércia C. Silva: já foi mais complicado. Hoje as empresas precisam falar sobre o tema e nomear o mesmo, pois é preciso mostrar o que fazem para prevenir e coibir a exploração de vulneráveis ao longo da cadeia produtiva. Mas ao longo dessa jornada, inclusivea Organização Internacional do Trabalho (OIT) percebeu que não havia adesão do meio empresarial quando o tema era trabalho escravo e trabalho infantil. Eram temas que causavam pavor. Então eles adotam como estratégia tratar o contraponto, o aspecto positivo e decidem colocar como discussões o trabalho decente e o trabalho digno, como forma de trazer o empresariado para a mesa. A OIT nunca abandonou ou negou os termos trabalho análogo ao escravo e nem o trabalho infantil, apenas encontrou um meio mais fácil de estabelecer esse diálogo
Como você vê a evolução das empresas em relação à diversidade e também aos direitos humanos?
Mércia C. Silva: as empresas estão começando a enfrentar esses temas, mas ainda há muito a ser feito. A inclusão de mulheres avançou mais rapidamente devido a políticas públicas e pressão social. No entanto, a questão racial ainda enfrenta resistência. As empresas precisam coletar dados e implementar políticas de diversidade de forma mais efetiva. A decisão de criar um programa e realmente fazer a inclusão deve vir da alta direção e chegar em todos os departamentos da organização. Somente com o apoio da alta direção e dos investidores é que a mudança começa a ser palpável. É um processo de construção que envolve mudanças culturais e a valorização da diversidade. As empresas precisam ir além e integrar a diversidade em suas estratégias de negócios.
Você classifica os níveis de maturidade em relação à forma como esses temas de diversidade e inclusão são tratados nas empresas. Quais são eles?
Mércia C. Silva: o primeiro nível para avançar para uma gestão integrada da diversidade são as ações afirmativas, que envolve a adoção de políticas que consistem em atrair pessoas diversas para fazer parte da organização. É a fase de “abertura de portas”, onde se busca aumentar a representatividade de grupos sub-representados. O segundo nível é a consolidação ou retenção desses talentos. Isso envolve a aceitação e a valorização da diversidade, promovendo uma mudança cultural e nas relações internas. Aqui, a diversidade começa a ser observada como um valor e seus ganhos começam a ser reconhecidos e compartilhado por todos.
O que caracteriza um nível mais avançado de maturidade na gestão da diversidade?
Mércia C. Silva: o nível mais avançado é o da gestão da diversidade, que vai além da quantidade e mobilidade de pessoas. Envolve avaliar o impacto da diversidade no produto, na relação com acionistas e fornecedores e na inovação dos produtos oferecidos. A diversidade passa a ser vista como uma fonte de riqueza e um diferencial competitivo. A maturidade na gestão da diversidade é um processo contínuo. Inserir uma pessoa em uma organização, na lógica de trazer diversidade, precisa levar em conta o fator tempo, pois tanto quem está chegando na organização, quanto aqueles que já estão lá, precisam de tempo para realmente valorizarem um ambiente diverso e obter as vantagens dessa diversidade. É necessário construir uma cultura inclusiva e valorizar continuamente os benefícios que a diversidade traz à organização. Sem uma mudança cultural, as políticas de inclusão podem levar ao isolamento e à falta de integração. A verdadeira maturidade só é alcançada quando a diversidade é plenamente aceita e valorizada em todos os níveis da empresa.
Estamos falando do desafio que é trazer esse tema para dentro da cultura organizacional. Mas há também a necessidade e a pressão para expandir a abordagem do tema para a cadeia produtiva. Como você avalia que está esse processo de gestão da cadeia produtiva?
Mércia C. Silva: temos atualmente uma proposta de lei no Congresso Nacional sobre responsabilização de empresas com relação à cadeia produtiva visando a implementação de programas de direitos humanos amplos, incluindo o combate aos trabalhos escravo e infantil, obrigando a devida diligência, entre outros.
Há 10 anos, a discussão ainda era muito incipiente. Mas quando criamos o InPACTO, instituto que liderei até 2022, a ideia já era fazer desse tema uma iniciativa apoiada e financiada por empresas, o que era uma inovação. Então tive a oportunidade de conhecer iniciativas em outros países e constatei que começavam a surgir diversas leis que obrigavam as empresas a olharem para a sua cadeia produtiva.
Como esse tema estava sendo tratado globalmente?
Mércia C. Silva: em 2015 a Califórnia aprovou sua lei, logo em seguida foi o Reino Unido e a Holanda. O Brasil começou a participar do debate internacional com a política pública de transparência, conhecida como “Lista Suja”. Fomos precursores quanto à responsabilização solidária das empresas sobre a violação de direitos, em especial a existência de trabalho escravo ao longo da cadeia: quando uma empresa compra de um fornecedor que viola a legislação, ela entra para a “Lista Suja”. Houve muitos questionamentos sobre essa política pública, mas a lista foi chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda há muitas demandas para que a legislação e outros instrumentos de aplicação da lei tenham maior objetividade. Além das pressões internas, há também a pressão internacional, a pressão da sociedade civil, da mídia…E o movimento internacional continua.A Europa discute uma nova lei agora sobre a devida diligência em direitos humanos e entrou em vigor neste ano a lei da Alemanha que obriga qualquer empresa que tenha sede no país, com mais de 3 mil funcionários, a informar tudo que ela está fazendo, mesmo em outros países.
O quanto já foi possível avançar para que essas informações realmente retratem a realidade? Você acha que temos um nível de assertividade para que haja clareza sobre esses dados e daí então se tenham ações mais efetivas de combate às violações de direitos humanos?
Mércia C. Silva: isso ainda precisa se consolidar e as empresas vão precisar mexer no sistema que elas têm. Assim como foi lá atrás, quando tiveram que mexer no sistema de classificação racial ou no sistema de registro de promoção e investimento para as mulheres. Elas também vão ter que integrar sistemas para que as informações de diferentes tipos se complementem. Porque o um sistema no jurídico, por exemplo, só olha a documentação, a parte legal, enquanto compras olha a qualidade do produto. São sistemas com metas e métricas muito diferentes. É como se o objeto em análise não fosse um só. Essa fragmentação precisa ser resolvida. Muitas empresas, grandes multinacionais, estão tentando resolver exatamente isso.
Como isso ocorre na prática?
Mércia C. Silva: em uma fazenda, por exemplo, tem cinco pessoas com carteira assinada que dão conta de x cabeças de gado, mas a fazenda tem 30 vezes mais cabeças de gado. Ou seja, aquela quantidade de trabalhadores formais (verificada em uma vistoria documental) não vai dar conta de cuidar de todo o gado, ou seja, eles teriam que ter mais trabalhadores. Se não formais, qual seria o outro formato? Isso abria muito espaço para riscos. Acontecia no setor têxtil também. A empresa contratava um terceiro para produzir um número de peças, considerando a quantidade de colaboradores, mas não levava em conta se aquele fornecedor vendia o serviço da mesma mão de obra para diversas outras empresas. As empresas não faziam essa análise do risco adequada e não implementavam medidas preventivas eficazes. Hoje elas já sabem que precisam estar atentas. Claro que falamos de grandes empresas. As médias e pequenas ainda estão em fases distintas e vão levar tempo para chegar em uma patamar de defesa de direitos humanos.
E isso acontecia no ambiente urbano, no centro de uma grande metrópole que é São Paulo. Isso quebra um pouco a ideia de que os trabalhos escravo e infantil ocorrem longe dos olhos da grande população?
Mércia C. Silva: há um mito por causa da palavra “escravo”. As pessoas a associam ao campo porque é de onde vem a escravidão. E ficamos parado nessa mentalidade narrativa histórica. Mas não tem trabalho escravo só no campo, nem só no Brasil. Precisamos mudar essa ideia de que somos o patinho feio do mundo. Esse é um desafio global. Você tem a mesma exploração de costureiras em Nova Iorque. Você tem exploração do trabalho escravo na indústria do turismo em Amsterdam. Você tem exploração do trabalho escravo em Londres, das pessoas que limpam os hotéis e em produtos que chegam no grande hospital público inglês, porque eles importam luvas de grandes produtores, na Malásia.
E tem todo esse universo que traz para o urbano e para todos o desafio: imagine-se em uma praia do Rio de Janeiro e vem uma criança vendendo picolés ou bebidas de grandes marcas e você compra. Então, temos que pensar, enquanto marcas e empresas, como podemos contribuir com a política pública para garantir a proteção dos direitos humanos. Provocar essa conversa é o papel social das empresas.
Pelo Mapa da Desigualdade, realizado pela Rede Nossa São Paulo, podemos notar uma relação direta entre localização de moradia, condição econômico-financeira e gênero, etnia e cor. As cidades refletem também as diversas facetas da desigualdade?
Mércia C. Silva: se pegarmos o histórico dos 380 anos de escravidão, os escravos libertos foram expulsos das fazendas, sem direito de acesso à terra porque esta era exclusiva para quem a explorava financeiramente. Eles não tinham direito nem de comprar terras para a sobrevivência, sob a justificativa de que não teriam condições de investir em produção em escala. Então eles vêm para o centro das cidades em busca da possibilidade de ter uma vida melhor, ter trabalho. Com o tempo, percebemos que as várias “reformas urbanas”, em sua maioria, acabaram por expulsar essas pessoas para favelas distantes, onde vão tendo menos acesso à educação, ao emprego e vai se perpetuando uma dinâmica de exclusão. Como é que a gente transforma isso? A cidade tem um papel social de garantir acesso à moradia, à mobilidade, à saúde e à educação. Tratar de todo esse pacote é um grande desafio.
Há caminhos nos quais podemos nos inspirar para superar esse desafio?
Mércia C. Silva: eu vi uma série inglesa que mostrava um retrato de como era a Inglaterra em 1920. Era um lixão, principalmente Londres. Em pouco tempo eles transformaram a cidade em um lugar totalmente diferente. Em Zurique, todos os rios foram limpos de 1970 até agora. Há exemplos inclusive na área de moradias, como em Singapura, onde eles construíram moradias e ofereciam acompanhamento social, e até exemplos nos Estados Unidos de limitação de crescimento às cidades.
A participação da sociedade civil é um caminho?
Mércia C. Silva: sabemos da dificuldade da participação cidadã, mas a sociedade civil brasileira, principalmente, tem fôlego. No caso do plano diretor, por exemplo, a gente precisa que a mídia divulgue, que vire algo fácil para a população, que seja simples de entender. A sociedade civil que está acompanhando essas discussões em âmbito público, tem como desafio fazer com que esse debate consiga alcançar a maior parte da população. As pessoas precisam se apropriar desses saberes e da cidade.
A sociedade civil está bem organizada, mas acho que houve uma acomodação. Temos, por exemplo, uma bandeira muito importante que é a da inclusão, só que há um gap enorme da relação desses grupos da sociedade civil mais especializados e detentores desses saberes com a população. Estamos nesse lugar, pensando em como é que a gente informa as pessoas sobre o seu direito. Sobre o que é uma política pública. Porque no contexto que a gente está hoje, a gente não está conseguindo atuar de forma eficaz para gerar uma mudança no sentido ou na direção que queremos.
Então, apesar dos desafios, nós temos institucionalidade, lei, uma sociedade civil organizada e a capacidade de fazer cumprir a lei. Por que não nos destacamos internacionalmente por esses aspectos?
Mércia C. Silva: temos muitos elementos que nos seguram no passado. Temos desigualdades, um histórico político carregado de muita corrupção e um sequestro desses espaços de decisões por parte de uma elite. Associado a tudo isso, temos o desafio cultural, que está totalmente embebido por uma lógica sexista e racista. O nosso histórico e o leque de violações de direitos humanos e de negação da cidadania é uma ferida aberta para a qual os remédios ainda não estão chegando ou não estão fazendo efeito. As pessoas que estão praticando as várias e correlacionadas violações têm em mente que aquelas pessoas – as outras/as vítimas – estão na condição que elas deveriam estar. Isso é o mais triste! Elas estão reproduzindo a lógica de sempre, de olhar para o outro e não criar empatia. De não pensar “e se fosse meu filho, meu irmão?”. Elas estão pautadas por uma lógica de culpar essas pessoas pela vulnerabilidade social em que elas se encontram, com justificativas geralmente associadas ao esforço individual, por exemplo, “que a pessoa não estudou”. No caso do trabalho escravo, muitas vezes escutamos do empregador, de que na casa das vítimas as condições são piores e chegam à justificativa de que, no final das contas, estão até ajudando, dando “emprego”. Mas na verdade estão reproduzindo uma lógica de hierarquia e exclusão. E esse é um processo difícil de ser quebrado. Mesmo aqui em São Paulo, um contexto urbano, desenvolvido, você encontra um monte de falas desse tipo. E essa mentalidade está presente até no nível de tomada de decisão do País.
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