Arquitetura humana do austríaco Hundertwasser da década de 70 é atual e urgente

Arquiteto, pintor, ativista e filósofo deixou como legado arquitetura centrada na individualidade de cada morador e na preservação ambiental.

Por Redação em 9 de janeiro de 2025 4 minutos de leitura

arquitetura humana
Edifício "Cidadela Verde", em Magdeburgo, na Alemanha (Foto: Oleg Senkov/ Shutterstock)

Combater a arquitetura racional, as formas retas e regulares e os espaços que privam o homem de seu meio ambiente natural. Este foi o lema do arquiteto austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000). A partir de um pensamento profundo sobre como o ser humano se relaciona com o meio a partir dos espaços habitáveis, Hundertwasser – que também foi pintor, ativista ecológico e filósofo – deixou um legado artístico centrado em garantir a harmonia com a natureza por meio de uma arquitetura humana. 

Os primeiros edifícios idealizados por Hundertwasser foram construídos na década de 1970. Foram mais de 30 edificações, entre residências, museus, igrejas, escolas e restaurantes, que subverteram a arquitetura da época: racional, padronizada, monótona, estéril e repetitiva, gerada pela produção industrial mecanizada e baseada em linhas retas. Na contramão disso, o arquiteto inovou ao utilizar cores vibrantes e assimetrias – a forma espiral como símbolo do modo como a humanidade se relaciona com o mundo exterior.

Pautado pela liberdade criativa da construção e pelo direito à individualidade, a arquitetura humana de Hundertwasser resguarda a cada indivíduo o direito de expressar sua identidade e criatividade por meio da sua casa. Por isso, uma característica muito presente em sua obra é a singularização de cada moradia — vista como terceira pele —, por expressar a criatividade e a personalidade dos moradores. Ele também defendeu e enalteceu o direito de os moradores fazerem, por exemplo, intervenções em suas janelas e cultivar vegetações nos telhados dos edifícios como forma de combater a monotonia e adotar a diversidade.

Para o arquiteto, cada pessoa tem em seu centro um “ser”, que, ao longo da vida, recebe cinco camadas de significação, determinantes da relação com o universo. São elas:

  • Pele;
  • Roupa;
  • Casa;
  • Entorno social (meio em que se vive – família, vizinhos, cidade e país);
  • Biosfera (conjunto dos ecossistemas do planeta).

Portanto, a identificação do homem com a natureza e o mundo ao seu redor por meio da vida em comunidade e do respeito ao meio ambiente era fundamental, o que culminou na disseminação de uma forte ideologia ecológica, que inspirou campanhas para preservação de habitats naturais.

Direito de janela 

A janela tinha um protagonismo singular nas obras de Hundertwasser, que cunhou o termo “direito de janela” para defender a implantação de habitações de melhor qualidade, com telhados cobertos de vegetação, além de terraços jardins, e varandas-bosques para serem pontos de encontro entre vizinhos. 

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Casa Hundertwasser (Foto: Mistervlad/ Shutterstock)

Um dos projetos mais conhecidos é o edifício de apartamentos Hundertwasserhaus (ou Casa Hundertwasser), em Viena. Concluído em 1985, o prédio abriga unidades de baixo custo com superfícies onduladas e árvores que crescem dentro dos apartamentos, com galhos saindo pelas janelas. Além disso, cada um dos residentes pode decorar a fachada de seu apartamento da forma como preferir, tornando o visual do prédio irregular e variado.

Outro projeto de destaque é o Rogner Bad Blumau, hotel e balneário de águas termais a 150 km de Viena, com fachadas coloridas integradas com a natureza e edifícios cobertos por jardins.   

Arquitetura humana reúne conceitos atemporais

O arquiteto e designer Valter Costa Lima, sócio e diretor criativo na empresa d.Propósito Design, onde lidera projetos que integram design, cultura regional e inovação sustentável, avalia que a obra de Hundertwasser continua extremamente relevante, especialmente quando pensamos nas crises ambientais e sociais do século XXI. “Ele via a arquitetura não apenas como abrigo, mas como uma extensão da natureza, um reflexo da conexão entre o ser humano e o ambiente. Suas ideias podem ser adaptadas às tecnologias de hoje para criar soluções regenerativas que minimizem o impacto ambiental e promovam o bem-estar das pessoas”.

Valter Costa Lima
Valter Costa Lima (Foto: Bruna Barbosa)

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Lima comenta que, “no design e na arquitetura, a ideia de arquitetura orgânica que Hundertwasser defendia, com formas irregulares e integração com o meio ambiente, se aplica perfeitamente a práticas modernas como o uso de telhados verdes, jardins verticais e a incorporação de sistemas de energia renovável, como solar e eólica. Além disso, a personalização das moradias e do mobiliário, algo essencial para ele, pode ser expandida com tecnologias como impressão 3D, criando espaços e móveis feitos sob medida e com menos desperdício”.

Outro ponto importante lembrado pelo arquiteto e designer é a biofilia, que busca trazer a natureza para dentro das casas, seja por meio de espaços verdes ou sistemas que garantem qualidade do ar. “E, claro, a ideia de comunidade, tão presente na obra de Hundertwasser, pode ser ampliada hoje com plataformas digitais que permitem um design participativo e a criação de habitações modulares e acessíveis”. 

Para Lima, a filosofia de Hundertwasser sobre a preservação e regeneração dos recursos naturais “ecoa nas práticas de economia circular, em que buscamos minimizar o desperdício e maximizar o impacto positivo para o ambiente e a sociedade”. 

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Em tempos de crise climática, como a que vivemos hoje, as ideias de Hundertwasser continuam a inspirar a criação de soluções que respeitem e regenerem o meio ambiente, ao mesmo tempo em que atendam às necessidades humanas e sociais, pontua Lima.

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Foto: b-hide the scene/ Shutterstock

Assim, as contribuições do visionário Hundertwasser seguem atuais e urgentes; clamam pela valorização e permanência da natureza como estratégia de sobrevivência da arquitetura e, mais do que isso, das pessoas. Isso começa pelo entendimento de uma arquitetura orgânica, que respeita os ciclos naturais e fluidos em detrimento de formas rígidas e artificiais. Arquitetura que recorre, por exemplo, a materiais renováveis como madeira recuperada, bambu, cortiça e terra, o que viabiliza edificações com impactos ambientais mínimos. Arquitetura que concilia ambiente construído e ciclo natural da vida. Arquitetura humana.