Economia circular: a filosofia dos 3Rs na universalização do ESG

Manuel Martins, especialista em economia circular, destaca o caminho para uma construção mais sustentável e eficiente.

Por Nathalia Ribeiro em 6 de maio de 2024 6 minutos de leitura

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A sustentabilidade da indústria da construção civil está além dos materiais “verdes” ou tecnologias eco eficientes. Implica em repensar todo o ciclo de vida das edificações e dos materiais usados, desde o processo construtivo. Está no desenvolvimento de novas soluções, que tem na economia circular um solo fértil. É no que aposta o especialista em Economia Circular e coordenador executivo da certificação AQUA-HQE, EPD-Brasil e PBE-Edifica, Manuel Martins, da Fundação Vanzolini. ‘’O conceito da economia circular surge para dinamizar e valorizar o reuso e a reciclagem, com foco no retorno do produto/serviço ao mercado, com o menor investimento possível’’, explica Martins em entrevista ao Habitability. 

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Manuel Martins (Foto: Divulgação)

Para ele, os 3Rs (reduzir, reusar e reciclar) devem se tornar uma filosofia em grandes empresas. ‘’A abordagem linear não prioriza tanto a redução, reuso e reciclagem dos resíduos, preocupando-se mais com o descarte adequado, particularmente em atendimento a condicionantes legais, e nem sempre da melhor forma. Fica clara aqui, a redução dos impactos ambientais pela adoção da economia circular, pois os resíduos deixam de ser lançados no meio ambiente e passam a reintegrar as cadeias produtivas’’, explica ele.  

Para ele, a construção sustentável deve gerenciar de forma responsável os resíduos gerados, mas também ser capaz de minimizar o consumo de recursos naturais. E não só! É preciso otimizar as eficiências energética e hídrica e, claro, promover o bem-estar dos ocupantes.

Economia circular, do “E” aos “S”

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A crescente adoção do modelo de economia circular na construção civil reflete uma resposta às demandas urgentes de sustentabilidade ambiental (o pilar “E”, da sigla em inglês ESG, para ambiental, social e governança).

O setor desempenha um papel significativo no consumo de recursos naturais, na emissão de gases de efeito estufa e no uso de energia e água. No Brasil, especificamente, a construção civil consome aproximadamente 75% dos recursos naturais, 12% da água potável e 50% da eletricidade, conforme dados do Centro Brasileiro de Construção Sustentável. No entanto, é um atividade indispensável para suprir o déficit habitacional, impactando diretamente em segurança, dignidade e qualidade de vida, ou seja, o pilar “S”.

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Para equilibrar essa relação, eficiência tem sido a grande aposta do setor, cada vez mais ciente do valor das matérias-primas e, consequentemente, do prejuízo financeiro que o descarte representa. ‘’Nas construções é possível reduzir a geração de resíduos nas obras e, a partir da definição e projeto do produto, no uso dos edifícios. Por exemplo, é possível haver uma redução de quebras de materiais cerâmicos e de concreto, racionalização do corte e dobra das armaduras de aço e a reutilização das fôrmas metálicas’’, disse Martins.

‘‘No canteiro de obras, a reciclagem é factível para resíduos de concreto na produção de agregados para concretos não estruturais, resíduos de latas para produção de vergalhões de aço e, se houver demolição, além dessas possibilidades, pode ser exequível, também, o reuso de materiais e componentes de demolições’’, exemplifica Martins. ‘’Quando possível, é vantajoso reutilizar materiais ou produtos sem a necessidade de retrabalho, porque permite a recuperação de parte do valor investido inicialmente. Isso contribui para prolongar a vida útil dos recursos e reduzir a demanda por novos insumos’’, completa.

A lógica por trás dessas práticas não é nova. No Brasil, já na década de 1960, o arquiteto e urbanista Siegbert Zanettini demonstrava preocupação com questões relacionadas à ecoeficiência. Antes mesmo da década de 1970, ele adotava práticas sustentáveis, utilizando madeira reaproveitada de andaimes e fôrmas de concreto para a construção de vigas estruturais de até 30 metros de comprimento.

Na construção modular, por exemplo, o tempo de obra é cerca de 60% menor que em processos convencionais e há um melhor aproveitamento da matéria-prima, sem desperdício de material, já que parte significativa da obra é feita em ambientes parametrizados, resultando em economia nas duas pontas.

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Contudo, Martins destaca que, quando a reutilização não é viável, o próximo passo é reciclar. ‘’Isso pode exigir algum retrabalho e investimento adicional. Mas a vantagem é que a reciclagem transforma resíduos em novos materiais ou produtos, reduzindo a necessidade de extrair recursos naturais e minimizando o impacto ambiental’’, diz.

Certificação, reconhecimento e incentivo ao “G”

Em meio à tamanha complexidade, entre as demandas de caráter social e ambiental, afirmar que um edifício é sustentável requer uma avaliação em múltiplas áreas. Por esse motivo, ao longo das últimas três décadas, houve um aumento no surgimento de diversas certificações dedicadas à avaliação da sustentabilidade em edificações, refletindo a ampla gama de preocupações ambientais e sociais que permeiam a indústria da construção em escala global.

Algumas têm como propósito avaliar se a edificação atende a critérios específicos de eficiência e impacto ambiental, enquanto outras utilizam sistemas de classificação que atribuem diferentes pontuações com base no desempenho da edificação em diversos aspectos.

Desenvolvida pela Fundação Vanzolini, a certificação brasileira AQUA-HQE adota uma abordagem centrada na economia circular, reconhecendo a capacidade de uma edificação maximizar a eficiência dos recursos utilizados e minimizar os impactos ambientais ao longo de todo seu ciclo de vida. ‘’Ela requer um sistema de gestão e governança que garanta que a sustentabilidade seja resultado de uma reflexão inicial desdobrada em ações planejadas e controladas, viabilizando as melhores e mais econômicas soluções para redução dos consumos de energia, água e produtos e materiais de limpeza e conservação’’, explica Martins.  

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Edifício Parque Avenida, empreendimento localizado em Belo Horizonte, possui a certificação AQUA-HQE (Foto: Divulgação/OR)

Assim, ela avalia edificações que se integram harmoniosamente ao entorno, selecionando materiais e sistemas construtivos de qualidade, duráveis e com baixo impacto ambiental. São considerados também eficiência energética, dispositivos hidrossanitários eficientes e uso de água de chuva para economia. A certificação abrange, ainda, se o armazenamento e fluxo de resíduos são adequados, e a facilidade de manutenção e conservação dos sistemas e equipamentos prediais, entre outros aspectos relevantes para uma efetiva gestão predial com foco sustentável.

A abordagem contudo, alerta Martins, também depende do engajamento dos usuários. ‘’A redução dos reparos e trocas, sem a redução das condições de conforto e saúde dos usuários é muito importante. Além disso, o uso adequado dessas construções deve ser divulgado nos manuais do usuário/proprietário e do síndico/administrador para garantir que a economia e redução dos impactos do consumo de energia, água e das emissões de carbono derivadas, não apenas do uso da energia, mas também dos resíduos de construção e do uso, sejam efetivas’’. 

De propósito

Embora mais empresas e edifícios estão adotando a sustentabilidade e a economia circular em suas operações, ainda há muitos desafios. Segundo Martins, um deles é a necessidade de repensar todo o ciclo de vida dos produtos, desde o design até a disposição final, exigindo uma colaboração mais estreita entre diferentes setores e atores da economia. 

‘’Quando pensamos em obras, um dos maiores desafios é, primeiramente, encontrar oportunidades de reuso ou reciclagem, e depois, estabelecer os processos de logística reversa, que também têm custos associados e dependem da ação coordenada de todos os atores que participam desse ciclo, desde a extração de matérias-primas, uso de insumos hídricos e energéticos, transportes, armazenamento, até o uso e a coleta dos descartáveis, e seu encaminhamento para o processo de reuso ou reciclagem’’, aponta ele. 

Em relação à incorporação da cultura da sustentabilidade nos negócios e nas políticas corporativas, o desafio está no olhar ESG. Manuel Martins enfatiza que, embora o conceito tenha ganhado destaque, sua implementação nem sempre é clara. ‘’Muitas organizações estão interessadas em demonstrar conformidade com as melhores práticas nessas áreas, o que pode resultar em práticas isoladas’’, observa. 

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‘’O ESG funciona melhor para as organizações que entendem a governança como a espinha dorsal do ESG, incorporando já no propósito da organização os aspectos econômicos, sociais e ambientais relevantes e, a partir daí, materializando suas ações em planejamentos estratégicos e operacionais, para que sejam efetivas e tenham sinergia’’ salienta Martins. Para ele, esse é o caminho para a universalização da cultura ESG e, consequentemente, para a adoção da economia circular nas organizações, sejam elas públicas ou privadas. 

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