Crescer em um lugar onde os sonhos muitas vezes esbarram na falta de infraestrutura, na ausência de espaços públicos e na desigualdade territorial deixa marcas. Mas para Ester Carro essa realidade vivida na infância, no Jardim Colombo – uma comunidade periférica de São Paulo/SP – foi o ponto de partida para uma trajetória que une técnica, arquitetura social e transformação.
Formada em Arquitetura e Urbanismo, com pós-graduação, mestrado e doutorado, Ester lidera o Instituto Fazendinhando, que atua diretamente na melhoria das condições de moradia e espaços urbanos na periferia, buscando soluções criativas, sustentáveis e colaborativas. Com foco em intervenções de baixo custo, reaproveitamento de materiais e capacitação local, o trabalho de arquitetura sua que ela desenvolve mostra que é possível construir dignidade, autonomia e cuidado, mesmo nos espaços mais reduzidos e invisibilizados.
Nessa entrevista exclusiva ao Habitability, ela compartilha sua visão sobre as contradições da arquitetura tradicional, os desafios de empreender sendo mulher e jovem na periferia, e como a arquitetura social pode ser uma ferramenta potente para ampliar direitos, inspirar políticas públicas e fortalecer a cidade que pulsa para além dos centros consolidados.
Você cresceu no Jardim Colombo e, anos depois, escolheu voltar como arquiteta e atuar na comunidade. Como essa experiência de ida e volta, entre periferia, academia e campo profissional, transformou sua forma de entender o que é cidade?

Ester Carro: Durante a faculdade, ao ter contato com a arquitetura tradicional, percebi o quanto minha realidade era distante desse universo. Vivi a falta de acesso a espaços públicos, áreas verdes, educação e cultura. Só visitei um museu pela primeira vez já na graduação, por exigência de um trabalho. Na infância e adolescência, esse tipo de espaço era inacessível e exigia grandes deslocamentos. Ao começar a circular por esses ambientes, entendi com mais clareza a desigualdade, não só social, mas territorial. Um exemplo é que o Jardim Colombo não tem uma escola até hoje, apesar da presença de instituições privadas no entorno. Esse contraste escancarou para mim como o acesso a determinados espaços facilita o alcance de outras oportunidades.
Como foi para você vivenciar essa dualidade entre o mundo idealizado da arquitetura e a realidade do Jardim Colombo?
Ester Carro: Durante um estágio, por exemplo, tive que projetar casas de 300-400 m². E isso me chocava, porque o que eu via diariamente eram moradias de 10, 15, até 4 m². Esse contraste gritante escancara o tamanho da desigualdade. Muitas dessas residências que eu projetava incluíam três banheiros, enquanto nas favelas, como o Jardim Colombo, muitas casas sequer têm um. Eu vivenciava, todos os dias, a dualidade entre estudar de manhã, estagiar à tarde e retornar à minha realidade, marcada por limitações.
As casas de alto padrão estão em regiões bem localizadas, com infraestrutura, mobilidade, segurança e áreas verdes, enquanto o Jardim Colombo fica em fundo de vale, com acesso precário a serviços básicos. Era um deslocamento constante entre dois mundos opostos: o da arquitetura ensinada e vivida nos estágios, e o da minha própria experiência cotidiana.
Apesar do desconforto de estar em um ambiente do qual você não se sentia parte, quais aprendizados ou insights você conseguiu extrair dessa experiência?
Ester Carro: Uma das coisas que eu sempre destaco é a importância de eu ter ingressado na faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Desde criança, eu já tinha esse desejo de promover mudanças, de transformar o meu território. Mas, sem essa formação, eu não teria a dimensão das possibilidades de atuação que existem.
Muitos dos projetos de moradia que desenvolvo hoje nas favelas geram comentários do tipo: “Nossa, nem parece uma moradia dentro da favela! Olha o capricho!” E eu acredito que esse cuidado vem da minha formação, das experiências que tive, dos outros espaços que fui acessando ao longo do tempo. Foram se abrindo caminhos.
E como foi esse processo até chegar à arquitetura social?
Ester Carro: Foi muito complexo. Estar nesses diferentes mundos era desafiador. E algo que também me questionava muito, na época, era o fato de que pessoas com o meu perfil não estavam nesses espaços. Não é que não frequentassem por escolha, é que não tinham acesso às oportunidades. Isso também gera um sentimento de estranhamento. Você começa a se perguntar: “Será que eu sou a única aqui?” E esse sentimento de não pertencimento é difícil.
Você já disse em outras entrevistas que o Fazendinhando nasceu de uma urgência e de um olhar atento às necessidades da sua comunidade. Mas qual foi o momento ou situação que desencadeou a criação desse projeto de arquitetura social?
Ester Carro: Em 2017, eu estava me formando e comecei a reformar a casa precária de Dona Maria, uma senhora de cerca de 80 anos que sofria com pneumonia agravada pelas condições da moradia. A casa tinha apenas 19 m², um vitrô minúsculo e muitas infiltrações, tanto que as paredes eram tomadas de mofo. Uma situação de muita vulnerabilidade.
Foi nesse projeto que descobri minha verdadeira vocação, usar a arquitetura para fazer a diferença na comunidade. Conversei sobre isso com meu pai, líder comunitário, que logo se envolveu com um grupo de voluntários focado em questões urbanas. Dessa união nasceu o embrião do Fazendinhando, com o propósito de atuar em projetos que impactam positivamente a comunidade. Inicialmente chamado de “Movimento Fazendinhando”, o grupo tinha o objetivo de mobilizar a comunidade e, mais tarde, se formalizou como Instituto Fazendinhando. Surgiu a partir das demandas por moradia e da falta de espaços livres no Jardim Colombo, onde quase não existiam áreas verdes além da Fazendinha, um antigo lixão que transformamos em área verde por meio de mutirões, mobilização comunitária e educação ambiental. Desde o final de 2017, realizamos diversas ações, mas tudo começou com a reforma da moradia de Dona Maria. Apesar dos desafios e da falta total de recursos, aquele foi o momento em que percebi minha vocação e decidi seguir nessa área.
Você mencionou que iniciou esse trabalho sem recursos financeiros. Quais foram os maiores desafios que enfrentou ao empreender nesse contexto? Como foi captar recursos para viabilizar um projeto que tinha como foco a arquitetura social?
Ester Carro: Nós começamos esse trabalho sem nenhum recurso. Isso é bem diferente de outras estruturas que já começam com algum tipo de apoio ou financiamento. Então, no nosso caso, foi ainda mais difícil.
Em vários momentos, eu fiquei frustrada porque queria muito trabalhar na área, me dedicar, crescer em projetos, ver a transformação acontecer cada vez mais, colocar em prática tudo o que aprendi na faculdade. Mas conquistar a confiança de apoiadores foi um desafio enorme.
Quando começamos, eu tinha 23 anos, e muita gente pensava: “Quem é essa menina? O que ela está falando?” Além disso, sendo uma jovem periférica, você encara um desafio extra. As pessoas querem saber quem está por trás do projeto, quais são as marcas envolvidas, qual é a credibilidade da pessoa. Para empreender no Brasil, ainda mais no campo social, sendo mulher e periférica, é muito complicado. No entanto, hoje temos muitos parceiros.
Como o estabelecimento de parcerias estratégicas tem contribuído para o desenvolvimento dos seus projetos de arquitetura social, especialmente diante dos desafios técnicos e orçamentários que vocês enfrentam?
Ester Carro: Hoje, já contamos com algumas parcerias importantes. Por exemplo, temos uma empresa chamada MX Cenografia que nos fornece mobiliário sob medida, o que foi um grande avanço porque as casas são pequenas e o móvel sob medida faz toda a diferença. Além disso, estou sempre buscando conexões para conseguir apoio e recursos.
Por exemplo, agora mesmo estamos trabalhando na casa da Rose e a impermeabilização dessa casa é um dos maiores desafios que já enfrentamos. Entrei em contato com a Vedacity para ver se eles poderiam nos ajudar, tanto com o conhecimento técnico, quanto com os produtos. Eles prontamente aceitaram colaborar, doaram materiais e enviaram um técnico até a casa para explicar passo a passo o que precisava ser feito. Isso faz toda a diferença na entrega.
Mesmo com essas parcerias, o projeto realiza intervenções em espaços muitas vezes menores que 10 m², com orçamentos inferiores a R$ 10 mil, de que forma essas limitações financeiras estimulam a criatividade e a inovação na concepção dos projetos?
Ester Carro: Antes de tudo, quando não temos recursos para um projeto de arquitetura social completo, a gente começa a reforma por ambientes. Ou seja, ao invés de reformar a casa inteira de uma vez, dependendo do tamanho dela, vamos fazendo por partes. Além disso, muito do que fazemos vem da necessidade de criar conexões para conseguir reaproveitar materiais. Recebemos doações de revestimentos, porcelanatos, peças cerâmicas e outros materiais de empresas ligadas à construção civil que, de outra forma, descartariam esses itens, e reutilizamos esses materiais em nossos projetos.
Quando você menciona o reaproveitamento de materiais, percebemos que o Fazendinhando incorpora princípios da economia circular. Qual é a importância dessa abordagem para o sucesso e a sustentabilidade do projeto, tanto do ponto de vista ambiental, quanto social?
Ester Carro: A gente trabalha muito com o design circular. Temos uma sala no Jardim Colombo onde armazenamos os materiais doados. Depois, faço todo o processo de triagem: alguns materiais são ideais para determinada obra, enquanto outros ficam guardados para projetos futuros. Organizo o uso dos revestimentos e cores conforme o ambiente e projeto, buscando manter uma padronização, mesmo que às vezes seja preciso adaptar pequenos detalhes. Assim, esses materiais que iriam parar na caçamba ou no aterro sanitário, são reaproveitados. Isso impacta não só a família e a comunidade beneficiada, mas a sociedade como um todo. Quando conseguimos diminuir a quantidade de resíduos que seriam descartados, também estamos contribuindo para a preservação do meio ambiente.
De que forma a arquitetura social, especialmente em espaços extremamente precários ou reduzidos, exige abordagens diferentes da arquitetura tradicional? Você pode compartilhar exemplos práticos de como isso se manifesta nos seus projetos?
Ester Carro: A arquitetura social é totalmente diferente da arquitetura tradicional. Não é só o projeto ou o desenho do espaço, ela envolve conexão com outros setores, muito mais criatividade e colaboração. Eu sempre digo que quanto menor o espaço que você tem para trabalhar, mais desafiador o projeto se torna. É essencial pensar em soluções criativas para aproveitar cada centímetro, como móveis que dividem ambientes e oferecem armazenamento. Um caso marcante foi a casa do Tiquinho, que tinha apenas 4m². Eu desenhei um mobiliário que servia tanto para acessar a cama no mezanino, quanto para guardar utensílios domésticos. A casa foi ampliada e hoje tem cerca de 11m², mas o desafio de usar o design para otimizar o espaço permaneceu.
É preciso pensar a arquitetura como uma forma de criar soluções e caminhos diferentes para superar as limitações. Além dessas conexões e parcerias que a gente sempre busca, também preciso planejar outras alternativas. Um exemplo disso é a casa da Rose, onde vamos criar um pátio interno, porque no térreo não é possível construir paredes. Será a primeira casa na favela com um pátio interno, que vai ajudar a garantir a circulação de ar para o andar superior.
A escuta ativa dos moradores é um pilar fundamental dentro desse processo, mas sabemos que nem sempre é possível realizar todos os sonhos e desejos apresentados. Como vocês equilibram essa escuta sensível com as limitações técnicas e práticas para transformar expectativas em decisões concretas de projeto?
Ester Carro: No início do processo, coletamos dados básicos da família e avaliamos o grau de precariedade da moradia, considerando os diferentes níveis já mapeados. A partir disso, temos uma conversa profunda para entender as necessidades e preferências, como cores favoritas ou demandas específicas, incluindo detalhes como espaços para animais de estimação. Esse diálogo é essencial para planejar o projeto alinhado aos desejos e limitações de cada família.
Durante o desenvolvimento, buscamos transparência, explicando quando algo não é possível e oferecendo alternativas próximas ao desejado. Essa escuta ativa torna o processo mais agradável e colaborativo. No geral, os moradores entendem bem essas adaptações e, na entrega, ficam muito impactados e surpresos, dizendo coisas como: “Não acredito, essa é minha casa!”
A atuação do projeto vai além das casas. Vocês também atuam em espaços públicos, hortas, arte urbana. Como você enxerga essa dimensão coletiva da transformação urbana?
Ester Carro: No começo, os moradores não participavam nem se envolviam, tornando difícil promover conscientização real. Porém, ao introduzirmos eventos culturais como ferramenta de transformação territorial, o engajamento aumentou bastante. A comunidade passou a se inspirar com as intervenções realizadas e desejava transformar seus próprios espaços, entendendo que podia agir e cuidar da favela. Esse processo fortaleceu o senso de pertencimento, aumentando a participação nas ações e o cuidado com o espaço público. Antigamente, quando eu era criança, o senso de coletivo era muito maior, tudo era mais integrado. Com o tempo, isso foi se perdendo, mas acredito que estamos conseguindo resgatar esse sentimento.
Muitos projetos sociais enfrentam o desafio de evitar que as famílias beneficiadas se tornem dependentes das ações externas, o que pode comprometer a sustentabilidade e o impacto a longo prazo dessas iniciativas. Como vocês estruturam o trabalho para garantir que as famílias sejam protagonistas das reformas e intervenções realizadas?
Ester Carro: Acho que as ações que realizamos não podem, de forma alguma, gerar dependência. E temos trabalhado por vários caminhos para evitar que isso aconteça. Nas reformas das moradias, a participação da família é sempre parte do processo. Mesmo com limitações, como no caso da Rosa, cuja família colabora nos fins de semana, todos se envolvem de alguma forma, seja fisicamente, seja acompanhando a obra. Portanto, não adotamos um modelo assistencialista, buscamos apoio mútuo e envolvimento ativo para evitar dependência. A família participa porque acredita no projeto, e isso também vale para outras ações, como intervenções em vielas e escadarias, onde a comunidade se engaja conforme a possibilidade de cada um.
É importante dizer que todas as ações que desenvolvemos também fomentam a economia local. Cerca de 80% dos materiais que compramos vêm dos depósitos da própria comunidade. Além disso, todas as pessoas que trabalham com a gente são remuneradas pelo serviço prestado.
Nesse processo de envolvimento ativo das famílias e da comunidade, vocês já identificaram pessoas com talentos ou interesse pela construção civil que passaram a considerar essa área como uma profissão ou caminho de vida? Como o projeto tem apoiado esses potenciais novos profissionais?
Ester Carro: Nós temos o projeto das Fazendeiras, que promove a capacitação de mulheres em áreas da construção civil, como reboco, pintura, alvenaria, elétrica e impermeabilização. Em julho, mais uma turma será formada em reboco, ampliando o alcance das ações.
Algumas Fazendeiras, como Tainá e Dani, já atuam como coordenadoras de mutirões e executam obras, inclusive em suas próprias casas. As formações, além de promoverem autonomia e reduzir a dependência de mão de obra masculina, geram oportunidades no mercado de trabalho: mais de 450 mulheres já foram capacitadas, e várias atuam com carteira assinada. Mais do que preparar para o mercado, nosso objetivo é empoderar mulheres para que entendam e participem ativamente das reformas, evitando serem enganadas por outros prestadores e transformando suas próprias realidades.
Em um País marcado pela desigualdade, como você enxerga o papel de projetos como o seu para provocar mudanças sistêmicas?
Ester Carro: Acredito que, para além das transformações que promovemos diretamente no território, existe um impacto importante no campo da provocação. De certa forma, o nosso trabalho provoca e incentiva a criação e a revisão de políticas públicas. Hoje, esse debate está ganhando força nas esferas municipal, estadual e federal. Um exemplo disso é a ATIS (Lei de Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social) que se tornou uma das prioridades no Conselho de Arquitetura e Urbanismo e tem sido pauta em diferentes níveis de governo. Então, além do impacto territorial e socioambiental, acredito que conseguimos mobilizar, inspirar e até pressionar por novas políticas públicas.
Também tenho usado as redes sociais como ferramenta para isso, dentro do possível, com vídeos simples e diretos que mostram a realidade como ela é. Teve um vídeo, por exemplo, em que mostrei uma casa infestada de baratas e ratos. Outro, o da casa do Tiquinho, teve grande repercussão. Muita gente se espantou com a casa que não tinha banheiro. Essas reações ajudam a conscientizar e mobilizar. A sociedade, ao se deparar com essas realidades, começa a cobrar políticos. Então, além de fomentar políticas novas, também pressionamos pelo aprimoramento das políticas públicas que já existem.
Você percebe que a conscientização e a mobilização em torno da arquitetura social estão avançando no meio acadêmico também?
Ester Carro: Sim. Hoje, muita gente, inclusive de universidades fora do País, tem entrado em contato perguntando como fazemos, como funciona a dinâmica. Em setembro, por exemplo, vou para a Colômbia dar uma palestra em uma universidade que está começando a desenvolver esse tipo de iniciativa. Recentemente também dei um curso em parceria com o Sesc Belenzinho, sobre arquitetura social. Foram mais de 100 inscritos e muita gente ficou de fora porque lotou, algo que a gente nem esperava.
Mesmo com os avanços e a crescente conscientização que você mencionou, ainda há quem insista em enxergar a favela como um problema, e não como uma parte legítima, criativa e pulsante da cidade. Considerando os saberes, práticas e formas de organização que emergem desses territórios, o que, na sua visão, temos a aprender com as periferias?
Ester Carro: Uma das coisas que mais admiro nas favelas é a resiliência e a capacidade dos moradores de criar, inovar e buscar soluções, mesmo diante de estruturas precárias e sem apoio técnico. Essa inteligência prática e coletiva é rara no lado formal da cidade, que é marcado por padronização e uniformidade. Na favela, há cor, vida e criatividade. Grafites nas vielas, crianças brincando nos poucos espaços livres, e moradores que se reinventam diariamente para viver, trabalhar e resistir.
Além disso, a favela é uma comunidade forte, onde o senso coletivo se manifesta no cuidado mútuo, como ficou evidente durante a pandemia, quando lideranças comunitárias se organizaram para apoiar os moradores mais vulneráveis. Em contraste com o isolamento e o individualismo predominantes nas áreas formais, onde o medo e muros separam as pessoas, a favela desenvolveu uma sabedoria prática para enfrentar crises e garantir que ninguém fique para trás.
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