Raquel Rolnik, uma das maiores urbanistas do Brasil, fala sobre suas experiências com a cidade, os desafios para um espaço inclusivo e a esperança de alcançá-lo.
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Camila de Lira em 26 de outubro de 2022 4minutos de leitura
Raquel Rolnik (Foto: Divulgação)
Descobrir novos mundos sem sair da mesma cidade é algo que Raquel Rolnik faz desde criança. Mesmo antes de se tornar um dos maiores nomes do urbanismo no País, Raquel já gostava de se aventurar pelos bairros e buscar as muitas faces de São Paulo. Na sua carreira como autora, pesquisadora, professora e planejadora urbana, procurou revelar todas as urbanicidades dentro do perímetro urbano. “Venho de uma família de imigrantes judeus poloneses e eles sempre valorizaram muito a cultura e a cultura urbana. A minha formação foi pela cidade”, lembra Raquel, em entrevista ao Habitability.
Criada entre a Barra Funda e os Campos Elíseos, em São Paulo, Raquel transitava bem no centro de São Paulo e pelo Bom Retiro quando era pequena. Para lá, ia com os pais ao cinema, a peças de teatro, passeava por lojas e ia para a escola. Até que no começo dos anos 1970, já adolescente, mudou de escola. Mas, o que era para ser um evento traumático, marcou Raquel por outros motivos. “Fui estudar em uma escola não judaica na Avenida Paulista. Para mim, subir a Angélica e chegar na Paulista foi a descoberta de uma nova cidade”, disse a urbanista, lembrando de como era a região: a Paulista passava por um processo de verticalização, com a construção de edifícios icônicos. O MASP, por exemplo, era recém-inaugurado. Segundo ela, foi a partir daí que sua relação com o espaço urbano mudou: era uma semente do urbanismo crescendo na vida da ex-diretora de Planejamento do Município de São Paulo e uma das curadoras do Prêmio Habitability deste ano.
O gosto pela arquitetura e pelo planejamento dos espaços veio um pouco depois, ao entrar como aluna na Universidade de São Paulo, no meio dos anos 1970. Já como aluna da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), ela se apaixonou pelo prédio projetado por Vilanova Artigas, na Cidade Universitária (embora a Cidade Universitária da USP tenha sido inaugurada em meados dos anos 1950, a FAU só foi para dentro do campus em 1969, quando o edifício foi erguido).
Projetado para ser um espaço de debate e diálogo, com grandes salões e rampas para a circulação das pessoas, o prédio é considerado um dos principais representantes da arquitetura moderna no País. “Entrando naquele edifício tive certeza absoluta que queria ser arquiteta. Senti na minha pele como é diferente poder estar no espaço projetado com uma generosidade como aquele”, relembra Raquel.
Na faculdade Raquel também teve um encontro que mudou de vez sua visão de mundo: a periferia de São Paulo. “Comecei a descobrir que tinha um mundo da autoprodução das casas nas periferias da cidade de São Paulo. Comecei a ir, estudar e trabalhar ali”, conta ela, que também é autora do livro “O que é Cidade”. Seu trabalho de conclusão de curso foi criado a partir da análise do processo de formação das periferias de São Paulo. “Foi um momento que acabei me envolvendo com a discussão da economia política do urbano como questão central. Dali nunca mais saí”, destaca.
O centro na periferia
“Em uma matéria da FAU, fomos conhecer a periferia da Zona Sul, na região que seria hoje o Grajaú, bem no começo da ocupação daquele espaço. Eu fiquei absolutamente chocada – como era possível ter aquela cidade que eu conhecia e ter essa outra cidade”, conta Raquel.
Foi assim que a urbanista se envolveu com o espaço, com as pessoas e com a luta pela moradia. “Desde então fiquei muito envolvida a entender o processo que leva a ter essa outra cidade, com a luta pelo direito à cidade e contra a ideia de uma cidade dividida entre os que têm e os que não têm. Nunca mais deixei de me dedicar a esse tema”, disse. Anos depois, em 2003, Raquel levou essa visão para o País todo, como secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério da Cidade. E para o mundo, como relatora especial da ONU para o direito à Moradia Adequada.
“Comecei a entender que a cidade ostentosa vive a partir da extração de renda do trabalho da cidade autoproduzida dentro da mais absoluta precariedade”, aponta a arquiteta. Esse pensamento, acrescenta ela, deveria ser essencial para repensar as políticas públicas urbanas do Brasil. “É impossível falar de arquitetura e urbanismo no Brasil sem enfrentar essa questão da desigualdade social”, pontua Raquel.
A arquitetura da exclusão
Tal visão de mundo, no entanto, não chega a todos os formadores de política no Brasil. “A própria legislação e a normatividade urbanística se encarrega de demarcar determinados espaços como irregulares e ilegais”, diz Raquel. Ou seja, a política urbana do Brasil é feita para a exclusão e para promover a desigualdade. “No Brasil, a exclusão [social] é fruto do planejamento urbano e não da falta dele”, destaca Raquel, a partir da experiência de quem participou de planos e do marco regulatório da política Urbana e Habitacional de São Paulo. A profissional foi consultora de prefeituras pelo Brasil, disseminando os pontos do marco regulatório. “Passados esses anos, agora tenho uma posição muito crítica com relação aos próprios limites do marco regulatório. O quanto, na verdade, o modelo hegemônico de cidade captura o marco regulatório e o transforma a seu favor”, aponta.
Segundo Raquel, a regulamentação é usada em favor da especulação imobiliária, o que é ruim para a população, principalmente a mais vulnerável. “A gente está vivendo o maior boom imobiliário da história da cidade de São Paulo e, ao mesmo tempo, a maior crise habitacional”, lamenta.
A arquitetura da inclusão, segundo Raquel Rolnik
O cenário é desolador, mas a esperança de uma cidade que abriga a todos ainda bate no coração de Raquel. “O que me dá energia são os movimentos contra-insurgentes em relação à hegemonia da cidade. E são muitos. E são incríveis. São a forma de fazer cidade que protege a vida. Elas vêm das ocupações organizadas, das experiências de agricultura urbana, de cuidado e autopromoção do cuidado. Elas vêm das organizações do espaço a partir de valores coletivos de solidariedade ”, elenca Raquel, otimista, acrescentando, ainda, o fato de as pautas feministas e antirracistas estarem sendo cada vez mais incorporadas nas discussões desse novo modelo de cidade. “Isso me dá energia para continuar lutando: ver que um outro mundo é possível”.
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