Entre desertos dourados e mesquitas que resistem há séculos, Bukhara, no Uzbequistão – uma das cidades mais antigas do mundo – redescobre sua vocação como ponto de encontro entre culturas. Situada no coração da histórica Rota da Seda, ela já foi parada obrigatória de caravanas carregadas de especiarias, tecidos e ideias que viajavam do Oriente para o Ocidente. Hoje, em meio às muralhas cor de areia e aos minaretes que cortam o céu, o que circula são novas formas de criação: obras de arte contemporânea que dialogam com tradições locais e renovam o espírito cosmopolita da cidade.
Pela primeira vez, a cidade abre suas ruas e praças centenárias à arte contemporânea global com a Bienal Inaugural de Bukhara 2025, reunindo mais de 200 artistas de 39 países em mais de 70 obras criadas especialmente para o centro histórico. Entre tapetes tradicionais e mercados de algodão, a bienal convida visitantes a experimentar a fusão entre patrimônio milenar e criação contemporânea, mostrando que o passado pode ser também motor de futuros possíveis.
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O evento, curado por Diana Campbell e comissariado por Gayane Umerova, presidente da Fundação para o Desenvolvimento da Arte e Cultura do Uzbequistão (ACDF), marca um momento único em que Bukhara deixa de ser apenas um ponto histórico da Rota da Seda e se transforma em destino de referência para intercâmbio cultural, inovação artística e revitalização urbana. Em meio a cores, aromas e texturas, a cidade prova que tradição e contemporaneidade podem dialogar em harmonia, oferecendo uma experiência sensorial que vai além da visita turística.
Bukhara: história, arquitetura e renovação urbana

Com mais de 3 mil anos de ocupação contínua, Bukhara é um testemunho da história da Ásia Central. Por séculos, suas mesquitas com suas torres chamadas de minaretes, madrassas (casas de estudo) e caravançarais (hospedarias) serviram como pontos de encontro para comerciantes, viajantes e sábios, consolidando a cidade como um centro vital da Rota da Seda. Hoje, esses marcos históricos, muitos listados como Patrimônio Mundial da UNESCO, recebem uma nova vida graças à Bienal de Bukhara.
Mais do que um evento artístico temporário, a Bienal de Bukhara integra um plano diretor urbano que posiciona a cultura como motor de revitalização. Edifícios históricos foram restaurados, estruturas reconectadas à malha urbana e redes de trilhas para pedestres foram desenhadas para conectar monumentos, bairros cotidianos e espaços de exibição. O objetivo é criar um distrito cultural contínuo, onde arte, história e vida urbana coexistem, oferecendo aos visitantes uma imersão profunda na cidade e, aos moradores, novas oportunidades de engajamento cultural.
Ao mesmo tempo, a intervenção urbana preserva a identidade ecológica de Bukhara, lembrando seu passado como cidade-oásis. Áreas verdes, sombra e jardins são incorporados às rotas culturais, reforçando a sustentabilidade e o conforto em meio ao clima árido da região.
“A Bienal de Bukhara será o maior e mais diverso encontro de artistas e artesãos do Uzbequistão até o momento”, afirma Gayane Umerova em entrevista ao portal internacional The Art Newspaper. Embora o projeto seja independente dos futuros museus da cidade, ele está conectado a objetivos semelhantes. “Nosso intuito é oferecer oportunidades para que públicos locais e internacionais se envolvam com a arte e o patrimônio cultural do Uzbequistão, ao mesmo tempo em que criamos estruturas e espaços sustentáveis que preservem tradições e ampliem o acesso à riqueza cultural do país”, acrescenta Umerova.
Arte sem fronteiras: colaborações globais e mestres locais

A Bienal de Bukhara reúne mais de 200 artistas de 39 países, que juntos criaram mais de 70 encomendas específicas para os espaços históricos da cidade. Cada obra é resultado de uma colaboração única, na qual artistas internacionais trabalham lado a lado com mestres uzbeques, explorando técnicas tradicionais como tecelagem ikat, bordado, mosaico e escultura em madeira, enquanto incorporam linguagens contemporâneas e experimentações sensoriais.
O tema da bienal, “Receitas para Corações Partidos”, é inspirado em uma antiga lenda local que conta a história de um príncipe que foi proibido de se casar com a filha de um artesão, e, como consolo, recebeu o prato tradicional plov, uma refeição que simboliza reconforto e acolhimento. Essa narrativa serve como fio condutor de um conjunto diversificado de obras, nas quais os artistas exploram metáforas de perda, amor e reconciliação, ao mesmo tempo em que incorporam elementos da história culinária de Bukhara.

Todo esse movimento é também profundamente social. Ao contrário da maioria dos países ocidentais, o Uzbequistão é marcado por uma população jovem – cerca de dois terços de seus habitantes têm menos de 30 anos. Por isso, oferecer acesso a indústrias criativas, turismo e serviços significa não só diversificar a economia, mas também criar oportunidades de carreira e dar propósito a uma nova geração em busca de horizontes. A arte, nesse contexto, não é apenas expressão estética colocada na cidade, mas ferramenta de desenvolvimento.
Arte e cidade, reciprocidade
O centro histórico de Bukhara foi pavimentado para tornar a caminhada mais fluida, conectando antigos edifícios comerciais sombreados a praças abertas, criando um percurso que é, ao mesmo tempo, passeio e descoberta. Passagens por arcos ogivais e multifoil conduzem a pequenas zonas discretas, protegidas do sol intenso, onde cada visitante pode se deparar com obras de arte em momentos quase íntimos, como encontros inesperados entre o público e a criação artística.

Entre esses refúgios, destaca-se a Sala Azul, de Abdulvahid Bukhoriy e Jurabek Siddikov. A porta baixa que dá acesso ao espaço obriga o visitante a se inclinar, e ao atravessá-la, é recebido por uma atmosfera que parece inverter o calor do meio-dia. O ambiente fresco e acolhedor proporciona um alívio imediato e transforma o simples ato de entrar em uma contemplação sensorial, onde o corpo se refresca e os olhos se perdem em tons frios e texturas que relaxam.

No mesmo percurso, a instalação da brasileira Marina Perez Simão, em colaboração com Bakhtiyar Babamuradov, impõe-se com sua força visual. Trabalhando com técnicas cerâmicas locais, a obra ocupa o espaço com olhos estilizados e vibrantes, em cores que dialogam de forma inesperada com os telhados planos e arcos islâmicos ao redor, estabelecendo um contraste entre o contemporâneo e a tradição histórica da cidade.
Elementos do corpo humano aparecem em praticamente todas as exposições, respondendo tanto às metáforas das receitas do temam quanto às múltiplas interpretações de termos em uzbeque.
Entre gastronomia e contemplação
Esse entrelaçamento de narrativas se estende aos cafés da Bienal, que funcionam quase como obras de arte em si mesmas. O mais proeminente deles é um edifício temporário feito inteiramente de panelas e frigideiras, com um bar circular que se abre para receber visitantes, servindo saladas e bebidas sob um dossel de pratos pendurados. O efeito é lúdico e monumental.

Outra intervenção é “Sal Carregado pelo Vento”, de Subodh Gupta, em colaboração com Baxtiyor Nazirov, que ocupa tanto o exterior, quanto o teto abobadado de um dos locais históricos, combinando o peso simbólico de objetos cotidianos com a leveza do design e a escala da arquitetura islâmica.

Já o Café Oshqozon, cujo nome remete ao estômago e ao recipiente para cozinhar, oferece uma experiência gastronômica performática. Sob a sombra de uma árvore centenária, visitantes provam pratos concebidos pelo artista sueco Carsten Höller, que criou seu Menu Brutalista, em que cada receita é limitada a um único ingrediente com água e sal como aditivos.
Mais distante da área central, encontra-se On Weaving, único pavilhão que já foi exibido em outro contexto. Vencedor do Prêmio AlMusalla da Fundação Bienal de Diriyah, trata-se de uma estrutura cubóide que remete a um espaço de oração ou contemplação, composta por painéis semelhantes a teares que tecem quilômetros de fios sobre a sua estrutura. Produzido majoritariamente com tamareiras e materiais reutilizados, o pavilhão percorreu a Arábia Saudita antes de chegar a Bukhara, mantendo a memória do trabalho artesanal enquanto se insere no novo contexto urbano da cidade.
Neste mosaico de experiências, a Bienal de Bukhara, aberta até 20 de novembro de 2025, revela-se não apenas como uma exposição de arte contemporânea, mas como uma experiência sensorial, narrativa e comunitária, em que corpo, cor, sabor e tradição se encontram para reescrever a forma de se viver e perceber o espaço histórico da cidade.