Viver em cidades ficou mais caro no Brasil. Mas também nos Estados Unidos. No Japão. Na Alemanha. Na Coreia do Sul. Na Nigéria… O mundo todo está passando por uma crise de moradia. Alguns fenômenos explicam o cenário, mas também mostram que há formas de minimizá-lo.
Em 2021, os preços de imóveis atingiram a maior alta em 18 anos no mundo, de acordo com dados da consultoria Knight Frank. O Global Residential Cities Index mostrou que 140 cidades das 150 monitoradas tiveram alta de preços dos imóveis. No final do segundo trimestre de 2022, houve pouca mudança no índice, que continua mostrando altas aceleradas, de quase 12% no valor dos imóveis pelo mundo. “O mais impressionante é que ainda há 66 cidades com aumentos de preços acima de 10%, mesmo depois de um ano”, informa o relatório. Dados do Fundo Monetário Internacional (FMI) atualizados em meados de 2021 também mostram que 75% dos 60 países acompanhados pelo fundo tiveram alta nos preços de habitação.
No Brasil, o índice FipeZap de Preço de Imóveis Anunciados mostrou que os preços de espaços residenciais cresceram 5,29% de 2020 a 2021. No período, a inflação no Brasil chegou a 10,06%, o que tornaria a alta dos valores de imóveis de moderada a baixa, não fosse um outro indicador essencial: a renda dos brasileiros. No ano passado, o rendimento mensal real domiciliar per capita do Brasil foi de R$ 1,35 mil, o menor valor registrado pelo IBGE desde 2012.
Em outras palavras, o dinheiro rareou e os custos aumentaram, incluindo o de morar. Entender a raiz desse problema é o primeiro passo para compreender como trazer soluções.
Pandemia teve influência na crise de moradia global
Nos últimos anos, a pandemia da Covid-19 afetou todas as áreas das nossas vidas. Incluindo a macro e a microeconomia. Ambos fatores que influenciam na crise habitacional que chega em proporções mundiais em 2022.
Para atenuar os efeitos econômicos da pandemia, boa parte dos Bancos Centrais do mundo diminuiu a taxa básica de juros. Alguns zeraram a taxa, a exemplo do Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos). De março de 2020 até março deste ano, a taxa básica de juros norte-americana ficou próxima a zero.
Vale ressaltar a importância dessa taxa, que recai diretamente no custo do crédito que os bancos oferecem ao público. Em tese, quanto menor a taxa de juros, menos custoso é o financiamento (principalmente, o financiamento a longo prazo). Ou seja, o financiamento ficou mais barato e a procura por imóveis subiu, o que levou os preços a caírem momentaneamente.
Outro fator gerado pela pandemia que impacta o setor imobiliário tem um aspecto comportamental. Ao se verem mais livres para trabalhar de qualquer lugar, sem precisar estarem presente fisicamente em um endereço, muitas pessoas decidiram fugir das grandes cidades. No Brasil, a busca por imóveis a mais de 100 km de distância de São Paulo subiu 340% entre 2020 e 2021, indicam dados do ZAP Imóveis. Nos Estados Unidos, nessa mesma época, houve queda na população de cidades com mais de um milhão de habitantes, como Nova Iorque, Chicago, Los Angeles e Filadélfia.
Crise de moradia é reflexo de um problema em cadeia
Paralelamente, as indústrias desaceleraram a produção. No Brasil, 76% do setor industrial reduziram as atividades. Na China, a produção industrial do primeiro trimestre de 2020 chegou a ter sua primeira contração em 30 anos. De acordo com o FMI, as paralisações intermitentes devido à Covid foram responsáveis por 40% das restrições na cadeia de fornecimento em 2022.Os efeitos foram sentidos nos anos seguintes.
Não bastassem os desafios que a cadeia de fornecimento global teve que enfrentar em 2021, veio a guerra da Ucrânia em 2022. O conflito pegou o mundo de surpresa e trouxe oscilações fortes para o valor do petróleo e outros segmentos de negócios nos quais os países têm influência direta ou indireta.
Para o setor de construção, a quebra na cadeia de suprimentos foi sentida no aumento dos custos em geral. De acordo com a Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip), considerando apenas as despesas com mão de obra e material, o custo do metro quadrado na construção de uma casa no Brasil subiu 47,4% nos últimos 5 anos. Já o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC) teve alta de mais de 14% em 2021, segundo dados divulgados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Inflação chegou
Os juros baixos, em condições sem adversidades, leva a uma redução do custo do crédito, logo, do preço dos imóveis e objetos em geral. No entanto, o que aconteceu nos últimos dois anos estava longe de ser uma normalidade. Ou seja, a redução dos preços – inclusive de imóveis – não se manteve por muito tempo, e se seguiu de um desequilíbrio da conta entre oferta e demanda. Já que a oferta estava prejudicada pelos lockdowns e pela restrição de matéria prima. O resultado foi a inflação alta.
Mesmo com a normalização das atividades, devido à imunização da população e, consequentemente, a redução dos casos de infecções graves causadas pelo Coronavírus, a retomada financeira não aconteceu, pois a economia global já estava sob o peso da inflação.
Nos Estados Unidos, ela já está próxima a 8%, mas chegou a mais de 9% no meio de 2022 – um dos valores mais altos em 40 anos. Na União Europeia, em julho, a inflação chegou ao acumulado de 8,9%. No Brasil, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) chegou em 13% no final de 2021 e agora está em torno de 10%.
O cenário levou as autoridades monetárias a seguir o caminho contrário: aumentar os juros a toque de caixa. No Brasil, a Selic, taxa de juros básica definida pelo Banco Central, foi de 2% ao ano para 13,75%, em apenas dois anos. Nos Estados Unidos, a taxa básica de juros foi de 0,5% em março deste ano para 2,5%. Ou seja, o crédito ficou mais caro.
Todos esses números refletem em dois pontos importantes da crise: os preços dos imóveis passaram a subir, influenciados pelo desequilíbrio entre demanda e oferta, e o custo de vida das pessoas aumentou ainda mais, com redução da renda e do poder de compra da população.
Gentrificação 3.0
Com o crédito mais caro, devido à alta dos juros e ao poder de compra corroído, a alternativa para a moradia é o aluguel. “O financiamento imobiliário tem ficado mais caro em todo o Brasil. Não só porque o preço médio do móvel tem aumentado, mas principalmente porque as taxas de juros de financiamentos imobiliários estão mais caras, o que tem diminuído a acessibilidade das famílias brasileiras a financiamentos imobiliários”, disse o economista do DataZAP+, Pedro Tenório, ao Jornal Nacional.
Em algumas regiões brasileiras, como em Belo Horizonte, o aluguel residencial chegou a subir 18%, entre 2021 e 2022. Cidades como Goiânia e Florianópolis tiveram alta de mais de 25%. E isso é sentido pelas famílias. Dados de pesquisa do Quinto Andar indicam que o brasileiro usa 30% da sua renda em aluguel; já o financiamento compromete cerca de 17% da renda familiar.
Nos Estados Unidos, cerca de 11 milhões de pessoas gastam mais da metade da sua renda em aluguel. Na Ásia, em megacidades como Hong Kong e Cingapura, os cidadãos comprometem, em média, 50,2% da renda com aluguel. Um dado irônico visto que essas capitais costumam vislumbrar nas listas de cidades mais sustentáveis e “smart” do mundo.
Na Europa, a situação é ainda mais complicada: a volta do turismo para as capitais europeias trouxe um aumento da procura por residências temporárias, o que elevou ainda mais os preços de apartamentos e casas. De acordo com o HousingAnywhere International Rend Index, o valor da conta dos imóveis residenciais alugados subiu 19,35% na Europa entre o segundo trimestre de 2021 e o mesmo período de 2022.
Desde 2006, o aluguel em Berlim aumentou de 140% a 200%, diz Andrej Holm, pesquisador de habitação da Universidade Humboldt de Berlim, em entrevista ao site Assemble Papers. “Nos anos 2000, estávamos discutindo gentrificação. Agora estamos falando de uma crise habitacional. Estamos vendo o aumento dos aluguéis e o deslocamento até mesmo na periferia da cidade. Não há área em Berlim que não esteja sendo afetada.”
Novas formas de construir – e financiar
As soluções para essa crise, assim como as suas explicações, são multifatoriais. Em parte, a gestão pública precisa responder rápido ao déficit populacional por meio de programas de habitação acessível para a população. Até mesmo o ‘refurbish’ (revitalização e readequação) de prédios antigos para moradia, como está sendo feito no Rio de Janeiro, é um caminho para aumentar a quantidade de espaços ofertados para moradia a preços acessíveis.
Além disso, as companhias privadas têm cada vez mais tomado as rédeas para apoiar a construção de novos espaços de moradia. A Disney, por exemplo, está construindo moradias voltadas para seus colaboradores em Orlando e já projeta abrir sua “própria cidade” voltada para funcionários e para entusiastas em geral nos Estados Unidos. O Google também lançou um projeto para construir mais de 1,85 mil casas na California, voltadas aos seus funcionários.
O setor de construção, por sua vez, age em busca de mais eficiência, de forma a refleti-la em redução de custos. Um dos exemplos é o uso de construção modular, que acaba tornando o espaço da obra uma “smart-construção”. Os módulos pré-fabricados têm potencial de reduzir em 50% o tempo total de uma construção, o que ajuda na redução dos custos, reduzindo o preço final que chega à população.
A procura por materiais mais sustentáveis, e menos custosos, também é parte importante das estratégias para redução do índice de custos de obras. Tudo isso encaixa na ideia de mitigar os riscos macroeconômicos enquanto garante, para as pessoas, alternativas mais acessíveis à moradia.