Cidade Quintal: quando o espaço urbano se torna acolhedor

A Cidade Quintal é uma iniciativa que vai além da revitalização urbana, cultivando espaços acolhedores e sustentáveis no Espírito Santo.

Por Redação em 19 de dezembro de 2023 7 minutos de leitura

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Juliana Lisboa (Foto: Thais Gobbo)

A história de Juliana Lisboa, cofundadora da organização Cidade Quintal, é um relato de resiliência e criatividade. Nascida no interior da Bahia e atualmente influenciando a paisagem urbana de Vitória, no Espírito Santo, Juliana traçou sua jornada desde sua mudança para a capital capixaba aos 13 anos de idade. Formada em Design pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ela desempenha um papel fundamental na realização de intervenções urbanas em vários bairros de Vitória por meio do projeto Cidade Quintal.

A semente da iniciativa foi plantada em 2016, por meio de uma colaboração com o artista e arquiteto Renato Pontello. Ambos uniram forças em um projeto durante as Olimpíadas, ao qual as prefeituras propuseram intervenções de arte urbana nas cidades por onde a tocha olímpica passaria. Embora a pintura de 2 mil metros quadrados tenha sido aprovada pela comunidade local, os profissionais reconheceram que não havia tido envolvimento suficiente das pessoas no processo.

“A experiência nos levou a uma nova abordagem. Agora, buscamos uma conexão real com os moradores, realizando entrevistas, reuniões e trocas de ideias para entender os desejos da comunidade. Essa mudança de perspectiva foi fundamental, pois começamos a entender a importância de envolver as pessoas no processo criativo, criando uma conexão mais significativa com os espaços públicos nos quais intervimos”, disse a Juliana. 

O próprio nome do projeto surgiu a partir das contribuições das comunidades. Ao realizar um mapeamento das palavras utilizadas por moradores de uma comunidade em Vitória para descrever seus lares, um senhor começou a refletir sobre o significado do bairro para ele. Ele compartilhou que enxergava o bairro como seu quintal, um lugar onde se sentia à vontade para trazer seus filhos, onde ficava tranquilo e até soltava pipa. Essa abordagem reflete a essência da Cidade Quintal, que busca criar uma cidade acolhedora onde as pessoas se sintam bem, sintam-se parte e à vontade.

“Buscamos não apenas transformar os espaços estruturalmente, mas também de forma simbólica, explorando novos usos, apropriações e funções alinhadas aos desejos das pessoas. Propomos a ideia de comunidade, destacando que esses espaços não devem ser vistos como responsabilidade exclusiva de cada indivíduo, mas como algo compartilhado”, explica. Essa perspectiva parte de um olhar mediador, visando ativar e envolver toda a comunidade, permitindo que cada pessoa se coloque ativamente no contexto.

Cidade Quintal: uma jornada de resiliência urbana

A construção da parceria entre a Cidade Quintal e os territórios ocorre de maneira gradual, envolvendo ambas as partes em encontros. Por vezes, a iniciativa de colaboração parte do próprio território, que busca redefinir sua relação com o espaço e procura por parceiros engajados. Em outros momentos, é a Cidade Quintal que, por meio de pesquisas, identifica locais específicos e busca meios de promover a ativação deles.

O bairro Floresta, em Vitória/ES, é um exemplo desse processo. Após a mobilização dos moradores, um antigo lixão a céu aberto foi transformado em uma praça. Porém, uma praça “cinza” e com pouca estrutura de lazer. Além disso, um trágico evento ocorreu um mês após a conclusão da obra: o assassinato do filho de um morador na praça. Isso gerou insegurança e criou um estigma para aquele ambiente, levando os pais a proibirem seus filhos de frequentar o espaço. Foi quando a comunidade buscou a colaboração da Cidade Quintal e deu início ao projeto “Aqui se brinca”. 

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Projeto “Aqui se brinca” na praça da comunidade do bairro Floresta (Foto: Reprodução/Site Cidade Quintal)

“Inicialmente, fomos chamados para trazer mais cores ao lugar, pois ele estava bastante sóbrio. No entanto, ao vivenciar o processo de cocriação com as crianças, identificamos algumas dinâmicas em dois pavimentos distintos do local: o espaço do brinquedo no primeiro e o espaço da brincadeira no segundo”, contou Juliana.

Dessa forma, a Cidade Quintal fez um mapeamento dos tipos de brincadeiras das crianças, conduzindo diversas atividades de prototipagem de jogos e brincadeiras antes de determinar as escolhas de design mais adequadas para implementar.

“De maneira gradual, os pais foram incorporados à iniciativa. Um local antes utilizado como espaço para os cachorros fazerem xixi foi transformado em uma floreira pelas mãos de um pedreiro da comunidade, que era pai de várias crianças que participaram do projeto”, disse Juliana. Para ela, o mote principal de cada ação é desenvolver estratégias de reaproximação entre as pessoas e o bairro, promovendo não apenas a revitalização do espaço, mas a revitalização do senso de comunidade.

Juliana observa que iniciativas como o Projeto Aqui se Brinca também enfrentam seus desafios. A logística, que envolve subir o morro com todas as madeiras, cimento e latas de 18 litros de tinta por escadarias, apresenta desafios consideráveis. Além disso, aspectos burocráticos e questões humanas também se manifestam ao longo do caminho.

“Às vezes, há questões burocráticas relacionadas à gestão municipal. Em outras ocasiões, lidamos com conflitos interpessoais, algo comum em qualquer lugar. Não podemos romantizar a ideia de que todos estão de mãos dadas e querendo seguir na mesma direção. É necessário lidar e mediar interesses, pois no espaço público, o conflito de interesses é uma característica marcante”, pontua a designer. 

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Sustentabilidade em foco

A participação comunitária é central nos trabalhos da Cidade Quintal também no que tange à sustentabilidade, como no projeto de revitalização da comunidade São Benedito, no Território do Bem. Ao interagir com os moradores e compreender as preocupações ligadas à gestão do lixo plástico na região, surgiu a iniciativa de criar um banco a partir de tampinhas de garrafa, para ser instalado no mirante da comunidade, proporcionando uma visão panorâmica da Grande Vitória. “Instalamos oito coletores pelo bairro, incluindo comércios e escolas. Por um mês esses coletores ficaram à disposição. As crianças ficaram muito engajadas, foi um processo de educação ambiental mesmo”, contou. 

No término do prazo estabelecido, as tampinhas foram encaminhadas para o Laboratório de Reciclagem de Plástico, uma iniciativa conjunta da Cidade Quintal e do Atêlie de Ideias, onde passaram por processos de modelagem e derretimento para serem transformadas em ripas utilizadas na confecção do banco. Hoje, o banco é um dos “xodós” da comunidade no projeto.

“Acredito que tudo isso repercute de maneiras significativas na mente das pessoas em relação à construção coletiva de um espaço, especialmente no contexto da reciclagem, que por vezes pode parecer um processo um tanto abstrato. Ao mostrar o que é possível criar a partir desses materiais, escapamos do âmbito puramente discursivo e passamos para a experiência real, onde eles podem tocar, sentir, ver a textura e compreender melhor o impacto”, diz.

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Transformando resíduos em arte

Antes de estabelecer o Laboratório de Reciclagem, a Cidade Quintal já havia implementado uma experiência pioneira em reciclagem, conhecida como Re-Lata. Essa iniciativa foi concebida para ressignificar os resíduos sólidos gerados durante as pinturas murais promovidas pela Cidade Quintal. 

Murais do projeto “Ativar Ilha do Príncipe” (Foto: Reprodução/Site Cidade Quintal)

“Durante um longo período, concentramos nossos esforços na realização de pinturas murais, o que gerava consideráveis resíduos, principalmente latas de tinta e outros materiais sólidos. Ao nos depararmos com a questão do impacto ambiental negativo de nosso projeto em locais tão bonitos, vinculados ao turismo e ao meio ambiente, começamos a refletir e questionar essa dinâmica”, afirma.

Por meio do Re-Lata, o grupo promove um diálogo com o público sobre processos de produção circulares e sustentáveis na cidade, permitindo que as pessoas levem para casa uma parte do trabalho de arte-mural realizado.

Foto: Juliana Lisboa

Após cada operação de pintura, todas as latas utilizadas, são coletadas, higienizadas e ilustradas pela equipe da Cidade Quintal. As latas decoradas são comercializadas e todo o lucro é destinado a projetos socioambientais para apoiar as necessidades da comunidade.

“O recurso arrecadado é reinvestido na própria comunidade, sendo doado a um coletivo local que esteja atendendo a alguma demanda emergente. Ao longo das edições, essas doações já incluíram itens como cestas básicas, ações voltadas para o Dia das Crianças e até mesmo a concepção de um parquinho”, compartilha Juliana.  

A distribuição das latas ocorre durante um evento de bate-papo sobre sustentabilidade urbana, no qual o trabalho realizado no território e a destinação das vendas são contextualizados. Desde 2019, a Cidade Quintal não descartou nenhuma lata, conduzindo onze edições bem-sucedidas do Re-Lata e ressignificando centenas de latas até o momento.

A Cidade Quintal costura histórias e tece a convivência

Foto: Thais Gobbo/Site Cidade Quintal

O fortalecimento das narrativas comunitárias e o impulsionamento da convivência é um dos focos da Cidade Quintal. Juliana conta que a potencialização da convivência acontece organicamente. A operação da Cidade Quintal dura entre seis e um ano. Nesse período, a organização realiza diversas ações recorrentes dentro da comunidade e aos poucos se aproximam grupos específicos de pessoas. 

O processo é gradual, com várias atividades recorrentes que provocam diferentes tipos de convivência, adaptadas à natureza de cada espaço. Podem ser voltadas para idosos, crianças ou festas populares. O projeto vai acontecendo e as coisas ao redor também vão se alinhando. Além disso, livres apropriações também começam a acontecer.

Em São Benedito, Vitória/ES, um trajeto de murais foi elaborado para narrar a história do bairro, acompanhado por áudio para enriquecer a experiência dos visitantes enquanto exploram o local. Hoje, outros comerciantes já pintaram e reformaram suas fachadas, expressando o desejo de participar desse movimento, pois percebem um aumento no fluxo de pessoas na região devido à intervenção. 

Rota de São Benedito (Foto: Radan Brendon/Prefeitura de Vitória)

“É legal quando as pessoas se apropriam, pintam e cuidam dos espaços. Quando estabelecemos uma campanha de coleta de tampinhas e a comunidade continua, em um mês ela já entende que aquilo não é lixo, mas algo valioso em sua própria casa. Então, esses são os efeitos que queremos cultivar, uma continuidade de mudanças de hábitos para promover posturas mais colaborativas”, conclui. 

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