Cidade responsiva é cidade consciente, diz Luciana Fonseca

Para a arquiteta e doutora em planejamento urbano, criadora do Instituto Cidades Responsivas, responsividade requer as pessoas como meio e fim.

Por Nathalia Ribeiro em 30 de outubro de 2024 8 minutos de leitura

cidade responsiva
Luciana Fonseca (Foto: Divulgação)

A responsividade, que antes se restringia ao mundo digital, agora se faz presente de maneira inovadora no urbanismo, transformando a forma como os cidadãos vivem e interagem nas cidades. Mas o que realmente caracteriza uma cidade responsiva? Para a arquiteta e urbanista Luciana Fonseca, doutora e mestre em planejamento urbano, trata-se da capacidade de se adaptar continuamente às necessidades de seus habitantes. Como sócia fundadora e diretora do Instituto Cidades Responsivas, além de Chapter Lead de Urbanismo no Grupo OSPA, ela acredita que isso envolve a utilização de dados e tecnologias inovadoras, mas também uma abordagem centrada no ser humano, onde a interação entre as pessoas e o ambiente urbano é otimizada para promover uma qualidade de vida melhor e mais inclusiva.

Em entrevista ao Habitability, Luciana compartilha sua visão sobre como a tecnologia e a análise de grandes volumes de dados podem potencializar a responsividade nas cidades, criando um espaço onde o cidadão é mais do que um mero espectador: ele se torna um ativo participante no processo de urbanização.

Como você define uma cidade responsiva?

Luciana Fonseca: O termo ‘responsividade’ não é originalmente do urbanismo. Ele pode ser aplicado a diversos campos, mas ganhou mais destaque no contexto digital, como no caso de sites responsivos, que conseguem se adaptar rapidamente às demandas. Um sistema responsivo é aquele que tem um alto nível de adaptabilidade. O mesmo princípio se aplica a uma cidade.

De maneira simples, podemos entender que uma cidade responsiva é um sistema causal, assim como em outros exemplos de ação e reação. Por exemplo, o amor romântico sendo uma resposta aos casamentos ou o movimento ‘paz e amor’ surgindo em reação às guerras. O urbanismo modernista foi uma resposta ao caos gerado pela Revolução Industrial.

O que diferencia uma cidade responsiva de uma cidade inteligente?

Luciana Fonseca: O conceito de ‘sistema responsivo’ está fortemente ligado à ideia de cidades inteligentes, especialmente no que tange à tecnologia. Se pensarmos que o movimento moderno foi uma resposta ao caos da Revolução Industrial, com a organização rígida das zonas urbanas — onde se mora, onde se trabalha etc. —, isso refletia um desejo de controle. Foi nessa época que a ciência do urbanismo e os primeiros planos diretores surgiram.

No entanto, o que vemos nos anos 2000, é que ainda estamos operando sob essa lógica. O sistema de planejamento urbano, amplamente normativo e impositivo, já não consegue mais lidar com a complexidade atual. Ele se tornou ineficaz para controlar as dinâmicas das cidades. A ideia da cidade responsiva surge, então, com uma nova ótica: entender que o ser humano é o maior sensor e que a cidade funciona como um sistema orgânico, que precisa operar de forma mais propositiva, autônoma e responsiva.

De que forma isso se conecta à tecnologia?

Luciana Fonseca: Uma cidade responsiva é, por natureza, compassiva, adaptável e utiliza a tecnologia de maneira mais distribuída. O conceito de responsividade sempre existiu, mas com a revolução digital e informacional, ele se acelera, trazendo novas ferramentas que transformam o planejamento urbano.

Como a integração de tecnologia e planejamento urbano resulta em uma cidade responsiva?

Luciana Fonseca: Em uma cidade inteligente tradicional, por exemplo, as câmeras nas sinaleiras enviam informações para uma central de planejamento, onde pessoas analisam e respondem ajustando o tempo dos semáforos ou enviando equipes. São ações centralizadas. Já uma cidade responsiva funciona como o Waze, onde os cidadãos inserem dados diretamente no sistema e a cidade reage em tempo real de forma distribuída, tornando-se mais ágil e colaborativa.

Nosso MBA [do Instituto Cidades Responsivas], por exemplo, busca criar artefatos que tornem as cidades mais dinâmicas, como metodologias de ação, frameworks, aplicativos, sites, consultorias e produtos. É um modelo transformador, que desconstrói e reformula a maneira como a cidade interage com seus habitantes e evolui.

Quais são os desafios para implementar esse tipo de metodologia?

Luciana Fonseca: O maior desafio é conseguirmos responder no tempo certo às demandas que surgem. Temos muitos dados disponíveis e conseguimos interpretá-los, mas, muitas vezes, não conseguimos agir de forma concreta, seja porque as respostas ainda são muito centralizadas, ou porque nós, como os principais sensores da cidade, não estamos suficientemente sensibilizados para compreender o nosso papel. Em uma cidade responsiva, a responsabilidade dos cidadãos é imensa e o engajamento precisa ser intenso. Lidar com a transparência dos dados exige uma ética profunda. Por isso, eu sempre digo que uma cidade responsiva, é uma cidade consciente. Essa consciência se reflete na capacidade dos cidadãos de se engajar com as informações e nas decisões que moldam o ambiente urbano, criando um sistema mais colaborativo e eficaz.

É nesse cenário que surge a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), por exemplo. Todas as áreas da sociedade estão tentando se preparar para esse novo contexto, estabelecendo regras e leis. Isso é o que define uma cidade responsiva: um espaço onde a tecnologia, os dados e a responsabilidade dos cidadãos estão em constante interação, exigindo um equilíbrio ético e transparente.

Poderia destacar um exemplo de cidade responsiva? 

Luciana Fonseca: No momento, nenhuma é 100% responsiva. Existem diferentes níveis de responsividade, com algumas cidades mais avançadas nesse aspecto. Em certos lugares, há uma cultura de base mais desenvolvida, onde o planejamento urbano não precisa ser tão normativo, porque há uma compreensão coletiva mais madura. Há cidades que possuem uma maturidade digital impressionante, enquanto outras ainda têm seus planos diretores na gaveta do prefeito.

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Como está o Brasil nesse cenário?

Luciana Fonseca: Há avanços interessantes, como em Fortaleza/CE e Recife/PE, onde iniciativas como o auto licenciamento e plataformas digitais mais sofisticadas estão sendo implementadas. No Rio de Janeiro/RJ, o projeto Reviver Centro é um excelente exemplo no campo de retrofit. Já em São Paulo, o georreferenciamento através da plataforma GeoSampa possibilitou ações inovadoras. Em termos de governança de dados, São Paulo está melhor organizada, facilitando o trabalho.

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E no contexto global?

Luciana Fonseca: Globalmente, Nova Iorque é um destaque. O sistema digital deles é incrível, permitindo que os cidadãos imputem dados e participem ativamente das decisões. Esse tipo de compartilhamento de informações e inteligência é fundamental para o conceito de cidades responsivas.

De que maneira a acessibilidade e a inclusão social se integram ao desenvolvimento de uma cidade responsiva?

Luciana Fonseca: Sabemos que a vulnerabilidade social é uma realidade no nosso País, que enfrenta um desequilíbrio significativo. A dificuldade, no entanto, está em traduzir esses dados em ações. Utilizando mapas e números, podemos demonstrar que uma pessoa que depende do transporte público enfrenta um acesso limitado a oportunidades, criando uma armadilha socioeconômica. 

Os resultados podem indicar [para um investidor] que realizar um retrofit em um edifício público vazio e abandonado, com o objetivo de abrigar a população de baixa renda em uma área central, é um ótimo investimento a médio prazo. Dessa forma, estamos contribuindo para uma solução. É importante ressaltar que não se pode criar guetos, pois, se o sistema é dinâmico e colocamos todos no mesmo lugar, eles estarão fadados a viver nesse ciclo. 

Qual modelo você recomenda para que esse processo ocorra, sem esse risco de se criar guetos?

Luciana Fonseca: É necessário que a população esteja distribuída pela cidade de maneira pulverizada. Isso requer um planejamento, alinhado com o trabalho do plano diretor, que estipula que devemos ter uma porcentagem de cotas para habitação de interesse social. Historicamente, muitos bairros adotaram a lógica de concentrar esses grupos em determinadas áreas, em parte porque outras pessoas não desejam viver próximas a elas. Isso traz à tona outras questões que precisamos lidar. Mas, atualmente, já se entende que para os negócios é mais interessante fazer a distribuição de maneira pulverizada para não ‘guetificar’ em parte nenhuma. No entanto, o ferramental disponível ainda é limitado em termos de instrumentos de políticas públicas.

Quais ações podem ser implementadas para expandir esse ferramental e garantir que as políticas de urbanismo e habitação social sejam mais efetivas? 

Luciana Fonseca: Washington Fajardo, quando esteve à frente da Secretaria de Urbanismo do Rio de Janeiro, desenvolveu uma plataforma voltada para o retrofit do centro histórico da cidade. A iniciativa surgiu com a intenção de revitalizar áreas abandonadas e degradadas do centro, que estavam sob um grande potencial imobiliário. Para isso, ele criou uma maquete digital que permite visualizar o Centro Histórico e acessar um dashboard interativo, onde é possível pesquisar preços e compreender a situação dos imóveis naquela região. Tinha-se acesso a uma enorme quantidade de dados, muitos dos quais sensíveis. Então ele teve a ideia de listar os imóveis de propriedade única, pois dessa forma os dados pessoais são preservados. Isso permitiu que o mercado identificasse áreas promissoras para investimento e evitassem complicações relacionadas a heranças e inventários. Hoje, boa parte dos imóveis já estão em processo de negociação. Paralelamente, podemos unir um plano setorial para uma determinada área, que estabelece que precisam existir alguns aspectos que, estrategicamente, atrairão uma população específica.

Como as cidades responsivas atendem às demandas desencadeadas pelas crises ambientais?

Luciana Fonseca: Uma cidade responsiva precisa de engajamento e responsabilidade, com uma dimensão ética e uma visão holística do sistema: é essencial compreender o todo para evitar catástrofes maiores, como as que já enfrentamos aqui em Porto Alegre/RS. Sabemos que, ao envolver o mercado, a transformação é mais impactante. No nosso MBA temos um trabalho chamado Rios Urbanos. O objetivo é incentivar o mercado imobiliário a investir em áreas próximas a rios, direcionando esses investimentos para subsidiar o tratamento da água.

A participação social é então premissa para essa integração das questões e preocupações ambientais no contexto urbano?

Luciana Fonseca: A cidade contemporânea precisa da participação de todos: você não está no engarrafamento, você é o engarrafamento! Enquanto não entenderem a diferença, as coisas não vão mudar. As pautas de ESG que estão ganhando espaço, com o mercado criando indicadores e mostrando, por exemplo, o quanto uma rua verde pode valorizar um imóvel. Isso faz com que as pessoas entendam que essa mudança realmente pode gerar valor e, a partir disso, elas podem querer tornar a cidade mais verde, com mais corredores ecológicos. Então, há iniciativas surgindo nessa linha, com projetos em praças, usando aplicativos com gamificação que envolvem a sociedade civil.

Como governos, empresas, cidadãos e a academia podem colaborar de maneira eficaz para impulsionar o desenvolvimento de cidades responsivas?

Luciana Fonseca: Por meio de parcerias. A academia é essencial. O conhecimento precisa ser compartilhado com o mundo. No entanto, muitos intelectuais preferem manter o saber restrito. Quando alguém como Zygmunt Bauman publica um livro sobre modernidade líquida, trazendo conceitos complexos de forma acessível, a academia o critica, justamente porque ele ousa democratizar o conhecimento filosófico.

A escola formal enfrenta um desafio enorme para se adaptar, ela é um verdadeiro dinossauro, não apenas por ser antiga, mas também por ser pesada e burocrática, o que faz com que as mudanças demorem muito a acontecer. Eu consigo realizar o que faço hoje porque o Instituto não está preso ao MEC. Recentemente, estudei a viabilidade de criar uma graduação, avaliando custos, tempo e requisitos necessários. Além de gastar uma fortuna, eu teria que considerar diversas premissas físicas, como salas específicas e outras estruturas, tudo para atender às exigências federais. Isso pode acabar resultando em um sistema que não contempla tudo que estou tentando desenvolver, deixando os alunos infelizes e frustrados. Para mim, essa é uma parte importante. Precisamos agir com propósito, se eu perder meu propósito agora, a transformação se tornará ainda mais difícil.

Como você enxerga o futuro das cidades responsivas em países emergentes, onde os desafios de infraestrutura e desigualdade são mais acentuados?

Luciana Fonseca: Acredito que tudo vai depender do nosso comportamento e da nossa evolução como espécie. Tenho falado muito sobre o urbanismo darwinista, uma teoria que relaciona a evolução das espécies com o urbanismo. O sucesso dessa transformação dependerá do quanto estamos preparados para isso. Pessoalmente, quanto mais alunos eu formar e quanto mais eles espalharem e polinizarem essas ideias, maior será o impacto.

É importante aceitar o que é inexorável, especialmente em relação à civilização, que se tornou algorítmica. Isso não vai mudar; se houver mudanças, elas tendem a ser para uma abstração ainda maior. A questão é que as pessoas precisam se preparar para o futuro e isso envolve compreender o cenário preditivo de um gêmeo digital, que consiste em identificar padrões e simular possibilidades. O que temos hoje, como automóveis e smartphones, poderá mudar nos próximos dez anos. O futuro está se desenhando e precisamos estar prontos para ele. Essa é a essência da evolução, o novo sempre surge. A pergunta é: como nos prepararemos para isso?