No cruzamento entre arquitetura e tecnologia reside um campo ainda pouco explorado, mas cheio de potencial para transformar a maneira como concebemos e habitamos as cidades. É a esse espaço que Guilherme Nunes de Vasconcelos tem dedicado sua carreira, buscando compreender como essas áreas podem dialogar para criar ambientes urbanos mais inteligentes e humanos.
Arquiteto e doutor pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde também atua como professor desde 2016, Guilherme começou sua trajetória na prática, desenvolvendo projetos e obras. Ao ingressar na academia, encontrou na pesquisa a oportunidade de aprofundar questões que vão além da construção física, focando na percepção humana e no uso das tecnologias digitais no projeto arquitetônico. À frente do Núcleo de Experimentações em Tecnologias Digitais (NEXT), ele busca desbravar caminhos para que a inovação tecnológica se alinhe à experiência sensorial e às necessidades reais das pessoas.
Nesta entrevista exclusiva para o Habitability, Vasconcelos reflete sobre o desafio de integrar avanços tecnológicos ao urbanismo brasileiro, as limitações enfrentadas pela academia e pelo setor público e as possibilidades que conceitos como Inteligência Artificial e Gêmeos Digitais abrem para o futuro das cidades.
Como você avalia a evolução do conceito de cidades inteligentes? Quais transformações e novos caminhos esse conceito vem assumindo diante das demandas atuais da sociedade e dos avanços tecnológicos?

Guilherme Nunes de Vasconcelos: O conceito inicial de cidade inteligente estava fortemente ligado à automação, focando em tornar o ambiente mais eficiente por meio de tecnologias que controlavam desde a iluminação até preferências pessoais, buscando otimizar o tempo das pessoas. No entanto, essa otimização intensa levantava uma contradição: embora busque mais eficiência, as pessoas acabam tendo ainda menos tempo livre, o que indica que algo no sistema não está funcionando bem.
Hoje, a visão sobre cidades inteligentes evoluiu para além da simples automação e eficiência, incorporando preocupações com bem-estar, áreas verdes, lazer e qualidade de vida, aspectos que não dependem apenas da tecnologia. Essa mudança foi acelerada pelo avanço da Inteligência Artificial e por eventos recentes, como a pandemia, que evidenciaram a necessidade de espaços urbanos que sejam adequados para viver, não apenas para trabalhar, especialmente em regiões como a América Latina, onde as cidades ainda são, em grande parte, inadequadas para esse estilo de vida mais equilibrado.
Quais impactos as tecnologias têm provocado na urbanização e na gestão das cidades brasileiras?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Temos muito mais recursos digitais disponíveis. Em Belo Horizonte, por exemplo, há a plataforma BH Maps, que oferece informações sobre terrenos, ocupações e aplicação da legislação em determinadas áreas. Esses dados podem ser acessados diretamente, o que é uma grande vantagem. Quanto menos dependermos da política de balcão, melhor. Embora essas práticas ainda existam, o acesso facilitado a plataformas como essa representa um avanço rumo a uma gestão mais transparente.
Essa transparência na gestão e nas proposições é fundamental. O orçamento participativo, que já foi referência para o Brasil inteiro, permitia à população escolher as obras a serem realizadas, mesmo que as opções tivessem sido previamente selecionadas por uma equipe técnica. Ainda que hoje esteja um pouco em desuso, esse tipo de iniciativa mostra a importância de caminhos mais transparentes. Tecnologias que favorecem isso vêm sendo incentivadas e são muito bem-vindas. No fim das contas, também otimizam processos e otimização, de recursos, de tempo, de tudo. Essa é a grande palavra da nossa era!
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Na sua visão, essas tecnologias têm potencial para ampliar a participação cidadã e fortalecer o engajamento democrático nas decisões relacionadas ao espaço urbano?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Essas ferramentas digitais facilitam o engajamento das pessoas com determinadas questões, mas esse engajamento acaba ficando limitado a manifestações digitais do tipo “clique aqui para escolher”, “clique aqui para aprovar tal coisa”. Isso gera um sentimento positivo, como a mudança de uma lei da qual você participou da votação online, mas falta algo mais profundo. Acredito que deveria haver um tipo de participação que se organizasse no próprio espaço físico, pessoas se encontrando, conversando, dizendo algumas coisas que precisam melhorar e se questionando sobre o que podem fazer para isso. Esse tipo de manifestação se aproxima da ideia de democracia representativa, mas que, na prática, tende a não acontecer ou acontece de forma muito limitada. Muitas vezes nem sequer sabemos quem são nossos representantes. Então sim, a participação digital tende a crescer, mas ela também “amputa” uma parte importante do processo. O Marshall McLuhan [teórico e educador canadense da comunicação] fala muito sobre isso, que toda tecnologia amplia uma coisa e amputa outra. E no processo público isso também se aplica. Nunca é só ganho, sempre há alguma perda.
Como a falta de letramento digital pode impactar essa inclusão e a participação dos cidadãos em cidades cada vez mais conectadas e dependentes da tecnologia?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: A anedota dos irmãos Lumière ilustra isso bem. Quando exibiram o primeiro filme do trem chegando à estação, dizem que as pessoas correram da sala com medo da imagem. Algo semelhante acontece hoje, dentro das nossas casas, como o pai que manda um vídeo achando que é real, quando na verdade é um jogo, ou a mãe que acredita que ganhou um prêmio falso.
Esses exemplos mostram como o letramento digital é fundamental. À medida que mais tecnologias são introduzidas, se as pessoas forem deixadas à margem do uso dessas ferramentas, isso tudo não adianta de nada. E o mais preocupante é que quem geralmente fica de fora desse processo são justamente os que já estão à margem da participação social. Enquanto os empresários continuam sendo representados, a Dona Maria, lá do Capão Redondo, é quem acaba caindo no golpe do INSS, no golpe do Pix ou acreditando no Tigrinho.
Quais são as possíveis soluções para garantir que essas pessoas sejam, de fato, integradas em todo esse sistema?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Sinceramente, não é uma questão fácil de resolver. E o mais cruel é que, muitas vezes, a resposta oferecida a essas pessoas é algo do tipo: ‘Depois de trabalhar 16 horas por dia, vai lá fazer um curso no Senai pra aprender a usar o WhatsApp’. É muita injustiça. O problema é bem mais complexo que isso.
As cidades inteligentes dependem intensamente da coleta e do uso de dados, o que naturalmente levanta importantes questões éticas. Como você enxerga os desafios relacionados à privacidade e à segurança dos dados das cidades e de seus cidadãos nesse contexto?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Talvez devêssemos olhar para quem já está fazendo isso melhor do que a gente, e nesse caso, estou me referindo à China. Apesar das dúvidas e questionamentos sobre o que acontece por lá, não dá para ignorar o que está sendo feito. Pessoas que foram à China relataram uma mudança de paradigma muito significativa. Enquanto no Ocidente estamos acostumados à lógica de “vigiar para punir”, filmar para identificar crimes e pegar placas de carro, lá o modelo é de “vigiar para cuidar”. Achei essa inversão muito interessante, embora tenha dúvidas sobre sua aplicabilidade no Ocidente, onde o foco ainda é muito mais punitivo. Mas sob a ótica do cuidado, o cenário parece um pouco menos perverso. E, sendo realista, já vendemos nossa alma há muito tempo quando o assunto são os dados.
O que isso representa para a privacidade e para a autonomia dos cidadãos?

Guilherme Nunes de Vasconcelos: Desde o lançamento do Gmail em 2005, que ofereceu 1 GB de espaço gratuito, começamos a entregar uma enorme quantidade de dados pessoais, como arquivos, fotos e informações de localização. Compartilhamos facilmente dados no WhatsApp e outras plataformas. A maior parte dessas informações está nas mãos de empresas privadas, e apesar da desconfiança em relação a órgãos públicos devido a vazamentos e espionagem, essa troca de dados já é inevitável.
Esse cenário exige que enfrentemos o debate sobre privacidade e ética de forma direta. No livro de Edward Snowden com Julian Assange, eles destacam que, enquanto não lembramos do que pesquisamos no Google há 2 semanas, a empresa sabe exatamente o que você buscou. Isso revela um excesso de zelo seletivo, já que há muito tempo ultrapassamos a linha da exposição dos nossos dados pessoais. Precisamos reconhecer essa realidade para avançar na discussão.
E de que forma poderíamos avançar nessa discussão?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Deveríamos ter programas-piloto para enfrentar esse debate sobre o uso de tecnologias e dados nas cidades. Hoje em dia, há muitas câmeras captando rostos, mas não sabemos onde esses dados são armazenados ou para que são usados. Existe até um site que mostra câmeras destravadas online, incluindo imagens de dentro de casas alheias, o que revela como essas tecnologias já estão amplamente presentes. A questão é como usar esses recursos para o bem comum, como localizar pessoas que precisam de auxílio, por exemplo, idosos desorientados, sem que isso gere um drama.
Claro que há usos perversos, mas também há possibilidades positivas que precisam ser discutidas como políticas públicas, com compliance e tratamento sério de dados. Na Europa, por exemplo, a Dinamarca aprovou uma lei contra deep fakes, garantindo que cada cidadão seja dono do copyright da própria imagem, podendo processar empresas responsáveis por vídeos falsos. Essa mudança de paradigma mostra que o debate é urgente e deve continuar, pois o cenário digital só tende a se intensificar.
Essa questão também se coloca como desafio para implementação de tecnologias nas cidades?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Sim, um dos maiores desafios está relacionado justamente à questão dos dados, especialmente no uso de Inteligência Artificial e modelos de linguagem. Quando empresas operam com reconhecimento facial ou outros processamentos, os dados não ficam com o governo, nem são processados localmente, geralmente, eles rodam em servidores em outros países, como Estados Unidos ou Europa. Essa situação levanta questões delicadas, mesmo com suposta criptografia e proteção, pois o controle dos dados está fora do país.
Esse problema se assemelha ao controle internacional sobre transações bancárias pelo protocolo Swift, onde quase todo o dinheiro global é registrado em um sistema controlado por outro país, evidenciando como a informação é poder para antecipar e planejar movimentos. Um exemplo preocupante ocorreu na guerra entre Irã e Iraque, quando câmeras de rua instaladas para controle de trânsito foram acessadas pela internet para identificar alvos e direcionar ataques, um uso militar totalmente distinto da finalidade original. Então, o desafio para a administração pública é como tratar esses dados e armazená-los com segurança. Além disso, há um problema sério de interoperabilidade. Por exemplo, uma prefeitura não pode criar um sistema que depois não consiga se comunicar com o sistema estadual ou nacional.
Como você enxerga os riscos de obsolescência tecnológica nesse processo? O quanto isso impacta a adoção e a manutenção de sistemas digitais nas prefeituras e demais órgãos públicos?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Um exemplo é o Flash, um protocolo de animação muito usado até cerca de 2008, que depois foi descontinuado. Se a prefeitura tivesse um sistema baseado nisso e, de repente, ele parasse de funcionar, seria necessário migrar tudo para outra plataforma, o que gera um custo enorme. Por isso, em bancos e outras instituições, ainda se usam sistemas antigos, porque mudar tudo de uma vez pode causar grandes problemas. Esse é um gargalo enorme no setor público. Apesar da imagem de que os servidores não querem mudar, na verdade, muitos nos procuram e demonstram interesse em implementar soluções tecnológicas. O problema está nas limitações técnicas, financeiras e na complexidade de desenvolver sistemas confiáveis para a administração pública, o que torna o processo caro e difícil.
Diante de todos esses desafios técnicos e estruturais, como a academia, onde você atua, e o setor privado podem colaborar para ajudar a superar essas barreiras e contribuir com soluções tecnológicas viáveis para a administração pública?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: A academia é um ambiente muito pesado, para o bem e para o mal e, por isso, modismos não costumam pegar nela, pois as tendências vêm e vão muito rápido. Um exemplo é o metaverso, pois muita gente falou sobre isso, mas o interesse diminuiu antes que a academia conseguisse processar as discussões, e hoje quase não se fala mais no assunto.
Estamos ainda muito próximos do fenômeno para afirmar algo definitivo, mas é importante lembrar que todas essas tecnologias foram desenvolvidas dentro da academia. Embora a OpenAI e outras empresas sejam destaque, as bases vêm de pesquisas de doutorado, mestrado e trabalhos acadêmicos, com pessoas que saem da academia para o setor privado, onde os avanços ganham força. Assim, todo mundo contribui para esses avanços, que têm raízes acadêmicas desde a década de 1950, quando a Inteligência Artificial começou a ser discutida formalmente.
Quais são os principais desafios para que as pesquisas e inovações desenvolvidas nas universidades consigam romper essas barreiras, técnicas, financeiras e institucionais, e cheguem ao mercado e às cidades?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Nos últimos anos, especialmente desde 2016 e 2017, a academia tem enfrentado uma diminuição significativa nos recursos para educação, pesquisa e financiamento, devido a fatores que vão desde inclinações políticas até a indisponibilidade orçamentária. Muitas áreas, especialmente as que atuam na formação de pessoal e em reflexões teóricas, como sociologia, filosofia e pedagogia, têm mais dificuldade para captar recursos privados, pois seu impacto social é mais a longo prazo e priorizam uma formação humanista.
Seria ideal que empresas contratassem filósofos, por exemplo, para discutir questões urbanas, mas isso é pouco provável. Assim, essas áreas continuarão dependendo majoritariamente de recursos públicos. Por outro lado, áreas com potencial para contribuir diretamente para o desenvolvimento nacional deveriam estar mais abertas a parcerias reais de pesquisa com o setor privado. No entanto, muitas vezes o setor privado ainda vê a universidade apenas como fonte de mão de obra barata ou para serviços simples, o que não é o ideal para um avanço efetivo.
E como mostrar para o setor privado que as tecnologias desenvolvidas nas universidades têm valor e podem contribuir para a inovação e o desenvolvimento das cidades?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Pesquisa envolve risco e o empresário precisa entender isso. Diferentemente dos Estados Unidos, onde existe a cultura dos beneméritos que doam para universidades, no Brasil a realidade é outra, e nossos ricos provavelmente não investiriam nas universidades. A dificuldade está em superar a barreira entre universidade e setor privado. A universidade precisa enxergar o setor privado como parceiro para financiar pesquisas, e o setor privado deve reconhecer a contribuição acadêmica no desenvolvimento tecnológico, metodologias e otimização de recursos.
Essa aproximação enfrenta resistência de ambos os lados. Na universidade, há quem veja isso como uma invasão neoliberal, enquanto no setor privado há desconfiança quanto à competência acadêmica. No entanto, em países que são referência em educação e inovação, essa relação é próxima e essencial para o desenvolvimento. A desindustrialização do Brasil está ligada não só a causas políticas, mas também à falta de capacidade de criar coisas novas, algo que a universidade deve liderar, enquanto as empresas focam na inovação incremental e interna. A universidade tem muito a contribuir para o olhar para o futuro.
Pensando no futuro, quais tecnologias emergentes, além das já consolidadas, você enxerga como promissoras para os próximos 5 a 10 anos? Como elas poderão transformar as cidades?

Guilherme Nunes de Vasconcelos: A resposta é Inteligência Artificial, pois realmente não há outra saída. Atualmente, a IA já pode ser acessada diretamente, como no ChatGPT, embora ainda esteja meio segregada, mas essa incorporação no cotidiano está começando a acontecer, assim como aconteceu com a internet, que deixou de ser algo isolado para se tornar onipresente. A IA estará presente em tudo. Semáforos, iluminação, distribuição de energia, água, tudo estará incorporado a ela. Depois da consolidação desse avanço, a próxima tecnologia será o Gêmeo Digital (Digital Twin), um conceito que associa várias tecnologias para criar um modelo digital de um objeto físico, como um prédio ou uma rua. Esse modelo não precisa ser visual, mas sim computacional, capaz de “conversar” com o objeto real, trocando informações e comandos.
O Gêmeo Digital pleno promove uma interação em tempo real, onde tudo que ocorre no objeto físico acontece no modelo digital e vice-versa. Isso oferece um potencial enorme para a gestão urbana e para a compreensão integrada da cidade, abrindo novas possibilidades para o planejamento e operação dos espaços urbanos.
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Como essa tecnologia do Gêmeo Digital seria aplicada em escala maior?
Guilherme Nunes de Vasconcelos: Você pode ter um quarteirão inteiro digitalizado e gerido por uma IA, que poderia ser programada para agir conforme certas condições, gerenciando toda a área automaticamente. Embora pareça futurista, já há exemplos reais, como em Singapura, que está avançada no uso de Gêmeos Digitais para prédios públicos, com monitoramento em tempo real. Esse sistema possibilita uma gestão eficiente de energia, água, segurança e outros serviços. Por exemplo, se uma câmera detectar uma aglomeração em determinado local, o dado seria integrado ao Gêmeo Digital, que dispararia automaticamente uma ação adequada, sem a necessidade de um operador humano monitorando constantemente. A IA hoje é vista como uma única IA genérica, mas ele é um sistema de várias inteligências especializadas que se comunicam para gerir sistemas complexos antes da intervenção humana.