Tempo é meio e fim na visão humana de cidade inteligente

Com mais de 24 anos de experiência em projetos de urbanismo, o arquiteto Charbel Capaz compartilha sua visão humana de cidade inteligente.

Por Redação em 23 de outubro de 2023 7 minutos de leitura

charbel capaz
Propósito. A pequena palavra que resume a busca de um significado para a vida reflete também na forma como nos relacionamos com os espaços, com as cidades, com o habitar.  Anseios com os quais a arquitetura e o urbanismo têm uma relação interdependente, que se molda conjuntamente às mudanças sociais e temporais. Entre essas mudanças, está também uma consciência ambiental crescente, que não se limita mais a especialistas. A ocorrência cada vez mais frequente de desastres climáticos tem aproximado essa temática da população em geral. Esse é o contexto no qual atua o arquiteto e urbanista Charbel Capaz, sócio-diretor e head architect do escritório de arquitetura DEF: desenvolvendo espaços urbanos que atendam às necessidades práticas das pessoas, mas que também priorizem a responsabilidade ambiental, a experiência humana e a inclusão social. Com uma sua sólida trajetória de mais de 24 anos em projetos nacionais e internacionais de diferentes escalas em locais como Itália, Estados Unidos, Líbano e Uruguai, o arquiteto acredita “que os futuros conceitos de planejamento urbano sejam orientados cada vez mais por uma visão de mundo com um menor impacto ambiental. Uma demanda que está sendo impulsionada pelas gerações mais jovens”.

Em cidade inteligente, time is money… e muito mais

A frase “tempo é dinheiro” é conhecida, mas a dinâmica da vida contemporânea deu ainda mais peso para este valor: o tempo tem sido considerado o recurso mais escasso e, por isso mesmo, mais valioso. cidade inteligente Como o historiador Yuval Noah Harari ilustra em muitos dos seus livros, como “21 lições para o século 21”, a riqueza atual reside justamente na habilidade de administrar o próprio tempo. Essa visão é um dos pilares do conceito de cidade inteligente que norteia os projetos de Capaz. Para ele, em um mundo repleto de mídias sociais e hiperconexão, a capacidade de controlar o tempo torna-se um ativo valioso. Criar bairros e espaços que permitam às pessoas organizarem seu tempo de maneira conveniente é, portanto, sinônimo de qualidade de vida. “Se você gasta duas horas indo e duas horas voltando do trabalho todos os dias, significa que, a cada 24 horas, quatro delas são consumidas no trajeto. Ao longo de um ano, isso totaliza dois meses simplesmente indo e voltando entre dois pontos. Essa realidade é assustadora”, observa. Por esse motivo, ao conceber um projeto, o arquiteto sempre busca criar novas centralidades, que não somente proporcionam emprego, entretenimento e moradia, mas que também reestabelecem o recurso do tempo para as pessoas, enquanto incentivam as interações interpessoais. Empoderar os indivíduos para gerir seu próprio tempo e criar conexões com os vizinhos nas proximidades de suas residências é, em última análise, proporcionar uma vida melhor e mais atrativa. É nesse ponto que reside outro elemento fundamental no desenvolvimento de uma cidade ou bairro: o sentimento de pertencimento. Assim, o planejamento urbano eficiente é também a base para uma comunidade interativa, onde o sentido de pertencimento floresce em cada rua e esquina. Desde espaços verdes bem preservados e programados para eventos comunitários até ruas arborizadas que convidam a interações diárias, a conexão interpessoal é uma força motriz que permeia todos os níveis de uma vizinhança bem estruturada. No entanto, como explica Capaz, é preciso abordar diversas escalas de convívio. “Nós não somos homogêneos. Muito pelo contrário. As comunidades abrigam uma ampla diversidade de indivíduos. Entre nós, encontramos jovens que estão começando suas jornadas, embarcando em estudos e projetos de vida. Paralelamente, há casais de meia idade, já com filhos frequentando escolas ou ingressando na faculdade. Então, um bairro de qualidade tem a capacidade de atender a essa gama variada de expectativas, proporcionando diversas comodidades e serviços”, explica o arquiteto. “Não é necessário que todos os habitantes utilizem cada atividade oferecida no bairro, mas é essencial que a localidade forneça os recursos adequados para atender essas demandas”.

O impulso tecnológico para comunidades vibrantes

comunidades vibrantes A tecnologia se revela como uma das plataformas viabilizadoras de tais concepções. Enquanto o bairro eficiente contempla a circulação contínua de pessoas e fomentam a interação entre os moradores, a tecnologia pode ser utilizada para potencializar ambos. As redes sociais, em sua forma mais benéfica, já promovem esse tipo de interação. No entanto, ela pode ser adotada por bairros, a fim de impulsionar novas dinâmicas entre os moradores, assim como a gestão de espaços públicos, que pode ser fomentada pela ação comunitária. Com uma vantagem adicional: a tecnologia poder ser personalizada de acordo com as necessidades de cada comunidade. Na visão de Capaz, esse cenário está alinhado ao conceito das cidades inteligentes, não pela mera aplicação da tecnologia, mas porque as Smart Cities também enfatizam a importância da interação humana, uma governança eficaz, a celebração da diversidade cultural, a promoção da identidade local e a sustentabilidade. Em uma abordagem ampla do conceito, como destaca o economista e autor do livro “Rumo à Ecossocioeconomia” Ignacy Sachs, a abrangência da sustentabilidade em diversos pilares, englobando não apenas aspectos ambientais, mas também governança, questões sociais e culturais. Leia também: Smart Cities são o futuro das cidades? “Uma interação saudável e a preservação da natureza requerem boas práticas. Ao discutir cidades inteligentes e sustentáveis, o foco recai sobre um ambiente urbano capaz de promover interações e preservação natural tanto em seu espaço físico quanto em seus mecanismos de governança”, enfatiza Charbel.

Os pilares da cidade inteligente

pilares das cidades inteligente Segundo Charbel, uma cidade inteligente tem o compromisso de atenuar disparidades sociais, promovendo a mobilidade social e evitando qualquer forma de discriminação. Cidades inteligentes não devem categorizar seus habitantes com base em suas posses ou status social, mas reconhecer sua individualidade e dar suporte a todos os moradores. “Uma cidade inteligente não se trata apenas de uma coleção de infraestruturas, mas de um sistema humano que utiliza a tecnologia e os recursos disponíveis para preservar o bem-estar coletivo ao longo do tempo. No projeto Cidade Sete Sóis, da MRV, por exemplo, no qual estivemos envolvidos, abordamos a cidade inteligente com base em diversos pilares essenciais”, conta o arquiteto. Com o intuito de fomentar uma identidade coletiva, a proposta de misturar diferentes tipos de apartamentos em um mesmo bairro, incluindo unidades mais acessíveis e de médio e alto padrão, foi amplamente adotada no projeto. A distribuição equitativa, tanto em termos de ocupação socioeconômica quanto de acesso a equipamentos de lazer, também se tornou uma prioridade. “Para transformar um córrego em uma valiosa área de lazer acessível a todos, por exemplo, a região foi convertida em um parque amplo e bem estruturado, que inclui uma represa e um espelho d’água, além de uma pedreira que está sendo transformada em um parque expandido”, explica. Além da ênfase na moradia, o projeto dedicou uma atenção especial à criação de comércios e serviços nas proximidades das residências. Esse esforço tem como objetivo diminuir a necessidade de utilizar veículos para tarefas do dia a dia, o que reflete a visão de Charbel em relação a proporcionar mais tempo para as pessoas e, paralelamente, reduzir as emissões de carbono provenientes de veículos automotores. “Se alguém precisa percorrer longas distâncias de carro apenas para comprar um simples pão, estará consumindo um tempo precioso e comprometendo sua qualidade de vida. Por isso, optamos por estabelecer dois grandes corredores, formando o coração do bairro – um espaço central que abriga uma variedade de comércios e serviços”, disse. A criação de um centro de vizinhança em cada um dos quatro quadrantes da Cidade Sete Sóis proporciona comodidades, como mercearias, farmácias e outros serviços essenciais, incentivando a interação e até mesmo promovendo o conceito da cidade de 15 minutos para que os residentes possam viver nas adjacências do seu próprio lar. Leia também: Cidades de 15 minutos usam a mobilidade urbana para aumentar a habitabilidade

Sustentabilidade que transcende

O arquiteto aponta que uma cidade inteligente e sustentável nunca deve deixar de lado condições adequadas de saneamento. Assegurar uma drenagem eficiente, por exemplo, permitindo que a água da chuva atinja os córregos em baixa velocidade e sem resíduos sólidos, por meio de caixas de filtragem e outros mecanismos é essencial para o bem-estar econômico e social. Além disso, a sustentabilidade transcende as estratégias de baixo impacto e a infraestrutura; ela deve incorporar as dimensões humanas. Charbel salienta que um dos principais critérios de sustentabilidade é a criação de um espaço propício para a comunicação dos princípios e valores ligados à preservação ambiental. “Podemos utilizar os parques como uma plataforma para eventos educativos, especialmente direcionados às crianças residentes nos bairros, independentemente de sua condição socioeconômica. A educação dessas gerações mais jovens é essencial para estimular uma cultura de preservação, evidenciando que a proteção do nosso entorno e das nossas cidades começa com as práticas cotidianas de seus moradores”, comenta.

Construindo o equilíbrio

construindo equilibrio A concepção de espaços funcionais, ambientalmente responsáveis e economicamente viáveis traz consigo um conjunto complexo e multifacetado de desafios para os profissionais de arquitetura e urbanismo. A criação de espaços de qualidade implica a adoção de métodos de construção mais sustentáveis, o reaproveitamento de resíduos e o investimento em fontes de energia renovável, entre tantas outras medidas. A indústria, por sua vez, direciona seus esforços para reduzir as emissões de carbono, incorporando práticas de descarbonização e tecnologias ecologicamente mais amigáveis. Paralelamente, as desigualdades sociais continuam latentes em grandes centros urbanos. Diante desse cenário, qual caminho o arquiteto deve seguir? “Nosso papel como arquitetos é mais como catalisadores de informações do que como criadores de soluções isoladas. Nosso objetivo é assimilar e reinterpretar essas informações, transformando-as em espaços coerentes e adaptados às necessidades específicas das comunidades”, pontua Charbel. O esforço, então, deve ser direcionado à criação de ambientes que propiciem uma habitação digna. Em uma circunstância onde a população urbana continua a crescer rapidamente, a importância de construir espaços que garantam uma vida de qualidade se torna cada vez mais premente. Para ele, é nesse equilíbrio que reside a possibilidade de alcançar resultados significativos e promover a verdadeira sustentabilidade. Enquanto a luta pela sobrevivência consome a energia de muitos, é essencial criar ambientes que atendam às necessidades básicas e permitam que as pessoas aproveitem mais a vida em sua plenitude e também canalizem suas preocupações para desafios coletivos.
“Quando as preocupações diárias, como a próxima refeição, dominam nossas vidas, torna-se difícil discutir e aplicar princípios de cultura e sustentabilidade. Portanto, nossa missão é criar espaços onde as pessoas possam recuperar seu tempo e direcioná-lo para a apreciação de aspectos mais amplos da vida, além da mera subsistência”, declara