Cidades sem carros: o futuro que já começou

Ao redor do mundo, trocar o carro por opções mais sustentáveis de mobilidade tem se tornado realidade, mas ainda é um desafio.

Por Nathalia Ribeiro em 25 de junho de 2025 8 minutos de leitura

Foto: Endrik Baublies/ Shutterstock

As cidades sem carros estão se tornando uma realidade possível em várias metrópoles ao redor do mundo, desafiando o paradigma tradicional da mobilidade urbana. Em lugares como Freiburg, na Alemanha, e Leuven, na Bélgica, bairros inteiros estão sendo projetados para eliminar o uso do transporte individual, transformando ruas congestionadas em espaços verdes para pedestres e ciclistas. Essa revolução no urbanismo busca não só reduzir a poluição e os congestionamentos, mas também melhorar a qualidade de vida dos moradores, proporcionando mais áreas de lazer e convivência. 

No entanto, essa transição radical para cidades sem carros não é isenta de desafios. Em grandes metrópoles, como São Paulo ou Nova Iorque, a ideia enfrenta resistência, tanto de motoristas, quanto de setores econômicos que dependem do tráfego constante de veículos. Embora a ideia de uma cidade mais verde e menos poluída seja atraente, ela exige uma transformação profunda na infraestrutura e no comportamento das pessoas. 

A aposta no transporte público eficiente, na criação de ciclovias e na conscientização sobre os benefícios de uma mobilidade mais sustentável são os pilares dessa transformação, mas as cidades estão prontas para repensar o uso do espaço urbano e adotar um modelo disruptivo que prioriza as pessoas em vez dos carros?

Os custos ocultos do modelo urbano tradicional 

O modelo tradicional de cidade, que prioriza o uso do automóvel como principal meio de transporte, tem levado a consequências ambientais e sociais preocupantes. Em São Paulo, por exemplo, o setor de transporte é responsável por cerca de 60% das emissões de gases de efeito estufa, conforme o 19º Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Município

Foto: AlfRibeiro/ Adobe Stock

Além disso, a cidade enfrenta níveis de poluição do ar acima dos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há mais de duas décadas, impactando diretamente a saúde da população e os gatos com saúde. A exposição à poluição do ar está associada a problemas respiratórios, doenças cardiovasculares e até ao aumento de casos de câncer de pulmão. Além disso, o trânsito intenso contribui para o estresse, fadiga e diminuição da qualidade de vida dos cidadãos.

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No entanto, as consequências desse modelo não se limitam a São Paulo. Em diversas cidades da Europa, os efeitos do transporte excessivo também têm sido devastadores. De acordo com o Global Traffic Scorecard 2024, da Inrix, Londres concentrou cerca de metade de todos os atrasos no trânsito do Reino Unido, resultando em um prejuízo estimado de 3,85 bilhões de libras em tempo perdido (aproximadamente R$ 24,64 bilhões), o equivalente a 942 libras (aproximadamente R$ 6.028) por motorista.

A empresa de análise aponta que a capital britânica registra alguns dos piores corredores viários do país, reflexo direto de sua alta densidade populacional, intensa atividade econômica e grande concentração de empregos, fatores que tornam o tráfego urbano especialmente crítico.

Para reverter esse quadro, algumas cidades ao redor do mundo têm adotado mudanças profundas em sua infraestrutura, inspiradas pelo conceito de bairros livres de carros. Essas transformações incluem a criação de zonas de baixo tráfego, ampliação de ciclovias e incentivo ao transporte público, como Freiburg, na Alemanha, e Leuven, na Bélgica.

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Transformação urbana na prática

Vauban, em Freiburg (Foto: Payton Chung/ Wikimedia Commons)

No bairro de Vauban, em Freiburg, na Alemanha, as ruas foram transformadas em zonas stellplatzfrei, ou seja, livres de áreas para estacionamento. Embora os carros ainda possam circular brevemente para embarque e desembarque de pessoas ou mercadorias, não há qualquer vaga para permanência prolongada. Isso significa que os automóveis não fazem mais parte da paisagem cotidiana, dando lugar a pedestres, ciclistas e crianças que brincam livremente nas ruas tranquilas. 

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O transporte principal dentro e fora do bairro é feito a pé, de bicicleta e por bondes elétricos, silenciosos, eficientes e sustentáveis. O bairro conta ainda com pontos estratégicos de carros compartilhados, oferecendo praticidade para quem eventualmente precisa se deslocar de carro, mas sem depender de um veículo próprio.

Com cerca de 5 mil habitantes, Vauban adota uma política firme para manter sua proposta urbana: uma vez por ano, todos os moradores devem declarar se possuem automóvel. Os 30% que ainda têm carro são obrigados a adquirir uma vaga em edifícios garagem localizados fora do bairro, na periferia da cidade. Essa medida incentiva a adoção de modais ativos e reduz drasticamente o tráfego local, o barulho e a poluição.

Hamburgo (Foto: JFL Photography/ Adobe Stock)

Já a cidade de Hamburgo planeja restringir a circulação de veículos particulares em 40% de seu território até 2034, criando o que é chamado de “Rede Verde”. Esse plano visa transformar ruas congestionadas em alamedas verdes, conectando bairros com parques, hortas e ciclovias, promovendo a mobilidade sustentável.

Leuven, na Bélgica (Foto: Aliaksandr Antanovich/ Shutterstock)

A cidade de Leuven, na Bélgica, tem sido outro exemplo dessa tendência de transformação. Com cerca de 100 mil habitantes, implementou um plano de circulação local que divide o centro em cinco setores nos quais os carros não podem transitar entre um e outro, salvo em situações específicas, como emergências e entregas. 

A medida, que faz parte do projeto Leuven2030, visa reduzir as emissões de carbono da cidade e aumentar a qualidade de vida. A população tem adotado a bicicleta e o transporte público como os principais meios de locomoção, e as ruas, antes dominadas pelo trânsito, agora se tornaram áreas agradáveis para caminhadas e lazer. J.H. Crawford, autor do livro Carfree Cities (Cidades sem carros, em tradução livre), vê esse movimento com entusiasmo. Ele defende que bairros livres de carros não são apenas viáveis, mas essenciais para melhorar a qualidade de vida urbana. 

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Exemplos globais de cidades sem carros

Foto: Lazy_Bear/ Shutterstock

Ao redor do mundo, diversas cidades estão adotando medidas ousadas para reduzir o uso de carros e promover alternativas mais sustentáveis de mobilidade urbana. Copenhague, capital da Dinamarca, é um dos exemplos mais antigos e bem-sucedidos dessa transformação. Desde a década de 1960, a cidade começou a restringir a circulação de automóveis em áreas centrais. 

Hoje, com cerca de 590 mil habitantes, conta com uma ampla e eficiente malha de ciclovias, sendo que aproximadamente 50% dos deslocamentos são feitos de bicicleta. E os planos continuam ambiciosos: o governo dinamarquês pretende implementar uma rede de “superautopistas” cicloviárias para conectar o centro aos subúrbios, incentivando ainda mais o uso da bicicleta como meio de transporte principal.

Foto: Lorna Roberts/ Shutterstock

Na mesma linha, Londres criou a Ultra Low Emission Zone (zonas de emissão ultra baixa, em tradução livre), onde só veículos que atendem a rígidas normas ambientais — como a Euro 4 para gasolina e Euro 6 para diesel — podem circular. A capital britânica também cobra uma taxa de congestionamento diária de £11,50 (cerca de R$ 75) para automóveis que circulam entre 7h e 18h. 

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Já em Milão, onde os níveis de poluição são alarmantes, carros e motos são proibidos de circular em dias de smog (neblina causada pela poluição do ar) e, desde 2007, a cidade adota proibições regulares ao tráfego de veículos particulares. Nesses dias, o transporte público tem tarifas reduzidas.

Foto: Vereshchagin Dmitry/ Shutterstock

Paris também vem radicalizando sua política de mobilidade. Desde 2016, veículos fabricados antes de 1996, além de ônibus e caminhões mais antigos, estão proibidos de circular. Algumas vias já são exclusivas para meios de transporte menos poluentes, como os carros elétricos, e a prefeitura planeja dobrar o número de ciclovias. A prefeita Anne Hidalgo também propôs limitar a velocidade máxima a 30 km/h em quase toda a cidade. Como reflexo dessas medidas, o número de motoristas caiu: hoje, 60% dos parisienses não têm carro, comparado a 40% em 2001.

Foto: LP2 Studio/ Shutterstock

Na Ásia, Chengdu, na China, busca soluções urbanísticas inovadoras. A cidade está construindo um bairro satélite modelo que prioriza o caminhar. Nesse sentido, todas as distâncias poderão ser percorridas em até 15 minutos a pé e apenas 50% das vias permitirão a circulação de automóveis. O projeto, assinado pelo escritório norte-americano Adrian Smith + Gordon Gill Architecture, promete acomodar 80 mil habitantes com foco em sustentabilidade e qualidade de vida. Essas experiências mostram que uma cidade mais saudável e eficiente não só é possível como está em construção ao redor do mundo.

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O preço do carro nas cidades e os ganhos de deixá-lo para trás

Embora enfrente resistência em locais como Dublin, onde taxistas e comerciantes temem a perda de clientes devido à proposta de transformar o centro da cidade em uma zona livre de veículos, e em Milão, onde medidas como a proibição da circulação de carros em dias de alta poluição enfrentam oposição de motoristas que dependem do automóvel para suas atividades diárias, estudos indicam que a redução do transporte individual pode diminuir significativamente o tráfego, a poluição e melhorar a qualidade do ar, beneficiando a saúde pública e criando espaços urbanos mais agradáveis.​

Foto: Tupungato/ Shutterstock

Um estudo do projeto Shared Streets, conduzido pela FGV EAESP, mostra como esse tipo de mudança pode gerar benefícios concretos: apenas 1% de migração dos usuários de transporte individual para ônibus em São Paulo resultaria em uma redução líquida de 1,38% nas emissões de gases de efeito estufa, o que representaria uma economia diária de cerca de 10,3 mil euros, considerando o valor de mercado dos créditos de carbono (75 euros por tonelada) e o volume de emissões da cidade. 

O futuro das cidades sem carros e as cidades do futuro

Foto: ScArts/ Adobe Stock

À medida que mais cidades ao redor do mundo adotam medidas para reduzir a dependência do automóvel, cresce também o debate sobre a viabilidade de aplicar esse modelo em metrópoles densamente povoadas, como São Paulo ou Nova Iorque. Embora o exemplo de cidades como Freiburg, na Alemanha, e Leuven, na Bélgica, demonstre que a ideia de áreas urbanas sem carros está longe de ser uma utopia, a adaptação em contextos de grande escala exige mais do que simples mudanças na infraestrutura. É fundamental, antes de tudo, um compromisso com o transporte público e a mobilidade ativa. Políticas públicas que promovam o uso do transporte coletivo e invistam na expansão e melhoria da infraestrutura cicloviária são essenciais para assegurar que os cidadãos se sintam seguros e incentivados a adotar alternativas ao automóvel no seu dia a dia.

Copenhague, capital da Dinamarca, é um exemplo desse compromisso. Cerca de 62% da população utiliza a bicicleta como principal meio de transporte para ir ao trabalho ou à escola. Isso é resultado de investimentos consistentes em infraestrutura cicloviária, como a construção de pontes exclusivas para ciclistas e a implementação de semáforos inteligentes que priorizam o fluxo de bicicletas. Já Amsterdã, nos Países Baixos, conta com cerca de 767 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, e aproximadamente 600 mil bicicletas circulando diariamente. A cidade continua ampliando sua malha cicloviária e promovendo políticas públicas que incentivam ainda mais o uso da bicicleta, como estacionamentos dedicados e campanhas educativas.

Foto: Cazalli Imagens/ Shutterstock

No Brasil, Curitiba é uma referência nacional em transporte coletivo. A cidade foi pioneira na implantação do sistema BRT (Bus Rapid Transit), com faixas exclusivas para ônibus que tornam o deslocamento mais rápido e eficiente, além de contribuírem para a redução do uso de veículos particulares. A capital paranaense também investiu na criação de parques e áreas verdes integradas ao planejamento urbano, promovendo uma abordagem equilibrada entre mobilidade e qualidade de vida.

Com a crescente pressão por soluções sustentáveis e a busca por maior qualidade de vida, a tendência de cidades sem carros pode ser a chave para a construção de cidades mais verdes e humanas, onde o espaço urbano é pensado para as pessoas e não para os carros. E a pergunta que fica é: estamos prontos para dar esse passo?

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