Casas que transformam lixo em lar? Conheça as Earthships
De casas no deserto do Novo México a moradias recicladas no Brasil, o conceito de Earthship se expande como uma solução inovadora com vantagens ambientais e sociais.
Por
Nathalia Ribeiro em 28 de janeiro de 2025 5minutos de leitura
Foto: Nagel Photography/ Shutterstock
Em meio ao vasto deserto do Novo México, nos Estados Unidos, casas desafiam a arquitetura tradicional e se destacam na paisagem. Algumas com traços grandiosos, similares a de palácios, e outras com formas arredondadas e futuristas, que parecem retiradas de um filme de ficção científica. Estas residências estão localizadas na cidade de Taos e nos arredores, há quase quatro décadas e são exemplos do conceito de Earthships ou “terranaves”, em tradução literal.
Projetadas para serem autossustentáveis, essas construções emitem zero carbono, utilizando materiais naturais e reciclados, como pneus velhos, garrafas de vinho vazias, madeira e barro. A proposta é criar um equilíbrio entre a habitação humana e o respeito pelo meio ambiente, com residências que se integram ao terreno e maximizam o uso de recursos naturais.
Atualmente, essas casas ecológicas são avaliadas entre US$ 500 mil e US$ 900 mil (aproximadamente R$ 2,8 milhões a R$ 5 milhões), refletindo seu valor como construções inovadoras e sustentáveis. Além disso, estão disponíveis para aluguel por temporada, permitindo que os visitantes experimentem essa forma única de viver por cerca de US$ 240 (aproximadamente R$ 1.400) por noite. Mas de que forma elas são realmente sustentáveis?
Como o movimento Earthships começou?
Nos anos 1970, o arquiteto norte-americano Michael Reynolds deu início ao movimento que hoje é reconhecido como pioneiro na arquitetura sustentável. O gatilho para sua ideia inovadora veio de uma reportagem que assistiu na TV. “O âncora da CBS News, Walter Cronkite, falava sobre o desmatamento, a erosão do solo e o impacto ambiental causado pela perda de árvores, essenciais para a produção de oxigênio”, relembra Reynolds em entrevista à BBC. Observando as inúmeras latas de cerveja descartadas ao seu redor, o arquiteto teve uma ideia: “Por que não construir casas com latas de cerveja em vez de usar árvores?”.
Assim nasceu, em 1971, sua primeira casa feita de latas recicladas. Embora tenha sido vista como curiosidade na época, a construção ganhou notoriedade internacional ao ser exibida em museus como o Louvre, em Paris, e o Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova Iorque. A peculiaridade do projeto levou o MoMA a adquirir um bloco de construção de latas, incorporando-o à sua coleção permanente.
No entanto, nos primeiros anos, Reynolds enfrentou ceticismo e até zombarias. “Era uma ideia utópica e meio ridícula, mas eu continuei”, admite o arquiteto. Determinado a expandir seus experimentos, ele passou a usar garrafas de vidro, pneus e outros materiais recicláveis como base para suas construções. Trinta e seis anos atrás, batizou seu conceito de Earthship.
Apesar do início difícil, a aceitação cresceu à medida em que o mundo começou a prestar mais atenção à crise climática. Hoje, as Earthships são vistas como um exemplo de habitação sustentável, funcionando totalmente fora da rede elétrica e utilizando recursos naturais para aquecimento, resfriamento e captação de água.
Como as Earthships funcionam?
A sustentabilidade do projeto é fundamentada no uso eficiente da massa térmica para resfriamento e aquecimento, eliminando a necessidade de combustíveis fósseis. Além disso, o design integra a construção com materiais naturais e reciclados, como pneus, garrafas e latas, incorporando um modelo de arquitetura que alia sustentabilidade e eficiência energética.
Com paredes espessas feitas de pneus preenchidos com terra, as Earthships criam uma barreira isolante natural, capaz de regular a temperatura interna. Essa solução permite que as casas suportem condições climáticas extremas, mantendo uma temperatura estável de cerca de 21°C, sem precisar de ar-condicionado. Além disso, sistemas de ventilação cruzada e estufas internas garantem um fluxo constante de ar, oferecendo conforto térmico de forma sustentável. As estufas, aliás, permitem o cultivo de alimentos frescos, promovendo um estilo de vida independente e ecológico para os moradores.
Outro grande diferencial das Earthships é sua autonomia. Elas geram energia por meio de painéis solares e turbinas eólicas, além de contar com fornos a lenha como alternativa em situações extremas. O sistema também inclui a coleta, filtragem e purificação da água da chuva, assim como o tratamento das águas residuais.
Do Lixo ao lar
Essas soluções não só contribuem para a preservação do meio ambiente, mas também ajudam a reduzir significativamente os custos de vida. Embora as Earthships ainda não sejam acessíveis a todos, especialmente pelo seu custo inicial de construção, Reynolds acredita que elas têm o potencial de ser uma ferramenta crucial na luta contra a pobreza e a falta de moradia. Para ele, a utilização de materiais reciclados não apenas contribui para a preservação ambiental, mas também oferece uma forma de construir moradias mais acessíveis para pessoas em situações vulneráveis.
Em resposta à necessidade crescente por soluções habitacionais mais rápidas e acessíveis, Reynolds desenvolveu o Refúgio – uma versão otimizada da Earthship, projetada para ser construída de forma mais rápida e a preços mais baixos. Com um design focado na eficiência e sustentabilidade, ele visa democratizar o acesso a moradias ecológicas, permitindo que mais pessoas adotem um estilo de vida mais consciente e acessível. O objetivo é tornar a sustentabilidade não apenas uma questão ambiental, mas também uma questão de justiça social.
Casas recicladas nas favelas do Brasil
O sonho do arquiteto norte-americano já pode ser visto no Brasil. Moradias temporárias, com paredes feitas de tubos de pasta de dente reciclados, foram construídas na Favela dos Sonhos, localizada em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo. Essas habitações incluem banheiro, um ou dois quartos, e sistemas hidráulico e elétrico, além de serem feitas com materiais resistentes ao fogo, e possuírem isolamentos térmico e acústico.
As antigas construções, que eram compostas por lona, madeira, plástico e até papelão, deram lugar a 20 novas residências, construídas com placas e telhas feitas a partir de uma combinação de plástico e alumínio reciclados, originados dos tubos de pasta de dente. O projeto foi concebido e viabilizado pela Favila – uma empresa social dedicada a promover dignidade e segurança para famílias que vivem em favelas e abrigos no Brasil – com o apoio do Polvo Lab, uma startup de economia criativa de impacto.
Com um modelo modular, cada casa pode ser montada em até 48 horas, tornando-a uma opção dinâmica e oportuna para áreas vulneráveis, como favelas. O principal diferencial é a possibilidade de desmontagem e remontagem, conforme a necessidade do local.
A transformação da Favela dos Sonhos faz parte do projeto piloto Favela 3D, desenvolvido pela ONG Gerando Falcões, que, junto aos seus parceiros, busca erradicar a pobreza nas favelas do Brasil. O projeto visa melhorar tanto as condições físicas quanto as sociais e econômicas dos moradores.
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