A pressão das mudanças climáticas sobre as cidades latino-americanas, africanas e asiáticas, têm impulsionado uma série de intervenções ambientais voltadas a reduzir riscos, ampliar áreas verdes e melhorar a qualidade de vida urbana. Mas, à medida em que essas iniciativas ganham força, cresce também a preocupação com os efeitos indiretos dessas transformações, que podem elevar custos de moradia e deslocar populações vulneráveis, um fenômeno conhecido como gentrificação verde.
O debate sobre o tema ganhou novo fôlego após a divulgação da Declaração de Belém sobre o Combate ao Racismo Ambiental, em 7 de novembro, durante a cúpula preparatória para a COP30. O documento afirma: “Conclamamos todas as nações a cooperar na tarefa essencial de combater o racismo ambiental, reconhecendo que o desenvolvimento sustentável somente será alcançado quando forem eliminadas as desigualdades que afetam de forma desproporcional pessoas afrodescendentes, povos indígenas, comunidades tradicionais e outros grupos e minorias vulneráveis em todas as regiões do mundo.” Aberta a novas adesões durante a COP30, a declaração foi endossada por diversos países do sul global.
Com cidades cada vez mais expostas a enchentes, eventos extremos e ilhas de calor, a discussão sobre adaptação urbana passa a incluir não apenas o como transformar territórios, mas para quem essas transformações são feitas. A COP30, sediada na região amazônica, concentrou expectativas justamente por conectar esses dois eixos: a urgência climática e a necessidade de garantir que políticas ambientais avancem junto com justiça social e permanência territorial.
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O impacto das mudanças climáticas na habitabilidade urbana

Os efeitos das mudanças climáticas nas cidades não se distribuem de forma homogênea e os dados mostram que raça, renda, gênero e território continuam determinando quem enfrenta os maiores riscos. O levantamento “Racismo Ambiental e Injustiça Climática”, realizado pelo Instituto Pólis a partir de dados do Censo 2022 e de sistemas públicos de saúde, evidencia como eventos extremos, ou seja, chuvas intensas, inundações, deslizamentos e ondas de calor, recaem com mais força sobre populações negras e de baixa renda nas principais capitais do País.
Em Belém, sede da COP30, uma pessoa negra tem 30 vezes mais chance de ser internada por doenças de veiculação hídrica do que uma pessoa branca. A taxa de hospitalização por enfermidades transmitidas por mosquitos, como dengue e zika, é sete vezes maior entre pessoas negras. Recife, São Paulo e Porto Alegre exibem padrões semelhantes de desigualdade, ainda que por dinâmicas distintas. No Recife, bairros com predominância de população negra registram taxas de internação 10 pontos percentuais mais altas por doenças associadas à água contaminada.
Em São Paulo, a desigualdade aparece no risco de deslizamentos e na exposição ao calor. Distritos como o Jardim Helena, onde 73% da população é negra, concentram até três vezes mais áreas suscetíveis a deslizamentos do que regiões de maior renda e maioria branca, como Pinheiros. Em áreas com renda acima de cinco salários mínimos, 41% apresentam alta cobertura vegetal, já nos bairros de até um salário mínimo, essa proporção cai para 16%.
A desigualdade ambiental, no entanto, não se resume à exposição maior aos impactos do clima. Ela também aparece no acesso desigual às soluções. Em muitos centros urbanos, projetos de adaptação, como parques lineares, áreas de drenagem natural, corredores verdes ou iniciativas de mobilidade sustentável, são implementados primeiramente em regiões já valorizadas, enquanto bairros periféricos seguem vulneráveis. Isso aprofunda a sensação de que os benefícios da infraestrutura verde não chegam onde a demanda é mais urgente. E levanta uma questão para o planejamento urbano contemporâneo: como ampliar a resiliência climática sem reforçar padrões históricos de exclusão?
Nesse cenário, os debates inseridos na agenda da COP30 destacaram que a agenda climática precisa dialogar com políticas de habitação, transporte público e distribuição equitativa de investimentos. A adaptação urbana só se torna eficaz quando considera quem vive nos territórios mais expostos, como essas pessoas se deslocam, quanto podem pagar para permanecer ali e de que forma participam das decisões sobre o futuro de seus bairros. Sem esse olhar integrado, soluções ambientais tendem a proteger alguns e desproteger outros – justamente aqueles que já enfrentam os maiores impactos climáticos.
Gentrificação verde: conceito e mecanismos

A “gentrificação verde” tem entrado com força no vocabulário urbano justamente porque expõe uma contradição. O termo descreve situações em que intervenções ambientais positivas, como criação de parques, corredores ecológicos, revitalizações de orlas, ciclovias, renaturalização de rios, acabam produzindo efeitos sociais adversos quando não são acompanhadas de políticas de permanência da população local.
Ao melhorar a qualidade ambiental de um território, essas iniciativas tendem a valorizar a terra e os imóveis ao redor. Sem uma rede de proteção que inclua moradia acessível e inclusão dos moradores locais na tomada de decisão, o resultado pode ser o deslocamento de moradores historicamente instalados nesses bairros.
O mecanismo costuma operar de forma gradual. Primeiramente, vêm as intervenções ambientais, quase sempre acompanhadas de obras de mobilidade ou de reordenamento urbano. Em seguida, o mercado imobiliário reage com aumento de aluguel e preços de venda. A pressão chega para famílias que já vivem em condições de vulnerabilidade: gastos maiores, mudanças forçadas ou substituição do perfil socioeconômico do bairro. O processo preserva a paisagem, mas altera o tecido social que lhe dava forma.
A lógica da gentrificação verde
Esse modelo de desenvolvimento urbano, desconectado das dinâmicas socioeconômicas já existentes, acaba por reforçar lógicas históricas de desigualdade, reproduzindo formas de controle, exclusão e espoliação que têm raízes coloniais. O artigo “Green gentrification and contemporary capitalist production of space: notes from Brazil”, que investigou, com base em estudos de campo, até que ponto o conceito de gentrificação verde – formulado a partir das dinâmicas socioespaciais do Norte Global – se ajusta ao contexto do Sul Global, marcado por outras estruturas urbanas, sociais e ambientais.
O trabalho analisou três experiências brasileiras de revitalização ambiental: Parque Madureira, no Rio de Janeiro; Parque Germânia, em Porto Alegre; e o Condomínio Laranjeiras, em Paraty/RJ. Em comum, esses projetos envolveram a criação ou ampliação de áreas verdes, parques urbanos ou empreendimentos instalados em zonas de conservação, processos que, posteriormente, transformaram o perfil social das regiões onde foram implantados.
A partir desses casos, o estudo aponta algumas conclusões. Uma delas é que a concentração de privilégios ambientais, frequentemente discutida como efeito indireto da gentrificação verde, também pode ocorrer de maneira direta: como mostram os autores, há uma tendência de que infraestruturas verdes se acumulem em bairros mais ricos, ficando menos presentes em áreas de baixa renda. O estudo também atesta o papel da expansão imobiliária e da valorização econômica local como elementos recorrentes quando novos parques urbanos são criados ou quando áreas naturais passam por processos de requalificação.
Justiça ambiental no centro da adaptação urbana

Com isso, o conceito de gentrificação verde se mostra pertinente tanto em cidades do Norte, quanto do Sul Global. Mais do que isso, o estudo indica que iniciativas de sustentabilidade urbana que não incorporam princípios de justiça ambiental tendem a se enfraquecer ao longo do caminho, ou seja, tornam-se concentradas nas mãos de poucos, perdem capilaridade e, muitas vezes, acabam produzindo impactos sociais profundos, justamente em nome de combater a crise climática.
A Declaração de Belém sobre o Combate ao Racismo Ambiental coloca na mesa um chamado global: a crise climática exige não apenas transformar o território, mas garantir que essas transformações incluam e protejam quem mais precisa delas.
Cidades resilientes não se constroem apenas com parques, drenagens naturais e corredores verdes, mas com políticas que assegurem permanência, inclusão, participação social e acesso equitativo aos benefícios da infraestrutura sustentável.