Cidades-esponja são o futuro, diz Leila da Costa Ferreira

Leila da Costa Ferreira discute os desafios das políticas climáticas no Brasil e a urgência de se tornar uma potência ambiental globalmente.

Por Nathalia Ribeiro em 18 de junho de 2024 9 minutos de leitura

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Leila da Costa Ferreira (Foto: Divulgação)

Embora as mudanças climáticas representem um problema de escala global, as respostas políticas ao fenômeno ocorrem em múltiplos níveis, abrangendo desde a área internacional até o âmbito de Estados, regiões e cidades. Este cenário envolve uma diversidade de atores governamentais e não governamentais, o que adiciona complexidade ao desafio de coordenar ações efetivas para enfrentar o problema.

Partindo da premissa de que as cidades não são apenas epicentros de atividade humana, mas também laboratórios de inovação e resiliência, a ecóloga e socióloga Leila da Costa Ferreira dedicou-se a investigar como esses centros urbanos podem oferecer insights valiosos para a agenda climática, tanto em âmbito nacional quanto global. Como pesquisadora sênior do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM) da Unicamp e vice-presidente da Comissão de Mudança Ecológica e Justiça Ambiental ligada à Reitoria da Unicamp, Ferreira conduziu o estudo “O Desafio da Governança das Mudanças Climáticas no Brasil: Análise sobre São Paulo”.

Seu trabalho revelou uma lacuna crítica de conhecimento sobre como as políticas públicas locais e os arranjos institucionais nas cidades brasileiras podem influenciar e fortalecer as estratégias climáticas em níveis mais amplos. Leila argumenta que as cidades têm um papel fundamental não apenas na implementação de medidas de mitigação e adaptação, mas também na criação de modelos replicáveis que possam inspirar ações em outras partes do mundo.

Em entrevista exclusiva ao Habitability, ela avalia que, embora haja avanços na elaboração de planos de ação climática para os diversos biomas brasileiros, o País enfrenta um desafio persistente no controle das emissões de gases de efeito estufa, o que tem impacto direto no cumprimento das metas climáticas, tanto internacionais quanto nacionais. Além disso, ela compartilha sua visão sobre o futuro das cidades.

Para abordarmos a questão climática de forma mais ampla, como você avalia o estado das políticas climáticas no Brasil?

Leila da Costa Ferreira: do ponto de vista climático, nós passamos por quatro fases. O Brasil fez sua parte no sentido de que nós iniciamos a discussão das políticas climáticas com a participação de diversos atores. Isso ocorreu em várias escalas, nacionalmente influenciado pela demanda internacional, mas também com nuances estaduais e locais. Depois, avançamos consolidando políticas ambientais, incluindo as climáticas, mas, posteriormente, enfrentamos desafios diante de uma visão bem desenvolvimentista da gestão pública e, depois, um desmantelamento completo.

No âmbito federal, o que é interessante é a interligação entre ciência e política. Por exemplo, o papel dos cientistas brasileiros, incluindo aqueles do INPE e de várias universidades, como nós da Unicamp, que não só contribuíram ativamente para as discussões sobre políticas climáticas, mas também atuaram como gestores. Um aspecto fascinante também no contexto brasileiro é que realizamos dois inventários de gases de efeito estufa, são poucos países no mundo que tiveram isso.

Além disso, a atuação da sociedade civil, representada pela rede Clima e pelo Observatório do Clima, junto a várias ONGs, foi extremamente relevante nessas discussões. Então, quando a política climática é efetivamente consolidada em 2019, ela havia passado por intensas discussões entre esses atores. Desenvolvemos planos de ação para todos os nossos biomas – não apenas para a Amazônia, mas também para o Cerrado, o Pampa, tanto áreas urbanas quanto rurais, e para a agronomia. Essa política está consolidada. No entanto, no que diz respeito às emissões de gases de efeito estufa, tanto internacionalmente quanto no contexto brasileiro, isso tem sido um grande fracasso, já que continuamos a ver um aumento das emissões.

Em quais pontos o Brasil tem fracassado nesse quesito? 

Leila da Costa Ferreira: o Brasil é o maior emissor de gases de efeito estufa e temos observado um aumento contínuo dessas emissões. Houve muitos problemas no governo anterior, como é amplamente conhecido, mas houve problemas em todos os governos, desde o início do nosso processo de democratização. Mas agora, com o atual governo, acredito que precisamos adotar uma postura mais ousada. Existe uma demanda tanto interna quanto externa para que o Brasil se torne uma liderança ambiental internacional. 

Nós possuímos todos esses biomas, algo que nenhum outro país do mundo possui. Temos a maior floresta tropical do planeta, uma riqueza cultural diversificada e uma vasta extensão territorial. Além disso, nossa matriz energética é muito mais limpa comparada a muitos países, mas ainda assim somos o quinto maior emissor de gases de efeito estufa. Nesse ponto, estamos diretamente confrontados com desafios significativos. A COP30 ocorrerá no Brasil, o que nos obriga a adotar uma postura mais ousada do que a que temos demonstrado até agora.

Há essa discussão novamente de perfurar petróleo na Amazônia, o que é absolutamente inadmissível. Isso não pode acontecer de forma alguma. O petróleo levaria pelo menos cinco anos para ser utilizado e daqui a cinco anos praticamente nenhum país estará mais dependente de petróleo. Todos estão investindo em energias alternativas e é isso que o Brasil precisa fazer. Essa é a lição de casa que precisa ser feita. Além de reconstruir toda a sua institucionalidade nessa área, é preciso mudar a sua matriz energética. 

Falando sobre o seu projeto “O Desafio da Governança das Mudanças Climáticas no Brasil (Análise sobre SP)”, por que o Estado de São Paulo foi escolhido e, especificamente, as cidades de Campinas, São José dos Campos, Santos e Ribeirão Preto foram selecionadas para essa investigação?

Campinas (Foto: Renan Pissolatti/WRI Brasil)

Leila da Costa Ferreira: nos últimos 10 anos, período em que concentrei meus estudos e pesquisas na questão da emergência climática, fui levada por uma série de demandas a dar aulas na China. Expandindo meu foco para além do Brasil, onde já era especialista, acabei estudando diversos países na África e na Ásia, com destaque justamente para a China, resultando na publicação de vários livros sobre o tema. Comecei a compreender melhor a questão da emergência climática nesses diferentes países. Meu foco sempre foi a interseção entre emergência climática e cidade. No entanto, ao lidar com uma questão tão multifacetada, é preciso envolver outros setores da sociedade para além do urbano. Apesar disso, mantenho meu foco principal na dimensão urbana.

E então a situação no Brasil se tornou dramática. Foi nesse momento que eu e meu grupo de pesquisa decidimos voltar nosso foco para o Brasil mais uma vez. A partir daí, busquei identificar coisas interessantes que estão acontecendo além das políticas nacionais em relação à emergência climática. 

Foi quando pensei que, sendo uma moradora do Estado de São Paulo e professora da Unicamp há mais de 30 anos, conheço profundamente a região. Santos, por exemplo, é um caso que estudamos há muitos anos. Um aluno meu fez um doutorado lá, que acabou se transformando em um livro, então já tínhamos indícios de que algumas cidades estavam abordando de forma proativa a emergência climática. Assim, conduzimos uma primeira pesquisa preliminar e descobrimos que cidades como Campinas, Santos, São José dos Campos, São José do Rio Preto e Piracicaba apresentavam iniciativas bastante instigantes em relação ao tema.

O que é interessante nesses cinco municípios que foram analisados?

Leila da Costa Ferreira: são as especificidades das ações. Eu costumo dizer que quando se pensa em emergência climática, temos que pensar em adaptação e mitigação, ambas já não se separam mais. Do ponto de vista da adaptação, existem dois grandes processos: a adaptação marrom e a “adaptação de não arrependimento”. 

A adaptação marrom são os grandes investimentos em diques, em construções para prevenir e reverter esses eventos extremos. Em primeiro lugar, isso é muito caro. Segundo, no Rio Grande do Sul, eles já tinham feito os diques para enchentes. No entanto, devido à falta de recursos para manutenção, o que ocorreu durante esta enchente? Os parafusos estavam todos quebrados, as comportas estavam danificadas. Assim, diversos climatólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul observaram que a água não transbordou por cima do dique, mas infiltrou-se através dele, devido à sua falha estrutural. 

Recomposição dos diques da Vila Brás, ao lado da Casa de Bombas da Santo Afonso, e a estrutura do dique do Arroio da João Corrêa, no bairro Vicentina (Foto: Digue Cardoso/Prefeitura Municipal de São Leopoldo)

Atualmente, uma aluna minha está em Augsburg, na Baviera, ao sul da Alemanha. Ela me relatou que lá eles têm recursos muito maiores do que nós, além de um forte compromisso com questões ambientais e emergência climática. Na cidade de Augsburg o dique acabou estourando. Isso levanta uma questão importante: a adaptação marrom é importante, mas também extremamente cara. À medida que eventos extremos se tornam mais intensos e frequentes, nossa arquitetura e engenharia tradicionais muitas vezes não são suficientes. Precisamos explorar novas abordagens em engenharia, arquitetura e adaptação para enfrentar essas novas realidades.

A outra forma que eu chamo de adaptação de não-arrependimento são soluções baseadas na natureza, são formas de tecnologias sociais que incluem, inclusive, as populações locais para que a gente possa se adaptar e prevenir esses eventos extremos. Não pense que nós não vamos viver outro Rio Grande do Sul, porque infelizmente isso acontecerá, e pode acontecer aqui em Campinas. Pode acontecer em Piracicaba.

O governo federal realizou o mapeamento de 1.940 municípios em nossa região que estão propensos a enfrentar enchentes. Aqui na região, pelo menos seis cidades podem vivenciar situações semelhantes à que ocorreu no Rio Grande do Sul. Nossa proposta é buscar nessas cidades adaptações de não-arrependimento e já identificamos iniciativas desse tipo em Santos e Campinas.

Você poderia dar algum exemplo de estratégias de mitigação e adaptação que foram ou estão sendo adotadas por essas cidades?

Leila da Costa Ferreira: em Santos, a comunidade local está completamente envolvida no processo de adaptação aos deslizamentos e às chuvas torrenciais. Eles têm implementado um programa de plantio de árvores que é verdadeiramente impressionante. Além disso, desenvolveram tecnologias sociais onde a própria comunidade pode alertar sobre áreas com aumento de escoamento de água, permitindo evacuar a população rapidamente. E, ao mesmo tempo, o plantio de árvores se destaca como uma solução crucial, pois absorve água eficientemente. 

Mudas foram plantadas em morros de Santos para recuperação ambiental (Foto: Reprodução/Prefeitura de Santos)

Basta realizar um simples experimento: compare um local sem árvores e outro com árvores e observe o escoamento da água. Sem árvores, a água escorre rapidamente, enquanto com árvores, ela é absorvida e filtrada. É a grande história das cidades-esponja na China. Eu vi de perto o que eles estão construindo. É algo realmente fascinante. O conceito das cidades-esponja é o futuro.

Em Campinas isso tem ocorrido na periferia da cidade. Vários pontos na periferia têm adotado soluções baseadas na natureza, incentivadas tanto por políticas públicas quanto pela própria comunidade local, que tem realizado plantios de árvores. É possível observar isso em várias localidades. 

Para mim, foi uma grande surpresa descobrir durante a pesquisa as ações do MST em São José do Rio Preto e São José dos Campos, totalmente voltadas para a produção de alimentos orgânicos e também engajadas na discussão sobre emergência climática. 

O caso de Piracicaba, que considero um exemplo muito interessante, destaca-se por um recorte diferenciado focado em justiça ambiental e emergência climática. As lideranças nesse processo são diversas ONGs, como o Imaflora e o Observatório do Clima. Além de representarem a sociedade civil ativa, é notável que muitas dessas lideranças são mulheres, o que torna a questão de gênero um diferencial bastante relevante nesse contexto.

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Considerando o cenário preocupante para os próximos anos, com eventos climáticos extremos se tornando mais frequentes e intensos, há esperança em mitigar o impacto ambiental? Quais são as principais estratégias e iniciativas que podem ser adotadas globalmente para reduzir os danos causados por esses eventos?

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Enchentes em Porto Alegre – RS, Av Loureiro da Silva, CAFF e região (Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini/Governo do Estado do Rio Grande do Sul via Flickr)

Leila da Costa Ferreira: temos sim a possibilidade de mitigar o processo, mas não mais de reverter. A discussão sobre limitar o aumento da temperatura já avançou além do 1,5 grau Celsius. Agora enfrentamos desafios que vão além de 1,5. Não sabemos ao certo o que pode acontecer. Se já há impactos significativos a 1,5 grau, imagine a 1,9 ou 2. Essa é a grande preocupação atual. Portanto, a solução passa pela prevenção e pela adaptação. Não há tempo a perder. 

Além disso, a questão das cidades é crucial. No mundo, mais de 50% da população vivem em áreas urbanas. No caso brasileiro, esse número é de 85% das pessoas vivendo em cidades. Esses centros urbanos são grandes emissores de gases de efeito estufa. É aqui que precisamos focar, não apenas em alcançar o desmatamento zero, que é fundamental, mas também em reflorestar. 

A China está realizando um grande programa de reflorestamento. Há dez anos, era difícil respirar em Xangai e Pequim, entre outras grandes cidades, com imagens horríveis de poluição extrema. Hoje em dia, a situação mudou drasticamente e é difícil acreditar na transformação que ocorreu. Além de adotarem cidades-esponja, eles também alteraram completamente a matriz energética. Eles possuem o maior parque solar do mundo. Vale lembrar que toda a frota deles também está eletrizada.

É um país que está realmente investindo em uma política ambiental. Tem mil problemas, como todo lugar, mas eles estão investindo em uma política ambiental nacional fortíssima nos últimos 15 anos. O Brasil está atrasado. 

Quais são as suas recomendações para melhorar a governança climática no Brasil nos próximos anos?

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Leila da Costa Ferreira: ou investimos seriamente para nos tornarmos uma verdadeira potência ambiental, ou seremos um dos países mais prejudicados pela emergência climática. É uma escolha decisiva: sim ou não. Não há outra alternativa.

Estamos no sul global, na faixa tropical do planeta, e somos um País extremamente desigual. Embora sejamos a oitava maior economia do mundo, continuamos entre os países mais desiguais. No entanto, podemos nos tornar uma potência ambiental. Ou investimos nesse caminho ou enfrentaremos um fracasso. Nossa agricultura será devastada pelo aumento das temperaturas. Que país agrícola seremos então? Não seremos nem industrial e nem agrícola. Portanto, não temos outra opção.

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