Habitação social sem estigmas: o prédio modular de Barcelona

Em meio a preconceitos históricos, um edifício modular em Barcelona prova que moradia social pode ser bem pensada e sustentável.

Por Nathalia Ribeiro em 12 de agosto de 2025 5 minutos de leitura

Projeto "Industrialised Social Housing" dos escritórios Vivas Arquitectos e EXE Arquitectura (Foto: José Hevia)

A habitação social, ao longo da história, tem sido frequentemente associada a estigmas de baixa qualidade construtiva, soluções padronizadas e à intensificação da segregação urbana. Esses imaginários persistem em muitas cidades, alimentados por exemplos de conjuntos habitacionais mal construídos e isolados dos tecidos urbanos mais dinâmicos. No entanto, esse cenário vem sendo gradualmente ressignificado por uma nova geração de projetos que propõe uma abordagem mais ampla e inovadora ao tema. 

Em Poblenou, distrito de Sant Martí, os escritórios Vivas Arquitectos e EXE Arquitectura entregaram um edifício de habitação social com 45 apartamentos, todos de dois quartos, distribuídos em outro andares, totalizando 4.465 m², incluindo zonas comuns no térreo e cobertura. O projeto foi comissionado pelo Institut Municipal de l’Habitatge de Barcelona (IMHAB), órgão responsável por fomentar a construção de moradias sociais dignas na capital catalã. 

Com uma linguagem arquitetônica contemporânea, o edifício não apenas cumpre sua função habitacional, mas também provoca um questionamento: as habitações sociais precisam, necessariamente, estar dissociadas de uma arquitetura bem pensada? Projetos como de Poblenou mostram ser possível aliar qualidade arquitetônica, inovação e sensibilidade social, mesmo com orçamento restrito.

Modularidade industrial: agilidade e controle

A lógica construtiva do projeto parte de uma premissa que busca aliar agilidade, precisão e sustentabilidade, sem abrir mão da qualidade espacial. Para isso, os arquitetos adotaram um sistema porticado de pilares e lajes em concreto armado como base estrutural, sobre a qual foram posicionados 104 módulos tridimensionais pré-fabricados. Produzidos em ambiente fabril e entregues prontos para instalação, esses volumes foram montados no terreno em apenas 15 dias. 

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A pré-fabricação total dos elementos construtivos não apenas encurtou prazos, como permitiu uma obra mais coordenada. Enquanto as fundações eram executadas no local, os módulos avançavam em paralelo na fábrica, com todas as instalações, acabamentos e impermeabilizações já resolvidas antes mesmo de chegarem ao canteiro. Isso reduziu significativamente o número de etapas em campo, limitou deslocamentos logísticos e garantiu precisão milimétrica na montagem.

O resultado foi uma obra entregue em 13 meses e com ganhos que vão além. Houve custos reduzidos graças a fundações mais leves, maior controle de qualidade com inspeções ainda na linha de produção e impacto ambiental menor, com redução de resíduos e reaproveitamento de materiais ao fim da vida útil do edifício. 

A infraestrutura predial também foi planejada com foco em eficiência energética e manutenção simplificada. Todos os sistemas foram testados ainda em fábrica, assegurando um desempenho adequado desde o primeiro dia. Os módulos, impermeabilizados na parte superior para enfrentar o transporte e a montagem, foram posicionados com o auxílio de um guindaste móvel de grande porte.

No aspecto estético, o edifício estabelece um diálogo direto com a paisagem industrial do entorno. Inspirado na antiga fábrica têxtil que ainda permanece na área, o projeto adota uma linguagem arquitetônica franca e atual, com o uso predominante de materiais metálicos, superfícies expostas e geometrias simples. Em vez de mascarar sua função social, o desenho assume e valoriza a função pública da habitação, integrando-se de maneira contemporânea à memória urbana do bairro.

Desempenho ambiental pensado desde o início

A sustentabilidade foi incorporada desde a concepção, com uma abordagem bioclimática integrada que busca eficiência energética, conforto térmico e redução de emissões ao longo de toda a vida útil do edifício.

Uma das premissas foi a maximização da ventilação cruzada natural. A organização dos apartamentos em torno das passarelas abertas permite que o ar circule livremente pelas unidades, reduzindo a dependência de sistemas mecânicos de climatização e melhorando a qualidade do ar interno.

No campo energético, o edifício se aproxima do conceito Nearly Zero Energy Building (NZEB), combinando diferentes tecnologias que reduzem quase a zero o consumo de energia não renovável. Entre essas soluções estão o sistema de climatização por aerotermia, que utiliza a energia contida no ar para aquecer e refrigerar o ambiente com alta eficiência e a instalação de painéis fotovoltaicos na cobertura, que contribuem para a autossuficiência elétrica e aliviam a pressão sobre a rede pública. A iluminação em LED, aplicada em todos os espaços comuns e privados, complementa o conjunto, assegurando baixo consumo e maior durabilidade. 

Arquitetura como mediadora das relações sociais

Mais do que simplesmente cumprir uma função de circulação, as passarelas externas foram desenhadas como elementos-chave na mediação entre o espaço privado dos apartamentos e o domínio coletivo do edifício. Suspensas na fachada, essas galerias abertas também funcionam como zonas de transição, onde o encontro entre vizinhos ocorre de formas espontânea e cotidiana.

Essa concepção favorece o que os urbanistas definem como “territórios compartilhados de baixa intensidade”, onde pequenas interações diárias, o cumprimento rápido, a conversa casual, o olhar trocado, fortalecem os laços comunitários sem exigir estruturas formais de convivência.

Entretanto, também há espaços pensados na convivência coletiva. No térreo, foram implantadas salas polivalentes destinadas a atividades comunitárias diversas, assembleias de condomínio, oficinas, atividades culturais ou simplesmente espaços de encontro informal entre vizinhos. Essa infraestrutura flexível permite que a própria comunidade defina o uso e a dinâmica desses espaços ao longo do tempo, adaptando-os às suas necessidades específicas.

Na cobertura, um terraço ajardinado com áreas sombreadas oferece não apenas um refúgio climático em meio à densidade urbana, mas também um espaço de socialização ao ar livre. O acesso democrático a áreas abertas no topo do edifício amplia a sensação de pertencimento dos moradores, além de favorecer o bem-estar físico e o mental, aspectos frequentemente negligenciados em modelos tradicionais de habitação social.

Entre cápsulas e dignidade

Em um cenário europeu cada vez mais pressionado pela crise de acesso à moradia, projetos como o conjunto habitacional social de Barcelona, desenvolvido pelos escritórios Vivas Arquitectos e EXE Arquitectura, representam uma resposta estrutural e de qualidade a um problema sistêmico. 

Enquanto propõem soluções duradouras, dignas e socialmente integradoras, outro fenômeno cresce no sentido oposto na Espanha, a proliferação dos hotéis-cápsula como solução temporária, e muitas vezes precária, para quem não consegue mais pagar por uma habitação convencional.

A diferença entre os dois modelos escancara os rumos contrastantes que a política habitacional pode seguir diante do mesmo desafio urbano. De um lado, a habitação social modular aposta na industrialização inteligente da construção civil para oferecer moradias completas, com qualidade arquitetônica, conforto ambiental e espaços comunitários que fortalecem os vínculos sociais. 

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Do outro, as cápsulas, originalmente pensadas para o turismo rápido, passam a ser adaptadas como moradias improvisadas para trabalhadores, estudantes e até professores universitários, escancarando o abandono, onde o acesso à moradia vira privilégio e não direito.

O caso de Poblenou mostra que é possível mudar esse cenário. A habitação social pode ser sinônimo de inovação, qualidade e integração urbana, deixando para trás antigos estigmas e promovendo moradias dignas e sustentáveis.

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