Um novo estudo mostra que a preservação da Amazônia e o futuro sustentável do planeta dependem do diálogo entre ciência ocidental e conhecimentos indígenas. Publicado na revista “Science” e reforçado pela Agência Bori, o artigo reúne pesquisadores indígenas dos povos Tuyuka, Tukano, Bará, Baniwa e Sateré-Mawé, em parceria com cientistas não indígenas vinculados ao projeto do Brazil LAB, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e às universidades federais de Santa Catarina (UFSC) e do Amazonas (UFAM). O documento aponta que a integração de saberes pode tornar a conservação e restauração ambientais mais eficazes.
O trabalho evidencia que, para os povos do Alto Rio Negro, o mundo pode ser organizado em três domínios: terrestre, aéreo e aquático. Estes são habitados por seres humanos, animais, plantas, rios e os chamados “outros humanos” — ou “encantados” — que exigem respeito e consulta antes do uso de recursos naturais. Segundo os pesquisadores, essa visão, que entende a vida como uma rede de relações interconectadas, pode contribuir para práticas de manejo sustentável e para a construção de uma ciência mais holística.
Em entrevista, Justino Sarmento Rezende, pesquisador indígena da UFAM e um dos autores do estudo, afirma que outros seres também são viventes e habitantes dos territórios. “Ninguém consulta os animais antes de invadir suas casas. Precisamos representá-los e integrá-los nas decisões sobre a conservação do bioma”, afirma. O artigo defende ainda que a participação de líderes e especialistas indígenas em projetos científicos seja valorizada, criando um espaço para a ciência indígena nas universidades e instituições de pesquisa.
O artigo parte da ideia de que nada existe sozinho, tudo está relacionado. Como essa visão de mundo pode transformar a forma como pensamos o meio ambiente, inclusive nas cidades?
Justino Sarmento Rezende: Os povos originários (indígenas) compreendem que aquilo que a ciência ocidental (não indígena) chama de natureza ou meio ambiente é, na verdade, formado por outros seres que interagem entre si e com os humanos. Na visão de muitos povos amazônicos, árvores, plantas, insetos, pássaros, lagartas, cobras, formigas, peixes, flores, palmeiras, pedras, cachoeiras, águas, minérios e diferentes tipos de argilas são portadores de vida: eles nos observam, protegem, atacam, causam doenças, curam e cuidam.
Essa concepção está presente tanto entre indígenas que vivem em pequenas comunidades, quanto entre os que habitam grandes cidades. Independentemente da pertença cultural, todos se relacionam com esses seres — alguns povos reconhecem claramente essa conexão, enquanto outros a desconhecem, por não terem sido educados para percebê-la.
Como a ciência pode aprender a escutar quem não “fala” como nós, mas também habita o planeta conosco?
Justino Sarmento Rezende: Muitos humanos não foram educados para ouvir e compreender as linguagens — os recados e mensagens — de árvores, peixes, pássaros, sons, barulhos, cobras, temporais ou a posição das estrelas. Quem não desenvolve essa escuta não consegue dialogar com outros seres nem consultar o que eles têm a nos dizer sobre saúde, trabalho, viagens ou festas.

Nós, enquanto membros dos povos indígenas, reconhecemos que nem todos compartilham desse saber. Nossos sábios e sábias, detentores de conhecimentos, entendem e conversam com outros seres por meio de práticas xamânicas, das festas tradicionais e também por meio dos sonhos, transmitindo essas mensagens aos membros da comunidade. Por isso, é essencial valorizar, proteger e garantir espaços contínuos para esses guardiões do conhecimento. Eles e elas não podem ser silenciados: precisam ser ouvidos, pois são as vozes que traduzem o que os outros seres têm a nos ensinar, mesmo quando não falam as linguagens humanas.
Por que ainda é tão difícil para a ciência ocidental reconhecer e integrar outras formas de saber?
Justino Sarmento Rezende: É importante seguir insistindo com as ciências ocidentais — Biologia, Ecologia, Arqueologia e Física, entre outras — que também existem outras formas de ciência, elaboradas pelos povos indígenas e por outros grupos ao longo de milênios. São conhecimentos provados e comprovados, com metodologias próprias e realizados em seus “laboratórios” específicos: os territórios, os lagos, as casas cerimoniais (malocas).
Assim, os povos originários sempre cuidaram dos territórios e de seus inúmeros habitantes, ao mesmo tempo em que eram cuidados por eles. Havia, e ainda há, uma relação de reciprocidade entre todos. A ciência ocidental, porém, costuma ter dificuldade para compreender isso, pois enxerga a produção de conhecimento a partir de outros contextos acadêmicos.
Você acredita que, diante das questões ambientais que desafiam o planeta como um todo, há sinais de mudança nesse cenário?
Justino Sarmento Rezende: Vejo sinais de pequenos avanços: há grupos de cientistas que nos ouvem e consideram nossas contribuições, embora ainda com muitas reservas, dúvidas e receios. A mudança virá lentamente, à medida que nós, indígenas, mantivermos um diálogo constante, construindo confiança mútua. Quando, do lado da ciência ocidental, houver pessoas dispostas a ouvir e a incentivar esse intercâmbio, poderemos aprofundar o diálogo com nossos detentores de conhecimento, compartilhando com eles também o que pensam os cientistas. Dessa forma, será possível alcançar uma verdadeira compreensão interdisciplinar e, juntos, contribuir para o cuidado do mundo atual.
Como podemos construir uma ciência que não seja colonizadora, mas colaborativa, respeitosa e, acima de tudo, justa com os povos indígenas e seus saberes milenares?
Justino Sarmento Rezende: O caminho do diálogo simétrico pode favorecer a construção de novos saberes a partir dos conhecimentos já existentes. Enquanto, de um lado, houver cientistas que se consideram detentores absolutos da verdade e, de outro, povos — como os indígenas — vistos como desprovidos de ciência, o distanciamento milenar permanecerá.
É necessária uma aproximação entre diferentes, dispostos a aprender e a ensinar. Todos os povos possuem conhecimentos historicamente construídos e, por isso, merecem ser respeitados e valorizados em seus aspectos essenciais.
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De forma prática, como, por exemplo, o movimento das constelações ou os ciclos da Terra são levados em conta na produção de alimentos em comunidades indígenas? O que esses saberes ensinam à agricultura convencional?

Justino Sarmento Rezende: Nossos detentores de conhecimentos viam, nas constelações, um calendário que orientava o tempo de iniciar o trabalho na roça, de observar quais árvores começavam a florescer, quais já tinham frutos em amadurecimento e quais fruteiras ofereciam frutos prontos para a colheita. A partir dessas referências, também sabiam localizar os animais para a caça, assim como identificar peixes, insetos e outros seres — todos igualmente ligados às flores e aos frutos.
Com base nessas observações, realizavam festas cerimoniais para acalmar os seres vivos, prevenindo doenças, acidentes de trabalho, afogamentos e outros perigos. Hoje, as crises ambientais desestruturam esse funcionamento: chove em épocas antes secas, surgem estiagens prolongadas quando os rios costumavam estar cheios. Não apenas os humanos ficam desorientados, mas também os demais seres. Diante das mudanças climáticas, todos buscam se adaptar continuamente.
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O que significa, na prática, consultar os “encantados” ou os “outros humanos” antes de acessar elementos da natureza? Como isso redefine nossos conceitos de território e pertencimento?
Justino Sarmento Rezende: Essa prática baseia-se na compreensão de que outros seres — como territórios, vegetações, florestas, cachoeiras, lagos, peixes e tantos outros — são “gentes”, assim como os humanos. Seus habitats — árvores, rios, pedras, montanhas — são suas casas, e eles são os donos desses lugares. Por isso, nossos detentores de conhecimentos, como xamãs e mestres de cantos e danças, realizam cerimônias utilizando cigarro e breu para defumação; cantam para dialogar com esses seres, pedem permissão para coletar frutas, caçar, pescar ou utilizar recursos naturais. De maneira equilibrada, retiram apenas o necessário desses seres, que também nascem, crescem e morrem, tal como os humanos.
Quando tais cerimônias não são realizadas, esses seres podem reagir, causando doenças como forma de defesa e proteção de seus espaços. As árvores frutíferas, por exemplo, são vistas como mães de seus frutos; se alguém colhe sem pedir permissão, pode sofrer dores estomacais, de cabeça ou até mesmo ir à óbito.
Que tipo de inovação pode nascer do encontro entre um pajé e um pesquisador de laboratório? Há exemplos concretos dessa troca bem-sucedida?
Justino Sarmento Rezende: Dependendo do contexto, esse diálogo pode gerar inovações significativas. Há relatos, na Colômbia, de hospitais onde médicos formados na academia e pajés trabalham juntos. Algumas doenças não têm tratamento na medicina ocidental, pois ainda não existe medicamento para elas, e muitas não são detectadas por exames laboratoriais. Nesses casos, um pajé bem preparado pode identificar e curar enfermidades usando categorias e ferramentas imateriais próprias de seus saberes.
No Brasil, essas práticas ainda têm pouca visibilidade e costumam existir em espaços separados, devido ao preconceito e à desconfiança em relação aos conhecimentos tradicionais e a seus detentores. Um exemplo promissor é o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, em Manaus/AM, onde sábios dos povos Tukano e Desana atendem pessoas para tratar questões de saúde. Muitos têm se beneficiado desse trabalho, que mostra o potencial de colaboração entre saberes indígenas e ciência ocidental.
Sobre o futuro, a Amazônia é vista como território fértil para o diálogo entre saberes. Quais são os maiores riscos e as principais oportunidades desse momento histórico?

Justino Sarmento Rezende: A Amazônia e os povos que nela habitam emergem por diferentes fatores: a floresta em processo de destruição; as ameaças contínuas de grandes empresas; a resistência dos povos indígenas; e a percepção de que a Amazônia pode retardar a destruição mundial. Há também o reconhecimento de que a ciência ocidental não consegue oferecer respostas adequadas para inúmeras crises locais e globais, enquanto cresce a compreensão de que os povos indígenas e outras populações amazônicas podem contribuir muito para o cuidado do território e até de outros continentes.
Entretanto, existe o risco de ocorrer um “endeusamento” da Amazônia e de seus povos. Nós, indígenas e demais habitantes da região, não somos detentores plenos do conhecimento capaz de resolver todos os problemas do mundo, nem os novos desafios que surgem. É fundamental estabelecer um diálogo maduro e respeitoso entre todos, aprender uns com os outros e também com diferentes ciências. Todos buscamos respostas, independentemente de sermos indígenas ou não, de vivermos em pequenas comunidades ou em grandes centros urbanos.
Como o senhor vê o papel das novas gerações indígenas no fortalecimento dessa ciência ancestral? Elas estão conseguindo se apropriar dessas “vozes silenciadas”?
Justino Sarmento Rezende: Em muitos lugares, pais, mães, avós e detentores de saberes continuam transmitindo seus conhecimentos e ensinando como aplicá-los na prática. A convivência entre gerações é essencial para essa continuidade. Por outro lado, vejo muitas crianças, adolescentes e jovens ingressarem muito cedo na escola e, nem sempre, essas instituições abordam os saberes ancestrais em seus processos de ensino. Em alguns contextos, existem as chamadas Escolas Indígenas, que procuram reservar tempo e espaço para o aprendizado do que nossos avós construíram. Essas escolas valorizam e fortalecem nossas tradições por meio do ensino das línguas, da participação nos ritmos comunitários — como o trabalho coletivo e as festas —, além da produção de materiais próprios.
Em muitos territórios, a chegada da internet trouxe uma avalanche de informações externas, mas também abriu oportunidades. Muitos indígenas têm utilizado as redes sociais para divulgar seus conhecimentos, dar visibilidade às suas culturas, organizar reuniões e promover formações. No âmbito da graduação e pós-graduação — especialização, mestrado e doutorado —, diversos pesquisadores têm se aprofundado nos saberes de seus povos. Esse movimento fortalece tanto as universidades em que estudam, quanto suas próprias comunidades, pois garante o registro e a valorização desses conhecimentos.
Por que é tão importante dar voz àqueles que não têm — sejam eles humanos marginalizados ou seres não humanos?
Justino Sarmento Rezende: Muitos povos continuam sendo invisibilizados e, por isso, suas vozes não são ouvidas. O Movimento Indígena — presente em todo o continente latino-americano e também no Brasil — tem realizado um importante trabalho de articulação entre os povos de seus territórios. As assembleias locais, regionais, estaduais, nacionais e internacionais são espaços onde as vozes indígenas ecoam, alcançando governantes municipais, estaduais, nacionais e até mandatários intercontinentais.
A partir desses movimentos, também se reivindica que florestas, rios e todos os seres vivos que habitam diversos lugares sejam respeitados, defendidos e cuidados, pois eles também são “gentes” que precisam ser ouvidos. Nós, humanos, falamos em nome desses territórios quando defendemos a demarcação das terras indígenas — uma defesa que abrange todos os outros seres que compartilham esses espaços.
O que significa “fazer ciência com o coração, com a escuta, com a espiritualidade”? Esse é um caminho possível para todos nós?
Justino Sarmento Rezende: A ciência ocidental é uma das formas de compreender a vida dos seres cósmicos e os diversos territórios. Para muitas pessoas, ciência e espiritualidade parecem incompatíveis. Na minha visão tuyuka, porém, a espiritualidade é também uma maneira de conhecer o mundo e os seres que nele habitam. Ela oferece outra forma de cuidar das vidas cósmicas, por meio da música, das danças, das pinturas, das dietas e das restrições alimentares. É um caminho que todos os povos indígenas percorrem, igualmente científico e legítimo, que sustenta muitas histórias e vidas — humanas e cósmicas — ao longo do tempo.