A construção civil vive um paradoxo climático. Ao mesmo tempo em que molda as cidades, impulsiona o desenvolvimento urbano e oferece abrigo às populações crescentes, também figura entre os setores que mais contribuem para a emissão de gases de efeito estufa (GEE) no planeta. Segundo a ONU-Habitat, o setor responde por cerca de 40% das emissões globais relacionadas à energia, um dado que pressiona pesquisadores, arquitetos e engenheiros a repensarem os materiais e processos que sustentam as paisagens urbanas.
Foi com esse desafio em mente que pesquisadores da ETH Zurich, uma das mais respeitadas instituições de ciência e tecnologia da Europa, apresentaram uma descoberta que pode revolucionar a forma como se constrói o espaço urbano: um material vivo, feito com cianobactérias fotossintéticas, capazes de capturar dióxido de carbono da atmosfera.
A inovação combina ciência de materiais, engenharia genética e biotecnologia ambiental para criar um composto que, diferentemente do concreto tradicional, retira CO₂ do ar durante e após o processo de cura, e não emite GEE em sua produção.
Como funciona o “material vivo”?

Publicado na Nature Communications, o estudo descreve um material vivo feito a partir de hidrogel impresso em 3D e combinado com cianobactérias, micro-organismos que fazem fotossíntese, ou seja, absorvem gás carbônico e liberam oxigênio, assim como as plantas.
Nos testes de laboratório, esse “cimento vivo” foi capaz de capturar CO₂ continuamente por mais de 400 dias, com uma eficiência de até 26 miligramas por grama do material, um desempenho melhor que o de várias soluções biológicas já estudadas e comparável a técnicas usadas para transformar concreto reciclado em armazenador de carbono.
“Criamos um material que está vivo, cresce e remove ativamente o carbono do ar”, afirma o professor Mark Tibbitt, do Departamento de Engenharia Macromolecular da ETH Zurich e um dos líderes da pesquisa. Além de transformar CO₂ em biomassa ao interagir com a luz solar, o material também favorece a formação de minerais que armazenam carbono de forma estável. “É uma dupla captura de carbono”, resume Tibbitt, em nota divulgada na Science Daily.
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Além de realizar fotossíntese mesmo em ambientes com pouca luz, as cianobactérias também são capazes de alterar a química ao seu redor. Esse processo favorece a formação de minerais como o calcário, que ajudam a armazenar ainda mais carbono e reforçam a estrutura do material.

Esse comportamento só é possível graças ao hidrogel desenvolvido pelos pesquisadores, que funciona como um suporte inteligente. Ele permite que luz, água, nutrientes e CO₂ circulem livremente, mantendo as bactérias vivas e ativas dentro da estrutura.
Com o uso de tecnologia de impressão 3D, a equipe conseguiu desenhar um material com geometrias específicas, pensado para aumentar o contato com a luz e otimizar a distribuição interna dos nutrientes. “Criamos estruturas capazes de manter os microrganismos vivos por mais de um ano, sem a necessidade de intervenção externa”, afirma Dalia Dranseike, também coautora da pesquisa.
A longo prazo, a ideia é que o material vivo possa ser incorporado diretamente à arquitetura, como parte das superfícies urbanas. “Queremos explorar seu uso como revestimento de fachadas, para que edifícios sejam capazes de reter carbono ao longo de todo o seu ciclo de vida”, projeta Mark Tibbitt.
Veremos o material vivo nas ruas?
Fora dos laboratórios, o material vivo já começa a ocupar espaço no campo da arquitetura experimental. Estruturas desenvolvidas com essa tecnologia foram apresentadas em eventos internacionais, como a Bienal de Arquitetura de Veneza e a Triennale de Milão, sinalizando os potenciais estético, funcional e ambiental dessas soluções no cenário urbano.
Na Bienal, o destaque ficou por conta da instalação Picoplanktonics, apresentada no pavilhão do Canadá. A obra traz uma série de colunas orgânicas de até três metros de altura, descritas pela equipe como “troncos vivos”, estruturas que respiram, interagem com o ambiente e capturam até 18 quilos de CO₂ por ano, o equivalente ao que uma árvore adulta absorve em duas décadas. A proposta é assinada pela arquiteta Andrea Shin Ling, doutoranda da ETH Zurich, que liderou a criação arquitetônica do projeto com foco na integração entre arte, ecologia e ciência dos materiais.
Já em Milão, a instalação Dafne’s Skin, criada em parceria entre a pesquisadora Dalia Dranseike e o estúdio austríaco MAEID, propõe uma reflexão sobre o tempo, a matéria e o ciclo de vida dos edifícios. A obra utiliza superfícies de madeira colonizadas por micro-organismos, que se transformam com o passar dos dias, absorvendo carbono e se modificando conforme a exposição ao ambiente. É uma arquitetura que não apenas reage, mas evolui.
Esses experimentos fazem parte da iniciativa ALIVE (Advanced Engineering with Living Materials), um programa interdisciplinar que une cientistas, engenheiros, arquitetos e designers em torno de um objetivo comum: usar materiais vivos como revestimentos ativos, capazes de capturar CO₂ ao longo de todo o ciclo de vida de um edifício, do canteiro de obras ao envelhecimento da construção.
De acordo com os cientistas responsáveis, o próximo passo é levar essa tecnologia para fora das exposições e testá-la em escala urbana real. Isso inclui desafios técnicos, como a durabilidade dos microrganismos em ambientes externos, e questões logísticas, como viabilidade de produção e aplicação em obras maiores. Ainda assim, os primeiros protótipos já deixam claro que uma nova era da construção está se desenhando.
Uma nova lógica para a construção urbana

A proposta da ETH Zurich não surge isolada. Ela se soma a uma nova geração de pesquisas que vêm repensando os materiais de construção a partir da biologia, da autossuficiência e da capacidade regenerativa dos ecossistemas. É o caso do cimento feito com micróbios, desenvolvido por pesquisadores da Universidade do Colorado.
A proposta, batizada de Biocement, utiliza bactérias capazes de precipitar calcário para formar blocos sólidos e reutilizáveis. O resultado é um material que, além de evitar a emissão de carbono, pode ser “cultivado” em vez de fabricado, gerando uma lógica de produção diferente da do cimento convencional, mais limpa, circular e com menor impacto ambiental.
Outro exemplo são os chamados Living Building Materials (LBMs) ou materiais vivos para edifícios. Eles não apenas incorporam vida em sua composição, como também reagem ao ambiente, se regeneram diante de danos e, em alguns casos, até mudam de forma ou cor com o passar do tempo. São materiais pensados para durar, mas também para evoluir.
O que essas iniciativas têm em comum é uma mudança na maneira de pensar o espaço construído. Saímos da lógica de materiais inertes, que apenas ocupam lugar e exigem manutenção constante, para um modelo bioativo, em que paredes, revestimentos e superfícies se tornam agentes ativos da sustentabilidade urbana.
Mais que acompanhar tendências, esses estudos antecipam um novo paradigma: o da cidade como organismo, literalmente, vivo, onde cada componente — do piso à fachada — pode colaborar para restaurar o equilíbrio entre ambiente construído e natureza.