Sem urbanismo encaixotado! COP30 e o urbanismo regenerativo

A bióloga Alessandra Araújo aborda, em entrevista, urbanismo regenerativo e as lições da natureza para inspirar as cidades.

Por Ana Cecília Panizza em 9 de junho de 2025 8 minutos de leitura

Alessandra Araújo. Sem urbanismo encaixotado! COP30 e o urbanismo regenerativo
Alessandra Araújo (Foto: Arquivo pessoal)

A escolha de Belém/PA como sede da COP30 destaca o protagonismo da Amazônia na governança climática global e chama atenção para desafios decorrentes da urbanização na região, como desmatamento, falta de saneamento, crescimento desordenado e pressão sobre ecossistemas. A inspiração para superar esse quadro está mais perto do que se imagina – ali mesmo, junto aos indígenas que vivem no bioma. As práticas indígenas para o urbanismo regenerativo revelam soluções ancestrais para novos modelos de cidades, mais saudáveis e resilientes, baseados no uso de recursos existentes, na contramão do urbanismo tradicional, focado em expansão e no consumo crescente de recursos. 

Essas comunidades desempenham papel crucial na proteção dos recursos naturais em função do manejo sustentável de seus territórios e do conhecimento profundo das interações entre os ecossistemas. Como afirma a bióloga Alessandra Araújo, “elas têm o grande mérito de ler o tempo para criar as melhores soluções para se viver, o que o homem urbano parece não ter aprendido, ainda”. Em entrevista ao Habitability, a fundadora da Bio-Inspirations – consultoria focada em inovação baseada na natureza e em biomimética – aborda como essas vozes podem nos ensinar a criar políticas que incluam sustentabilidade e justiças social e ambiental e como a COP30 é uma grande oportunidade para isso.

Alessandra também cursou Gestão Responsável para a Sustentabilidade e Urbanismo Sustentável, e é professora de Biomimética da Architectural Association e do Master Ecological Design Thinking, da Schumacher College, ambos na Inglaterra. Confira a entrevista a seguir.

DE QUE FORMA PRÁTICAS INDÍGENAS PARA O URBANISMO REGENERATIVO PODEM CONTRIBUIR PARA CIDADES DA REGIÃO AMAZÔNICA? 

Foto: Hadrien/ Adobe Stock

Alessandra Araújo: Temos muitas razões para estarmos bem preocupados com a crise climática, mas estamos vivos e temos muito mais razões para esperançar em atitudes positivas de regeneração. Cruzar esse tema Práticas indígenas para o urbanismo sustentável com urbanismo regenerativo passa pela diversidade. E não me refiro ao jargão da diversidade e inclusão, mas, sim, a diversidade raiz. O que é uma agricultura sustentável praticada por indígenas? Eles nem tinham essa palavra “sustentável”, nunca precisaram ter, pois sempre tiveram um entendimento de agrofloresta por uma leitura da natureza. A comunidade indígena tem uma relação de tempo distinta de uma comunidade urbana. A comunidade indígena lê o tempo. 

COMO FUNCIONA ESSA LEITURA?  

Alessandra Araújo: A comunidade indígena lê as estações, o que deu certo, o que não deu certo, o que valeu a pena e o que precisa adaptar. E a comunidade urbana só segue e segue. Daí vem a chuvarada, fica tudo com enchente, e são feitos piscinões. E nunca se pensa em uma solução com base em como a natureza trabalha. Esta, por sua vez, nunca vai trabalhar por meio de uma estratégia única. Por exemplo, como a floresta lida com o excesso de água? De chuva? Ela tem uma comunidade epífita de bromélias e de orquídeas, que ocupa o topo das árvores. Essa comunidade consiste em pequenos tanques de água. Cada bromélia é como um minicaptador de água nas alturas. Olha que coisa interessante! Mais interessante ainda é que as bromélias só se expandem à medida que a árvore se expande, de forma que seja possível sustentar seu próprio peso e o da água captada. Se ela não tiver onde se apoiar e ramificar para sustentar seu peso, ela não vai desenvolver. Então existe, como eu sempre brinco, essa dança que acontece na natureza. E essa dança a gente não vê no urbanismo. É um urbanismo muito encaixotado. 

COMO É ESSE URBANISMO ENCAIXOTADO?

Alessandra Araújo: Os prédios são unidades absolutamente individuais, que captam os recursos urbanos de água; de energia; geram um monte de efluentes, de lixo e não fazem nada com isso. A sua estrutura, a sua operação, não devolve nada para o ecossistema no qual ele está inserido. E, por mais que seja um ambiente urbano, ele não deixa de ser um ecossistema. O que representa um ecossistema? São vários sistemas em troca em um mesmo lugar, que é o eco. Eco significa casa. Se o meu prédio, que eu habito em uma cidade, não tem nenhuma permeabilidade, ou seja, ele não troca em nada, pelo contrário, só gera demanda, como é que esse urbanismo pode ser sustentável? 

SOBRE AGRICULTURA SUSTENTÁVEL PRATICADA PELOS INDÍGENAS: DE QUE MANEIRA AS CIDADES PODEM APRENDER COM ELA?  

Foto: Divulgação/ FEI

Alessandra Araújo: Quando a gente fala de uma agricultura indígena, é importante também ter as licenças não românticas da história, porque, para fazer agricultura indígena, é preciso abrir um espaço, então tem corte de árvores. É um desmatamento expressivo? Não, de forma alguma, porque ele tem, por si só, uma veia regenerativa. Tem sido feito um trabalho muito próximo entre indígenas do Xingu e comunidades científicas sobre esse reconhecimento de plantar com várias sementes, porque uma retroalimenta a outra. Uma trabalha em consórcio com a outra. Então é mais fácil sobreviver quando você tem cooperação. E esse é o princípio base desses plantios consorciados, que é um princípio da agrofloresta. E o que o urbanismo faz desse consórcio de troca? Muito pouco. Ao se pensar em uma unidade individual, um prédio por exemplo, o que ele faz para aquela ecologia local, para aquele ecossistema? Ele faz algum serviço ambiental? Ele processa um pouco do seu efluente e gera vida a partir daí? Ele capta um pouco de água de chuva e compartilha o excedente? Ele tem unidade de geração de energia e compartilha? Nem nossos parques, né? Hoje já tem tanta tecnologia avançada para se gerar energia elétrica a partir de varrição de parques, de poda de árvore, de uma série de matérias orgânicas. Assim como o efluente, que pode também virar não só material fertilizante, mas energia. E efluente hoje não está nem perto da sua plenitude de saneamento ambiental no Brasil.

COMO FUNCIONA GERAÇÃO DE ENERGIA A PARTIR DA PODA DE ÁRVORE?

Alessandra Araújo: A Amazônia é o que ela é porque ela recicla nutrientes. Cai um montão de matéria orgânica no chão e isso se transforma em nutrientes para o solo – ao longo de muito tempo –, que alimenta todo o ciclo. Em parque não há esse tempo, mas tem outra relação: as árvores precisam ser podadas por questão de segurança. E nem sempre os municípios usam essa poda da melhor maneira. Uma forma de usar isso é gerar energia por meio de processo industriais em usinas de biomassa com gaseificador, onde a biomassa seca (como restos de varrição e de poda) é convertida em um gás combustível (gás de síntese ou “syngas”), a partir de um processo térmico em ambiente com pouco oxigênio. O gás, então, pode ser queimado em um gerador para produzir eletricidade. Essa modalidade de geração de energia pode ser usada em pequena e média escalas. Ainda não é amplamente utilizada, mas há práticas em algumas áreas da Itália e em países da Ásia. 

VOCÊ PODE DAR EXEMPO DE BIOMIMÉTICA EM ARQUITETURA? 

Alessandra Araújo: Desenhei com o escritório GCP Arquitetura & Urbanismo o projeto do Votu Hotel, na Península de Maraú, no sul da Bahia, com o conceito de ventilação constante, inspirado nos cães de pradaria, que são mamíferos e, portanto, têm sangue quente. Eles moram nas pradarias do Canadá, que, sabemos, tem temperaturas baixíssimas, e precisam ficar entocados para poder dar conta do inverno rigoroso. Como seres vivos e, principalmente, por serem mamíferos, requerem que o ar seja salubre para sua respiração. Então, os cães de pradaria constroem sistemas de ventilação para manter a sua saúde respiratória e seu sistema vivo, saudável. O sistema de ventilação do Votu é inspirado nesses cães, que fazem suas tocas enterradas no solo, com entradas e saídas de ar com altura e diâmetro distintos, permitindo que o vento ou a brisa possam entrar e ventilar a toca. Nos bangalôs do Votu Hotel, que ficam em jardins, esse princípio – de altura e diâmetro distintos – foi incorporado para garantir conforto térmico constante, mesmo com o espaço fechado.

QUAIS PRÁTICAS INDÍGENAS PARA O URBANISMO, NO CONTEXTO ARQUITETÔNICO, PODEM SER ADOTADAS NAS CIDADES PARA APRIMORAR AS CONSTRUÇÕES? 

Foto: Catarina Ribey/ Shutterstock

Alessandra Araújo: As comunidades indígenas, com sua arquitetura vernacular (desenvolvida com características e recursos locais ou regionais, e materiais disponíveis no próprio ambiente onde está inserida), não tinham a energia elétrica como solução fácil para resolver problemas térmicos. É o caso de arquitetura como a do Xingu, que eu acho muito interessante e que inspirou o Centro Sebrae de Sustentabilidade, em Cuiabá, Mato Grosso – um prédio lindíssimo, inspirado na arquitetura indígena. São obras que respeitam o clima local. Que têm uma capacidade de respirar, de reter calor, de sombrear e de fazer o ambiente interno mais agradável quando o ambiente externo está extremamente quente, chuvoso, muito úmido. São construções que garantem que aquela ocupação seja termicamente agradável. Com a biomimética também é possível fazer isso. 

Leia também: Biomimética: a natureza como inspiração para a arquitetura

AS EDIFICAÇÕES COM SELOS DE SUSTENTABILIDADE SÃO UM CAMINHO PARA EDIFICAÇÕES MAIS SUSTENTÁVEIS, DE FATO?

Alessandra Araújo: Existem os projetos Leadership in Energy and Environmental Design (LEED), que é essa terminologia dos prédios sustentáveis, que se tornou um selo de sustentabilidade nas construções urbanas. Essas construções têm sistemas de ar-condicionado econômicos, máquinas eficientes, eventualmente duas camadas de vidro. Mas o projeto arquitetônico não é concebido para ser eficiente. Os materiais garantem eficiência. Só que os materiais vêm de um lugar. O vidro precisa vir de uma mineração de areia, precisa ser transformado. E a nossa reciclagem de vidro ainda não é expressiva para falar “olha que legal, todos os vidros são reutilizados”. Os equipamentos de climatização energizados é mesma coisa: têm aço, cobre, consomem energia. São sistemas mais eficientes como materiais e equipamentos, mas não na concepção urbanística, na concepção arquitetônica. E esse é um grande diferencial. Se toda arquitetura tivesse a consciência de que a sua construção, por si só, é mais eficiente, seria fantástico.

NESTE PONTO QUE ESTARIA O GRANDE DIFERENCIAL DA ARQUITETURA INSPIRADA NA NATUREZA?

Alessandra Araújo: Como uma casa no Nordeste brasileiro, sem ar-condicionado, é agradável? Como a gente faz isso? É lógico que o ar-condicionado vai conferir uma troca de temperatura muito importante e vai trazer conforto maior mesmo quando as temperaturas estiverem em 32 graus. Mas uma arquitetura verdadeiramente bioclimática, uma arquitetura com biomimética, ela vai reduzir muito essa temperatura. Uma arquitetura com os princípios indígenas, vernaculares, vai ser muito eficiente. O convite é: como a gente pensa na forma, para que ela possa responder às intempéries climáticas?

As tecnologias avançam constantemente e é ótimo que seja assim. Por meio de equipamentos mais modernos a gente tem um conforto ideal. Mas não se pode depender somente de equipamentos e materiais para ter conforto. Aqui a gente está falando de uma capacidade criativa. E essa criatividade vem da observação de comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas, ancestrais, que têm essa relação do tempo com o seu contexto – e com o local – muito diferente. Tem essa leitura do tempo, das estações. Os incas e os maias também tinham essa inteligência, essa supra inteligência de leitura das estações: onde construir, como construir, como aproveitar o vento, em que época plantar… Ao mesmo tempo que a gente avança em tecnologia, a gente tem que avançar nessas tecnologias que são vivas, que são humanas, que é a observação, a percepção.

A REALIZAÇÃO DA COP30 EM BELÉM/PA É UMA OPORTUNIDADE PARA PROMOVER ESSE APRENDIZADO SOBRE AS PRÁTICAS INDÍGENAS PARA O URBANISMO?

Alessandra Araújo: A COP30 no Brasil tem uma potencialidade de trazer o valor da nossa diversidade. Sem dúvida, o brasileiro tem uma diversidade cognitiva, cultural e alimentar, que pode ser refletida como potência para a COP. E tem ainda toda a diversidade da cultura ancestral brasileira, tanto das comunidades indígenas, como das comunidades quilombolas, que trazem muito conhecimento sobre a terra, do como plantar, gerir materiais, se medicar. Os quilombolas têm um conhecimento de fitoterapia muito interessante, muito rico. Ou seja, temos tanta criatividade, potencialidade e resiliência e podemos fazer do evento a oportunidade de apresentar ao mundo toda essa potencialidade e diversidade cultural.

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