Foi no ritmo da dança contemporânea que a arquiteta e urbanista Adriana Levisky encontrou seu próprio compassar: transformar a vida das pessoas por meio da requalificação urbana. Em entrevista ao Habitability, a ganhadora do prêmio “Pensador de Cidades”, promovido pelo Estadão em parceria com a Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp), conta como seu amor pela arquitetura, despertado pela dança, tornou-se uma ferramenta de transformação social e propósito.
O encontro das duas artes se deu quando ela foi ministrar aulas de dança para crianças em comunidades carentes. Além de um enriquecimento pessoal significativo, a experiência a despertou para o trabalho social. Impulsionada pelo seu interesse na transformação de espaços e também pela sua afinidade prévia com cenografia, ela direcionou seu caminho para a arquitetura e se formou na faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Hoje, a líder do escritório Levisky Arquitetos | Estratégia Urbana e conselheira da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura de São Paulo (AsBEA-SP) e do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU/SP), emprega sua expertise em moldar e revitalizar ambientes e áreas urbanas por meio de projetos que transcendem as barreiras tradicionais, incorporando atitudes transformadoras que melhoram a economia urbana, promovem o bem-estar, a mobilidade e a saúde. ‘’Nunca é meramente um espaço; é um espaço que, ao receber atribuições afetivas e identitárias, transforma-se em um lugar para as pessoas. Se analisarmos, é complexo e abstrato, mas, no final das contas, a materialidade disso se traduz em uma requalificação de espaço’’, disse ela.
Dentre os projetos estão a requalificação urbana em Paraisópolis – Jardim Colombo; os Parques SABESP, localizados nos bairros da Mooca, Cangaíba e Butantã, e a Praça Victor Civita, a Roda Gigante Rocco e a Requalificação Urbana – Boulevard SUA RUA.
Diferentes vozes, um só tom
Para Adriana, a escuta atenta à comunidade é o ponto de partida para a concretização bem-sucedida de uma requalificação urbana, permitindo uma compreensão abrangente das expectativas, desafios e aspirações dos residentes. É ela que informa o planejamento e estabelece a base para uma abordagem inclusiva e participativa em todas as etapas subsequentes.
Ou seja, a intervenção não deve ser imposta de cima para baixo, mas concebida a partir de uma colaboração estreita entre urbanistas, arquitetos e, mais importante ainda, os próprios residentes. ‘’Quando falamos de espaços públicos, não há um único ente representativo; embora a gestão seja incumbida a órgãos públicos, o espaço é, essencialmente, de domínio coletivo. Isso significa que é necessário ouvir e compreender as diferentes perspectivas e necessidades que coexistem, mesmo que algumas sejam contraditórias’’, ressalta ela.
Da fase inicial de escuta até a operacionalização e manutenção contínua, deve-se levar em consideração as limitações e oportunidades do contexto urbano, além das restrições orçamentárias, as tecnologias disponíveis, a vontade política e, crucialmente, as diversas vozes da população em suas representações mais amplas. Trata-se de um processo multifacetado que demanda uma interconexão de várias etapas.
Embora reconheça que nem todas as demandas levantadas por moradores e usuários poderão ser atendidas, a arquiteta ressalta que o objetivo é buscar o equilíbrio, dando prioridade às demandas da maioria. A concretização das transformações desejadas no tecido urbano só se torna possível quando há uma compreensão clara de como traduzir visões e ideias em compromissos e ações práticas.
O poder da cultura
A pluralidade de vozes contribui para uma análise mais abrangente, enriquecendo a visão sobre o espaço urbano. Com as experiências e perspectivas da comunidade local, é possível entender, especialmente, os aspectos culturais que moldam o ambiente.
Para a arquiteta, a cultura é um bem valioso para a requalificação urbana, já que os repertórios, as experiências e vivências de cada um moldam o sentimento de pertencimento. ‘’A cultura é uma das ferramentas mais poderosas para se qualificar espaços urbanos. O acesso às diversas manifestações culturais é que enriquecem a identidade de uma comunidade’’, destaca Adriana.
Para ela, o vasto repertório das experiências individuais e coletivas das pessoas é o que forma a identidade, que, por sua vez, se traduz na história e na memória intrínseca à cidade. “A cidade não é apenas um espaço físico; é a narrativa viva das pessoas que a habitaram, a construíram e a moldaram ao longo do tempo. Uma nação é, de fato, a história de suas cidades, um relato que vai além de datas e eventos, alcançando a essência das interações humanas, das histórias e das contribuições individuais que, de alguma forma, deixaram sua marca’’, pontua.
Valorizar essa memória coletiva não apenas preserva a autenticidade da cidade, mas também reconhece e celebra as diversas vozes que contribuíram para sua formação. No entanto, para ela, o Brasil é um país que lida muito mal com as suas memórias.
Por exemplo, o Bixiga, bairro histórico de São Paulo, que enfrenta contínuas disputas entre a sua representação e território. Em março de 2023, o Movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai apresentou à Câmara de Vereadores um projeto de educação patrimonial visando preservar a história do bairro, afetada pela construção da futura Estação 14 Bis da Linha 6 – Laranja do metrô. As obras resultaram na demolição da sede da escola de samba Vai-Vai, situada em uma área que, segundo o movimento, desempenhava um papel crucial no antigo quilombo da região – o Quilombo Saracura – uma área onde escravos negros se abrigavam após fugirem de seus captores no século 19, tanto que um sítio arqueológico com mais de 4 mil itens foi encontrado durante as obras.
‘’É um país com uma notável habilidade para criar o novo, muitas vezes às custas da destruição de seu passado, em vez de encontrar meios de coexistência. A dicotomia entre passado e futuro é visível ao longo de nossa história civilizatória, desde os estágios iniciais da colonização. O impulso de criar algo novo ao chegar em um território já ocupado, em vez de preservar sua natureza original, é um movimento que permeia nossa história’’, analisa Adriana.
De todos para todos
Ao ser indagada sobre estratégias para promover a preservação e requalificação urbana, bairros e demais espaços, Adriana Levisky destacou que o alcance desses objetivos está intrinsecamente ligado à colaboração efetiva de todas as camadas da sociedade.
‘’Promover a requalificação urbana demanda a adoção de modelos público-privados. É comum ouvirmos a perspectiva de que a responsabilidade recai sobre o indivíduo ao renovar seu prédio, enquanto se espera que a prefeitura resolva apenas questões como segurança e limpeza das ruas. Penso que estamos em um momento propício para considerar um modelo de ganha-ganha, onde as intervenções e requalificações, tanto em espaços privados quanto públicos, sejam regidas por contratos que estabeleçam responsabilidades compartilhadas entre o setor privado e o público’’, acrescenta.
Na visão de Adriana, é possível que uma entidade privada execute a requalificação de um espaço público, mas isso não implica que o poder público abandone sua gestão. Ao contrário, ele deve realizar auditorias e garantir a qualidade do trabalho realizado.
‘’O setor privado pode prestar contas ao público, proporcionando uma circulação mais fluída de recursos. Se um recurso privado pode ser utilizado para qualificar uma área pública, isso não apenas beneficia o proprietário privado ao aprimorar seu entorno, mas também contribui para a melhoria da cidade como um todo, representando uma ação de interesse público’’, explica.
No entanto, é fundamental que essa ação seja verdadeiramente voltada para o interesse coletivo. E é responsabilidade do poder público garantir isso por meio de contratos que estabeleçam uma percepção clara de responsabilidade. ‘’Vamos unir tanto os recursos financeiros quanto as responsabilidades na execução, na gestão e na auditoria. Isso é essencial para assegurar que o processo permaneça íntegro, evitando qualquer irregularidade. Se não houver uma estrutura de controle, incluindo multas, punições e um monitoramento rigoroso de ambos os lados, a eficácia do sistema fica comprometida’’, observa Adriana.
Ela ainda pontua que esses contratos devem considerar a sociedade de forma integrada, evitando a fragmentação de responsabilidades entre setores público e privado. Além disso, o âmbito civil, as pessoas que usufruem da cidade, também devem ser inseridas nessa equação. ‘‘É necessário alinhar as energias, flexibilizar e expandir as possibilidades de cuidado com a cidade, reconhecendo que, ao exercermos nosso papel como cidadãos, contribuímos para o bem público que pertence a todos’’, conclui.
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