Paisagismo é máquina de restauração cultural e ecológica, diz Ricardo Cardim

Em entrevista, o premiado Ricardo Cardim desvenda que o paisagismo sustentável tem mais a ver com a saúde da cidade do que as pessoas imaginam

Por Redação em 6 de fevereiro de 2023 5 minutos de leitura

ricardo cardim

O aumento dos espaços verdes nas cidades está ligado à melhora do bem-estar da população, à redução da temperatura em dias de calor, à maior captura de carbono e ao aumento dos índices de umidade relativa do ar. Por que, então, o paisagismo é colocado apenas em planos para “embelezar” o espaço urbano? Para Ricardo Cardim, essas e outras perguntas deveriam ser levantadas para levar o paisagismo sustentável ao lugar que ele deveria ocupar: o centro das conversas sobre sustentabilidade urbana.

Cardim é botânico e paisagista brasileiro, autor dos livros “Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios” e “Paisagismo Sustentável para o Brasil”. “Esqueça o paisagismo como aquilo que cria o jardinzinho do shopping. Ele é uma máquina de saúde, de restauração cultural e ecológica. Não se trata de beleza, é sobre impacto”, afirma.

Para o botânico, não basta que as cidades criem pequenos jardins “no espaço que sobrou”. É preciso pensar nos espaços, nas plantas nativas e em como as pessoas poderão aproveitar este ambiente verde. “Existem mais funções num jardim do que ele ser só um espaço bonito”, diz Cardim. E é aí que entra a concepção do paisagismo sustentável. 

Paisagismo sustentável x Paisagismo de laboratório

O paisagismo sustentável, segundo Cardim, é aquele que se baseia na ciência e no impacto que as áreas verdes têm nas pessoas. “A vegetação dentro das cidades pode trazer saúde física e psicológica para a população. Mas, não é a vegetação de qualquer jeito, porque usar plantas nativas pode ajudar a reequilibrar os ecossistemas. As áreas verdes podem reduzir o barulho, combater pragas urbanas de insetos nocivos, alimentar o lençol freático, por exemplo”, enumera Cardim.

E é um processo composto de perguntas. A primeira delas é: quais são as plantas que serão usadas no espaço verde? O spoiler da resposta é: as mais próximas daquele ecossistema. “Isso não acontece no Brasil. Hoje em dia, 90% da vegetação usada em paisagismo por aqui é de origem estrangeira. O Brasil é o país que tem a maior biodiversidade do mundo e, mesmo assim, as espécies usadas no paisagismo local são de fora. Somos como o bilionário que pede esmola para almoçar”, critica.

O paisagismo sustentável não é decoração. “O fato do paisagismo convencional ter sido levado como apenas um produto de mercado de decoração, como é a decoração de um sofá ou a cor da parede, fez com uma a indústria surgisse para atender esse mercado. Além disso, por ser uma indústria, o modelo seguido é o europeu”, fala Cardim.

Para atender ao gosto humano, plantas foram modificadas ao ponto de confundir as pessoas. “Normalmente, a população não sabe o que é nativo. As pessoas acham que o que é nativo são aquelas plantas de beira de estrada, que acham feias. Elas acham bonitas as crescidas em laboratório, o que gera uma desconexão profunda com a história das comunidades”, aponta o botânico.

Plantas com raiz na história

“O brasileiro tem um medo secular da sua vegetação nativa. Isso foi algo que começou quando os portugueses chegaram por aqui. Eles vieram de um país com biomas pobres com relação aos nossos. Quando entraram em contato com a Mata Atlântica, com aquela verdadeira catedral de vegetação imponente, com árvores de 50 metros de altura, aquilo provocou medo. A floresta era espaço das feras, dos inimigos, das doenças, dos ‘canibais’. Os monstros imaginários vinham da floresta, da natureza nativa. A cidade, de certa forma, foi criada por aqui como uma fortaleza contra a natureza. Foi uma ideia que persistiu por séculos”, conta Ricardo.

No século 20, a natureza era vista como “inimiga” da civilização e do progresso no Brasil. “Era preciso limpa-lá, como se fosse um lugar sujo. Limpar o mato, como se ele fosse ruim. O progresso era floresta derrubada para dar lugar à cidade”, aponta o paisagista. Cardim indica que, no século 21, esse pensamento não faz mais sentido e que não é possível haver uma separação entre cidade e floresta. 

Ricardo foi o botânico responsável pela iniciativa de clonar a Figueira das Lágrimas, uma figueira-brava com mais de duzentos anos e considerada um monumento vivo da cidade de São Paulo. Sua pesquisa e análise de árvores nativas reside em tentar encontrar a raiz brasileira perdida durante a busca pelo que se entendia por progresso, mas era apenas uma visão europeia de progresso. 

“São Paulo tem plantas emblemáticas, com ligação cultural com a cidade, que desapareceram. Plantas como Jatobá, o Cambuci, a Canela Preta. Mas podemos contar nos dedos onde elas estão na cidade hoje em dia. E o paisagismo urbano continua plantando as mesmas árvores estrangeiras de sempre”, fala Cardim.

Para ele, seria preciso ter mais paisagistas sustentáveis dentro das prefeituras para promover a mudança no corpo técnico. “É preciso ter pessoas que deixem de fazer jardinzinhos de pedra branca com florzinha europeia. É necessário pesquisar as plantas da região, entender o que ressoa com as pessoas”, diz.

Urbano como parte do todo

Cidade não é oposto de natureza, na visão de Cardim. Aliás, a cidade do futuro será o espaço que vai entrar em equilíbrio com as áreas verdes nativas. “Tem que parar com isso de pensar as cidades separadas da natureza. A natureza precisa estar na vida das pessoas. O meio ambiente está na cidade também. O discurso ambientalista que foca apenas em crédito carbono e desastres climáticos na Antártica afasta as pessoas do dia a dia. Sabe o que está no dia a dia das pessoas? As cidades”, comenta o botânico. 

“Falar de paisagismo sustentável nas cidades é falar do meio ambiente”, destaca Cardim. A vida artificial criada entre prédios, casas e asfalto não é compatível com a evolução do ser humano, explica o botânico. 

“O ser humano está na Terra há 300 mil anos. Desse tempo todo, viveu 299,9 mil anos na natureza e intensificou a vida nas cidades apenas nos últimos 100 anos. Isso teve um custo mental para a nossa espécie. Ficamos nervosos, angustiados nesse ambiente artificial para viver. É muito diferente daquilo que nossa espécie evoluiu para morar”, diz.

“Tomamos sol melhor na grama do que no concreto”, acrescenta Ricardo.

A saída, sob essa perspectiva, não é destruir as cidades e mandar todo mundo de volta para as cavernas, mas começar a acrescentar mais e mais elementos nativos e naturais no espaço que vivemos, para torná-lo melhor para os seres humanos. “O paisagismo é a chave para isso, porque conseguir unir a cidade com essa paisagem ancestral faz com que as pessoas tenham válvulas de escape ao artificial”. 

Veja também o episódio 23 do podcast Habitability:

Retomar o verde é recriar a conexão entre os humanos. E, para Cardim, será o caminho para evitar que o cenário vire “um grande Mad Max”.