Rua também é questão de saúde pública

A urbanista Viviane Tredler destaca o papel da rua compartilhada no equilíbrio das necessidades de pedestres e motoristas.

Por Nathalia Ribeiro em 27 de maio de 2024 10 minutos de leitura

ruas compartilhadas
Viviane Tredler (Foto: Divulgação)

E se os carros, bicicletas e pedestres dividissem o mesmo espaço nas ruas, transformando-as em locais de convívio e encontro? À primeira vista, a proposta parece utópica. Porém, o conceito de ruas compartilhadas, originado na Europa há 50 anos, está aos poucos se difundindo pelo Brasil, embora ainda existam desafios no Código de Trânsito brasileiro para a implementação do modelo, como conta a arquiteta e urbanista Viviane Tredler, sócia da L.T Urbanismo – uma das profissionais engajadas na concepção e execução de projetos de ruas compartilhadas no País.

Pós-graduada em Planejamento e Gestão de Cidades pela Poli-USP e em Desenvolvimento Imobiliário pela FAU-USP/FUPAM, Viviane tem 25 anos dedicados ao desenvolvimento de projetos de urbanismo e tem como propósito contribuir para o desenvolvimento de cidades que promovam qualidade de vida através da aplicação de melhores práticas de urbanismo. Para ela, as ruas são um elemento-chave nesse processo, visto seu papel central na interação e na construção do ambiente urbano. 

“Cerca de um terço do espaço urbano é ocupado por ruas. Elas são as artérias do ambiente urbano, são os elementos estruturantes onde a vida acontece. Quando pensamos em lugares agradáveis que visitamos e nos quais nos sentimos bem, em geral, as ruas vêm à mente. É nelas que caminhamos, que interagimos e que experimentamos a atmosfera única de um lugar. As ruas são responsáveis por criar essa sensação especial no ambiente urbano”, explica. 

Em entrevista exclusiva ao Habitability, a arquiteta explora o potencial de transformação das ruas compartilhadas no contexto do espaço viário, trazendo os diferentes elementos que compõem o modelo e os desafios a serem superados para sua implementação no Brasil.

Como as ruas influenciam na experiência de pedestres e na qualidade de vida urbana?

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Viviane Tredler: há ruas pelas quais temos prazer em passar, enquanto outras preferimos evitar. Essas observações nos levam a questionar a estrutura do sistema viário como um todo. É importante reconhecer que elas seguem uma hierarquia viária. Na cidade, encontramos diversos tipos de ruas, cada uma com sua tipologia, e não necessariamente uma é melhor ou pior que a outra. Elas devem ser projetadas de acordo com o uso para o qual são destinadas. A classificação das ruas, determinada por leis municipais, divide-se em categorias como expressas, locais e coletoras. As expressas priorizam o tráfego de veículos, conectando áreas com velocidades mais altas. As vias coletoras têm a função de redistribuir o trânsito pela cidade. Geralmente, elas ligam as vias arteriais e rápidas às locais. 

Já as ruas locais destinam-se a proporcionar acesso direto às residências, com velocidades mais baixas e ênfase na segurança dos pedestres. As ruas locais elas devem ter idealmente pistas de rolamento mais estreitas e áreas de passeio deveriam ser mais largas, incentivando que as pessoas circulem a pé com mais conforto. No entanto, essa circulação pedestre nem sempre é garantida. Em algumas áreas, como São Paulo, a infraestrutura nem sempre acompanha o aumento do fluxo de pessoas devido à mudança de residências unifamiliares para apartamentos, resultando em congestionamentos e desafios de mobilidade. Então, a rua reflete diretamente a nossa qualidade de vida. 

Como as políticas urbanísticas que priorizam o uso do carro como meio de transporte impactam a configuração e a dinâmica das cidades?

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Viviane Tredler: desde o início da revolução industrial, o processo de urbanização tem sido fortemente voltado para o uso do carro. Principalmente no século XX, essa tendência foi evidente, especialmente durante o movimento modernista, que enfatizava a máquina e a indústria automobilística. Isso se refletiu diretamente nos projetos urbanos, que foram frequentemente setorizados, como é o caso de Brasília, um exemplo emblemático, e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde diferentes setores residenciais, comerciais, hoteleiros, industriais e de serviços foram separados. O carro, então, se tornou o centro das atenções, desempenhando um papel crucial na conexão desses diferentes setores. Uma dependência com diversas consequências.

Poderia elencar uma dessas consequências?

Viviane Tredler: a obesidade infantil está diretamente relacionada ao sedentarismo, especialmente à dependência excessiva do carro para todas as atividades. Embora outros fatores também contribuam para essa situação, o uso predominante do carro resulta em uma negligência das ruas em relação aos pedestres. Na verdade, historicamente, as ruas sempre foram locais de interação e troca social, como evidenciado na cidade medieval e nos séculos XIX e XX. Elas eram espaços de encontro e conectividade, aspectos fundamentais para o bem-estar da sociedade. Esta importância ficou ainda mais clara durante a pandemia, quando o contato social foi drasticamente reduzido. Portanto, quando discutimos sobre a qualidade das ruas, estamos abordando questões de saúde pública também.

Qual seria a abordagem mais eficaz para garantir a segurança e o conforto dos usuários nas áreas públicas das cidades, especialmente para grupos vulneráveis, como crianças e idosos?

Boulevard Pedestres, projeto em Uberaba (Foto: Divulgação/L.T Urbanismo)

Viviane Tredler: as áreas públicas das cidades devem ser altamente qualificadas, pois são nelas que ocorrem as trocas e interações essenciais para a dinâmica econômica de um local. A qualidade desses espaços está diretamente ligada à sustentabilidade urbana. Ao trabalhar em projetos urbanísticos, priorizo uma diretriz essencial: incentivar a mobilidade ativa, como a circulação a pé e de bicicleta. No entanto, para que isso seja efetivo, é importante garantir que esses meios de locomoção sejam confortáveis e seguros. Por exemplo, em relação à segurança, colocar velocidade máxima de 40 km por hora em uma avenida muito larga não é suficiente, pois isso pode resultar em desconforto para todos os usuários e ninguém vai respeitar. 

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É necessário mais do que aplicar radares e multas para incentivar a segurança no trânsito. A educação para o trânsito desempenha um papel fundamental nesse aspecto. Se desejamos que as ruas sejam espaços confortáveis e seguros para todos, especialmente para os grupos mais vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida, é fundamental que o desenho urbano leve isso em consideração. Isso significa trabalhar com quadras mais curtas e garantir maior permeabilidade nas esquinas da malha viária. É importante investir em arborização e em passeios mais largos para promover um ambiente urbano mais acolhedor e seguro.

Como podemos promover a segurança e o conforto nas ruas de cidades de uma maneira prática?

Projeto de uma rua comercial em Uberaba (Foto: Divulgação/L.T Urbanismo)

Viviane Tredler: quando falamos sobre segurança, consideramos dois aspectos interligados: a segurança na circulação e a segurança compartilhada, especialmente abordada no contexto das ruas compartilhadas. A segurança na circulação envolve sinalizações vertical e horizontal eficientes, além de calçadas confortáveis e niveladas, minimizando o risco de quedas e tropeços, com calçadas livres de buracos e de largura suficiente para permitir a passagem de pessoas com mobilidade reduzida.

Além disso, é importante que haja arborização para proporcionar conforto ambiental, faixas de pedestres elevadas para priorizar a segurança dos pedestres e faixas de travessia no mesmo nível da calçada, onde os carros devem ceder passagem aos pedestres. A partir disso, surge o conceito de ruas completas. Uma rua completa é aquela que busca oferecer conforto para todos os seus usuários, sejam eles pedestres, ciclistas ou motoristas. Para ser verdadeiramente democrática e acolhedora para todos, ela precisa ser projetada com foco especial na mobilidade ativa, priorizando pedestres e ciclistas, ao mesmo tempo em que acomoda o tráfego veicular.

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E quais são as características das ruas compartilhadas?

Projeto de uma rua compartilhada em Sinop, Mato Grosso (Foto: Divulgação/L.T Urbanismo)

Viviane Tredler: a rua compartilhada deve ser boa para todos os seus usuários, mas não há um padrão único ou critério fixo a ser seguido. É necessário um olhar específico para o contexto e a função de cada rua. No caso das ruas compartilhadas, os carros e pedestres circulam no mesmo nível de pista de rolamento e calçada, mas essas ruas são projetadas para desencorajar altas velocidades. Ao observarmos os centros urbanos antigos, tanto no Brasil quanto em outros lugares, percebemos que as ruas eram naturalmente compartilhadas, proporcionando um ambiente mais seguro e acolhedor para todos.

As ruas compartilhadas remontam a uma época em que charretes e pessoas dividiam o mesmo espaço, com uma drenagem centralizada e todos circulando juntos, onde os carros eram uma adição posterior. Nos projetos urbanos atuais, a ideia da rua compartilhada é que ela seja um ambiente onde os carros possam circular, mas com restrição à alta velocidade. Ela se assemelha à rua de um bairro, onde as crianças podem brincar e se divertir sem preocupações. 

De que forma o mobiliário urbano contribui para criar ruas compartilhadas que promovam a convivência harmoniosa entre pedestres, ciclistas e motoristas?

Viviane Tredler: a proposta da rua compartilhada é utilizar o mesmo tipo de pavimento em toda a extensão da rua, tornando desconfortável para os motoristas acelerarem, pois o pavimento é uniforme, sem uma clara separação entre a pista de rolamento e a calçada. A separação é estabelecida através da iluminação e do mobiliário urbano, apenas. Isso é importante quando discutimos a qualidade das ruas, destacando a importância do mobiliário urbano. 

Geralmente, os postes de iluminação estão direcionados para a rua, voltados para o tráfego de veículos, em vez de iluminar a calçada. Quando falamos sobre segurança, estamos considerando tanto a segurança na circulação quanto a integridade física das pessoas. Para garantir a segurança na rua compartilhada é essencial ter separações físicas claras entre a pista de veículos e a calçada. Isso pode ser feito através de balizadores ou até mesmo usando cores diferentes para delimitar os espaços. Além disso, é comum utilizar uma pista estreita, seja de mão única ou dupla, para incentivar os motoristas a reduzir a velocidade. A iluminação também deve ser direcionada para a calçada, proporcionando um ambiente seguro e acolhedor, juntamente com a arborização.

Então, podemos dizer que as ruas compartilhadas priorizam os pedestres?

Viviane Tredler: de certa forma, sim. A rua deve criar um ambiente onde as pessoas se sintam acolhidas e confortáveis. Isso envolve até a relação entre a largura da rua e a altura dos edifícios ao seu redor. Ruas mais largas tendem a combinar melhor com prédios mais altos, enquanto ruas estreitas geralmente se harmonizam com edificações mais baixas. Quando uma rua é muito larga para casas de tamanho modesto, pode-se criar uma sensação de amplitude excessiva, o que pode ser um tanto opressivo para os pedestres. Portanto, há muitos detalhes a serem considerados ao projetar uma rua, incluindo a questão da escala humana. Isso também se aplica às ruas compartilhadas, cujo foco principal é priorizar o pedestre, colocando-o em destaque. 

Ao pensarmos nesse ambiente, o foco está nas pessoas e em promover a circulação e interação social. A rua é concebida como um espaço cívico, um local para permanência e convívio. Imagine ter mesas na calçada, com guarda-sóis, onde as pessoas possam relaxar e tomar um café. Esses espaços representam a transição entre o público e o privado. Por exemplo, se há degraus na fachada de um prédio, é comum as pessoas se sentarem ali. Portanto, é importante considerar essa transição de forma amigável, incentivando as pessoas a permanecerem na rua. 

É possível transformar uma rua já estabelecida no modelo tradicional em uma rua compartilhada? 

Antes e depois do projeto de requalificação da Times Square (Foto: Michael Grimm/NYC DOT/Snøhetta)

Viviane Tredler: existe um conceito chamado urbanismo tático. Ele refere-se a intervenções pontuais de baixo custo e alto impacto positivo. Essa abordagem é uma tendência mundial, especialmente em áreas urbanas já consolidadas. Quando identificamos um ambiente que necessita de melhorias para proporcionar mais conforto e segurança, podemos aplicar ações de urbanismo tático. Um exemplo marcante é a transformação da Times Square, em Nova Iorque, em uma área exclusiva para pedestres. Nessa intervenção ousada, a rua foi fechada para o tráfego de veículos, permitindo apenas a circulação de pedestres.

Como você tem incorporado o conceito de ruas compartilhadas em seus projetos?

Viviane Tredler: Digamos que a proposta de trabalhar com ruas compartilhadas, especialmente em áreas comerciais e quadras mais compactas, é algo que tenho utilizado em alguns projetos. Se analisarmos a legislação urbanística vigente, os parâmetros para ocupação do solo ainda estão predominantemente voltados para o uso do carro. Normalmente, há exigências de ruas largas, calçadas estreitas e grandes recuos em relação às edificações, o que vai contra a ideia de criar uma rua acolhedora para as pessoas. 

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Avenida Paulista

Por exemplo, a própria Avenida Paulista, se observarmos, o comércio colado diretamente no passeio, na calçada, promove uma interação muito maior entre as pessoas do que uma edificação afastada. Os edifícios que se encontram distantes da calçada e possuem grades na frente vão totalmente contra o conceito de vitalidade que buscamos criar. As ruas mais agradáveis e interessantes muitas vezes apresentam prédios e lojas coladas ao passeio. No entanto, há muitos anos a legislação urbanística tem sido orientada por critérios e parâmetros que não levam em consideração esse conforto do pedestre, priorizando, em vez disso, as necessidades dos veículos.

Quais são os principais desafios enfrentados ao projetar ruas compartilhadas?

Viviane Tredler: enfrentamos desafios significativos para viabilizar isso nos nossos novos projetos, especialmente devido à falta de uma relação amigável entre os lotes e a rua. Atualmente, a legislação urbana ainda carece de ajustes. Um recurso que temos utilizado na L.T Urbanismo em casos onde a legislação é extremamente restritiva é trabalhar com uma rua qualificada dentro do ambiente privado. Essa rua está dentro de um lote, não sendo uma via pública, pois por lei existe um percentual mínimo de doação de vias para a prefeitura. No entanto, normalmente trabalhamos com uma área privada aberta ao público. Isso nos dá total liberdade de design, podendo determinar a largura da calçada e da pista de rolamento conforme desejarmos, permitindo que trabalhemos com a qualidade que a legislação pública muitas vezes não permite.

Mas há alguma evolução do diálogo entre os setores público e privado no contexto do planejamento urbano? Você acredita que essa abordagem colaborativa pode fazer a diferença?

Viviane Tredler: hoje existe um diálogo muito mais rico e positivo entre os setores público e privado, entre os empreendedores e os órgãos técnicos das prefeituras. Quando uma proposta é apresentada claramente com o objetivo de qualificar um espaço urbano ou uma região, isso é muito bem recebido e aceito. Acredito firmemente que esse diálogo deve ocorrer o mais cedo possível, pois é uma construção conjunta. Devemos superar o histórico negativo do passado, da ideia de que o empreendedor está apenas interessado em lucro. Claro, há uma necessidade de os projetos gerarem lucro, e não há nada de errado nisso, mas é totalmente viável obter retorno financeiro ao mesmo tempo em que se deixa um legado benéfico para a cidade, com impacto social positivo e sustentável.