Calor ganha sua própria secretaria nas cidades

Com temperaturas chegando à 50º, metade do ponto de ebulição, e bilhões de pessoas morrendo, literalmente, de calor, sete cidades do mundo criam uma secretaria específica para o tema.

Por Redação em 26 de novembro de 2024 7 minutos de leitura

secretaria de calor
Foto: Rehman Asad/ Shutterstock

O que têm em comum as cidades de Atenas (Grécia), Daca (Bangladesh), Freetown (Serra Leoa), Melbourne (Austrália), Miami (Estados Unidos), Monterrey (México) e Santiago (Chile)? Elas estão localizadas em regiões bastante distintas do planeta e se diferem também quanto à economia, à história, ao clima, à cultura, mas um aspecto une esses locais: seus governos municipais contam com uma Secretaria do Calor, órgão responsável por medidas para enfrentar o calor extremo, acelerar esforços de proteger a população das altas temperaturas e iniciar trabalhos para reduzir os riscos e impactos do calor extremo para a cidade e seus habitantes. 

Atualmente, apenas sete cidades do mundo têm Secretarias de Calor, e todas são chefiadas por mulheres. A figura do secretário do calor, ou CHO (chief heat officer, em inglês), foi criada em 2021 pelo Climate Resilience Center, que atua em conjunto com os CHOs para identificar, desenvolver e implementar estratégias e prioridades no enfrentamento aos efeitos das ondas de calor nas cidades e ajudar a reduzir os prejuízos desse fenômeno sobre setores como saúde, energia, água e construção, que impactam a vida das populações, principalmente as mais vulneráveis. Secretários de Calor são nomeados por autoridades do município, mas, diferentemente dos convencionais, não são financiados por dinheiro público, mas sim por iniciativas internacionais do terceiro setor, que apoiam com recursos e conhecimento para implementação de políticas públicas. 

Perigos

secretaria de calor

Segundo o Ministério da Saúde do Brasil, ondas de calor são eventos climáticos caracterizados por temperaturas extremamente altas, que superam os níveis esperados para determinada região e época do ano. Esses períodos podem durar dias ou semanas e são exacerbados pelo aquecimento global, que aumenta tanto a frequência quanto a intensidade do calor em várias partes do mundo. Ondas de calor são particularmente perigosas em áreas urbanas devido ao efeito de ilha de calor, em que a concentração de edifícios, concreto e asfalto retém mais calor, elevando ainda mais os termômetros. Na prática, o aumento das temperaturas pode deteriorar edifícios e ruas asfaltadas e sobrecarregar o sistema de saúde porque provocam danos como desidratação. O calor afeta, principalmente, as pessoas mais vulneráveis, como crianças e idosos. A população de rua também sofre mais porque não tem acesso a abrigos com conforto térmico.    

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Outro ponto preocupante é que quanto maior a onda de calor, maior é o consumo de energia para refrigeração de ambientes e de alimentos, o que prejudica todo o sistema, já que mais demanda por energia resulta em aumento de tarifas. Também pode crescer a demanda por construção de novas termelétricas e hidrelétricas, o que gera impactos ambientais negativos. Já no setor hídrico, quanto maiores as temperaturas, maior também é o consumo de água nas residências, o que sobrecarrega os reservatórios que abastecem as cidades. 

As mudanças climáticas fazem com que as ondas de calor se tornem mais frequentes e mais longas do que há 40 anos, segundo estudo publicado na Science Advances publicado neste ano. Desde 1979, as ondas de calor se tornaram 20% mais longas, expondo populações por mais tempo a temperaturas extremas, e ficaram 67% mais frequentes. O documento aponta que, entre 1979 e 1983, ondas de calor duravam em média oito dias. Já entre 2016 e 2020, a duração média desse fenômeno passou a ser de 12 dias.

Em mensagem assinada publicada em julho deste ano o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alerta para a gravidade da situação. “A Terra está ficando mais quente e mais perigosa para todas as pessoas, em todos os lugares. Bilhões de pessoas estão enfrentando uma epidemia de calor extremo – murchando sob ondas de calor cada vez mais mortais, com temperaturas superiores a 50 graus Celsius em todo o mundo.  Isso equivale a 122 graus Fahrenheit.  E a metade do caminho para a ebulição.”

Os pilares da secretaria do calor

Entre as medidas das Secretarias de Calor estão o aumento da conscientização sobre os riscos das ondas de calor, a identificação de comunidades e bairros mais vulneráveis ao aumento das temperaturas e a coordenação de projetos de redução de risco de calor no longo prazo. A ideia é unir os pontos entre os governos municipais e o setor privado. As Secretarias de Calor realizam o plantio de árvores, a substituição de telhados e pavimentos frescos. Também alertam e informam a população sobre como se preparar para as ondas de calor.

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Em Freetown, Serra Leoa, entre as medidas adotadas pela Secretaria de Calor estão a construção de coberturas em mercados ao ar livre para proteger vendedores expostos ao sol e instalação de telhados brancos, que refletem o calor em vez de absorvê-lo), nos prédios da cidade, além da substituição de lixões ilegais por espaços verdes. 

Em Miami, a Secretaria de Calor treina voluntários em comunidades mais expostas para que acompanhem seus vizinhos e os instruam sobre o que fazer durante períodos de elevação de temperaturas. A pasta também firmou parcerias com associações médicas para capacitar profissionais de saúde a identificar sinais de exposição crônica ao calor extremo e colocou à disposição centros de resfriamento em bibliotecas e parques, incentivando pessoas sem acesso a locais refrigerados a usá-los durante os alertas de calor.

Eleni Myrivili, que foi secretária de calor de Atenas, Grécia, explicou, em entrevista para a revista Ethical Corporation reproduzida pela agência Reuters, que as cidades precisam se organizar a partir de três pilares: conscientização, preparação e redesenho. “Primeiro, precisamos aumentar a conscientização. Como podemos garantir que nossos tomadores de decisão e formuladores de políticas entendam a seriedade da situação e tomem as medidas certas, e defendam isso, porque muitas pessoas ainda não percebem que é um perigo incrível”. Por meio da Secretaria de Calor, Atenas desenvolveu um sistema de categorização de saúde térmica a partir de dados sobre calor, umidade e poluição do ar para prever o nível de perigo de uma onda de calor, a depender da região da cidade. Na capital grega, um aplicativo fornece informações sobre risco personalizadas, juntamente com conselhos sobre como se proteger. 

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Capacidade transversal 

Embora o Brasil não tenha secretários do calor, municípios contam com outros órgãos para elaborar políticas públicas em resposta aos problemas causados pelo aumento das temperaturas. No estado do Rio de Janeiro, Niterói conta com uma Secretaria do Clima e, a capital, com a Secretaria de Meio Ambiente e Clima. Já no estado de São Paulo, Cotia tem a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e, a capital paulista, a Secretaria de Mudanças Climáticas. As cidades de Barreiras, na Bahia, e de Aparecida de Goiânia, em Goiás, contam com Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade. 

“A figura do secretário do calor está muito em sintonia com a autoridade climática que o governo brasileiro vem discutindo. As mudanças climáticas já estão postas e agora a humanidade vem se concentrando em duas linhas de atuação: mitigação e adaptação”, analisa Jay Mil Homens Neto, mestre em Gestão de Competitividade com foco em sustentabilidade pela Escola de Administração de Empresas da FGV/SP e bacharel em Ciências Econômicas pela PUC-SP. Com mais de 10 anos de experiência na área de Sustentabilidade de empresas, ele chama atenção para a necessidade de o Brasil “atuar para frear o contínuo aquecimento global sobre o qual os cientistas tanto alertaram, e que agora já vivenciamos com cada vez mais frequência. Já sentimos os impactos da mudança climática – e aqui me refiro à concentração dos períodos chuvosos, temporais e alagamentos, além de longas secas e incêndios em escalas nunca antes vistas”. Neto lembra que, até setembro de 2024, o Brasil acumulou sete ondas de calor no ano. 

Para o economista, a Secretaria do Calor tem capacidade transversal no município, está apta a unir, direcionar e acompanhar esforços nas diversas esferas de governo (executivas, legislativas e judiciária) e a estabelecer relação com esferas de governo (estadual e federal). “Como exemplo podemos imaginar que, se há discussão do plano diretor, de investimentos em infraestrutura, de incentivo a indústrias e empregos na cidade, o secretário do calor seria o responsável por garantir que independentemente da decisão a ser tomada, os fatores de impactos das mudanças climáticas foram contemplados. Tanto pela ótica de impactos adicionais que podem trazer para o município (impermeabilização do solo, redução de áreas verdes, emissão de carbono ou partículas no ar), quanto na forma como a cidade está se preparando para futuros impactos (investimentos em saúde, combate a incêndios, brigadistas, abastecimento de água etc).” 

Neto cita exemplos recentes como as queimadas no Pantanal, em que um grupo de trabalho entre os governos estaduais e federal (via Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima) se organizaram para ações de combate. Outro momento lembrado pelo especialista é a tragédia no Rio Grande do Sul, em que parcela enorme do estado foi devastada pelo nível pluviométrico em um período curto de tempo. “Quem acompanhará a discussão sobre a reconstrução do estado, quais práticas serão fomentadas nos diversos setores da economia: agropecuária, construção civil, infraestrutura, habitação, mobilidade e etc. Quais quesitos estão sendo contemplados para que não se gaste recursos sem considerar as mudanças climáticas. O secretário do calor seria o responsável por esse acompanhamento”, pontua Neto. 

“Veja como já temos observado as mudanças climáticas em nosso cotidiano. Veja como influencia a rotina das cidades e como essa discussão já está aparecendo em âmbito federal, com a autoridade climática, que agora retoma esforços com  tamanha parcela do território nacional sofrendo com as queimadas, que afetam não apenas questões de desmatamento (perda de vegetação nativa), mas também começa a gerar acúmulo de fumaça em diversas cidades, o que que acarreta uma qualidade do ar em níveis tão ruins e nunca observados, que geram danos à população e começam a sobrecarregar o sistema de saúde das cidades. E isso mostra a necessidade de trazer essa discussão para o âmbito municipal”, diz o especialista. 

“Os municípios precisam considerar se pretendem incentivar uma indústria que consumirá recursos hídricos que tendem a se tornar escassos com o cenário de mudanças climáticas que impactam o regime de chuvas. Precisam fomentar áreas verdes nos centros urbanos para diminuir as temperaturas. Fazer expansões do território urbano, reformas e investimentos em infraestrutura que contemplem a frequência de temporais e secas que já são projetadas. Há cidades repensando o uso de seu território por meio da proibição do uso de carros individuais ou utilitários e da preferência para transportes coletivos e bicicletas”, comenta Neto. Ele complementa que estão surgindo conceitos de cidades-esponjas, que possibilitam melhor absorção de água da chuva, e fomento à produção de alimentos em áreas antes ociosas.  

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Neto lembra que o governo federal tem uma plataforma pela qual é possível visualizar, por município, projeções dos diversos impactos decorrentes das mudanças climáticas. Além de mostrar estimativas de vulnerabilidade em recursos hídricos, a plataforma apresenta projeções quanto à segurança alimentar e energética; infraestrutura portuária, ferroviária e rodoviária; saúde; e desastres hidrológicos. “As informações estão disponíveis. O desafio agora é trazer os dados e influenciar as ações que estão sendo tomadas nos municípios e que podem influenciar diretamente na viabilidade e manutenção dos municípios ao longo do tempo. Secretaria do Calor deverá ser cada vez mais comum daqui para a frente. Não vejo um município precisando mais que outro”, ressalta Neto.