Serviço ecossistêmico do reino Fungi e tecnologia criam biomaterial

Em entrevista ao Habitability, CEO da paranaense Mush Ubiratan Sá explica a fabricação do biomaterial criado a partir dos micélios e resíduos agroindustriais.

Por Nathalia Ribeiro em 2 de abril de 2024 7 minutos de leitura

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Ubiratan Sá (Foto: Divulgação/Mush)

Utilizando um processo biotecnológico inovador e sustentável, a startup paranaense Mush conseguiu transformar micélio de cogumelos em um biomaterial que pode ser utilizado para uma ampla gama de aplicações, da construção civil à indústria de embalagem. Batizado de mushpack, o material criado com a parte vegetativa dos fungos é neutro em carbono, maleável para diferentes formas, completamente biodegradável e que ainda aproveita resíduos da agroindústria, colaborando para circularidade do planeta.  

Levar o fruto de um amplo trabalho de pesquisa científica, desenvolvimento e inovação à escala comercial e industrial é o desafio que o engenheiro química, pós-graduado em Administração Industrial e mestre em Administração de Empresas Ubiratan Sá tem pela frente. Como ele mesmo afirma: “O que estou trazendo para o time é a capacidade de transformar essa ideia em um negócio sólido”. Com mais de três décadas de experiência em companhias multinacionais e experiência em mercados internacionais, como Estados Unidos, Cingapura, Argentina e Canadá, ele assumiu o cargo de CEO da Mush em 2023.

Desde então, “estabelecemos parcerias com escritórios de design especializados, que têm uma reputação de desenvolver projetos inovadores e reconhecidos com prêmios. Há duas semanas fomos honrados com o prestigioso prêmio EF Design International, considerado o ‘Oscar’ do design”, contou o empresário.

Em entrevista ao Habitability, Ubiratan Sá compartilha um pouco dessa trajetória, da produção aos desafios para que a inovação prove todo seu potencial e ganhe escala, contribuindo para equilibrar a relação entre desenvolvimento e sustentabilidade.

Biomaterial, um ocaso científico ou serviço ecossistêmico

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Foto: Laerte-Soares/ Divulgação

Durante uma série de pesquisas lideradas pelo professor Eduardo Bittencourt Sydney, especialista em bioprocessos, e pelo estudante de iniciação científica Leandro Oshiro, do curso de engenharia química, que estavam dedicados a explorar o potencial dos cogumelos comestíveis, uma revelação veio à tona: o crescimento de um fungo a partir de certos resíduos agroindustriais.

A investigação que se seguiu revelou que esses fungos estavam gerando um bloco rígido, dotado de propriedades que transcendiam o âmbito da produção de alimentos. Esse momento serviu como ponto de partida para uma pesquisa pioneira no País, lançando as bases para a jornada da Mush na busca por soluções sustentáveis e inovadoras, em 2019, que culminou na criação do biomaterial Mushpack.

O processo começa com a seleção de subprodutos da agroindústria, como serragem, casca de arroz e farelo de trigo, que servirão como ingredientes primários do substrato. Esses materiais são processados e preparados para criar uma base homogênea e estável. Em seguida, o micélio, parte dos filamentos que formam a raiz dos cogumelos, é adicionado.

“Sob condições controladas de temperatura e umidade, o micélio se desenvolve e se espalha pelo substrato, absorvendo gás carbônico da atmosfera, consolidando as partículas e formando uma estrutura resistente. Após um período de três a cinco dias, procedemos com a remoção desse material para colocá-lo em moldes com o formato desejado”, explica Sá.

Da natureza para a natureza

Além de dar uma destinação de valor a resíduos da agroindústria, o processo de fabricação de um quilo de mushpack requer 10 litros de água para ser produzido, volume significativamente baixo quando comparado ao processo de fabricação do plástico, que, segundo Sá, consome 180 litros por quilo. Isso significa que o mushpack utiliza apenas cerca de 5,6% do volume de água necessário para a produção de plástico equivalente.

Quanto às emissões de dióxido de carbono, a fabricação do mushpack é capaz de absorver até um quilo de CO₂ para cada quilo de biomaterial produzido, contribuindo positivamente para a redução dos impactos das mudanças climáticas.  O executivo ainda ressalta o fato de o material ser completamente biodegradável e não requerer compostagem em nenhum ambiente, seja na terra, na areia ou na água. “Após o uso, pode-se decompor o material em migalhas simplesmente com as mãos e então dispensá-lo em qualquer lugar, onde será naturalmente reabsorvido pela natureza. É por isso que enfatizamos seu ciclo infinito: originado da natureza e retornando a ela, sem gerar resíduos sólidos”, diz ele. Para confirmar a informação, os pesquisadores da empresa conduziram um teste de compostagem em condições domésticas. Os resultados revelaram que o biomaterial se decompõe facilmente em ambiente caseiro em apenas 28 dias.

Multi mush

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Durante o Fuorisalone, em Milão, uma escultura feita com micélio pela Mush e assinada pela Furf Design Studio foi exibida no espaço Designtech (Foto: Divulgação)

A versatilidade e robustez do Mush têm impulsionado sua presença em diversos mercados, incluindo arquitetura, design, construção civil e embalagens. No setor da construção, ele pode ser utilizado em uma variedade de aplicações, desde revestimentos, mobiliário solto até objetos de decoração. Algumas das peças desenvolvidas já foram exibidas durante a Design Week em Milão, São Paulo e em diversas outras feiras do setor.

Atualmente, com uma capacidade de produção de até duas toneladas por mês, a Mush está atendendo não apenas o mercado da construção, mas também explorando oportunidades em setores de design especializados, como na fabricação de luminárias. 

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O material proveniente do micélio é biodegradável, neutro em carbono e integra-se à economia circular. Na imagem, a luminária “Íris”, fruto da colaboração entre Mush e Furf Design Studio (Foto: Divulgação)

Uma das vantagens desse biomaterial é justamente a maleabilidade para assumir qualquer forma. Esta característica permite que o mushpack seja facilmente adaptado para atender a uma variedade de necessidades. “Já desenvolvemos placas de forro para tetos, por exemplo, que são ideais para escritórios que necessitam de soluções acústicas aprimoradas. Aliás, o mushpack apresenta algumas vantagens em comparação com as placas convencionais”, pontua Sá. Ele destaca que, além de proporcionar isolamento térmico, absorção acústica e baixa densidade, o material também exibe alta resistência mecânica e resistência à chama.

Após análises envolvendo testes químicos e físicos, os pesquisadores constataram que, dependendo da matéria-prima utilizada, o produto demonstra grande resistência ao fogo, apresentando uma significativa demora para iniciar a combustão. 

No segmento de embalagens, Sá aponta que o objetivo é oferecer alternativas sustentáveis para substituir materiais descartáveis e não biodegradáveis. Sua proposta vai além da mera armazenagem temporária de produtos, buscando soluções que possam ser reaproveitadas ou recicladas de forma eficiente. Além disso, o biomaterial apresenta a vantagem de poder ser utilizado como adubo para o solo após o uso, contribuindo para o ciclo natural e sem causar danos ao meio ambiente.

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“Já estamos colaborando com diversas indústrias para realizar essa transição, substituindo o poliestireno expandido, conhecido como isopor, pelo mushpack. Isso significa que pequenas peças atualmente fabricadas em isopor podem ser reproduzidas com nosso material. Tenho aqui um exemplo para te mostrar, é realmente uma novidade”, disse o CEO dirigindo-se ao seu armário. Sá voltou com uma nova embalagem em mãos, desta vez em forma de garrafa.

“Moro aqui no Rio Grande do Sul e recentemente desenvolvemos uma embalagem para vinhos. Se você deseja presentear alguém de forma ecológica e com uma mensagem especial, essa embalagem é perfeita. Basta inserir o vinho, fechar com um laço bonito – e pronto! E, novamente, é 100% biodegradável. Você pode simplesmente colocá-la em um canteiro, vaso de planta ou na grama, e ela será absorvida”, relembrou Ubiratan.

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Do pó viemos ao pó voltaremos

Passando por todas as aplicações do mushpack, Ubiratan compartilhou a sua surpresa quando funerárias procuraram a empresa para o desenvolvimento de urnas sustentáveis para acomodar cinzas. “Eles mencionaram que os cemitérios têm um grande impacto ambiental no lençol freático e as pessoas estão mudando sua percepção em relação à cremação. Muitas vezes, elas desejam uma urna para as cinzas e querem espalhá-las em um rio ou no mar. No entanto, ao tentarem dispersar as cinzas, o vento as devolve, às vezes em cima da pessoa. Foi, então, que surgiu a ideia de criar urnas que fossem naturalmente absorvidas pela natureza”, explicou.

“Desenvolvemos algumas urnas, incluindo a que ganhou o prêmio IF Design na Alemanha, chamada “Navegar”, que tem o formato de um barco. Como o material é completamente biodegradável, colocamos a urna no mar e a deixamos no curso d’água, onde, com o tempo, será naturalmente absorvida. Isso garante que as cinzas sejam dispersas ali mesmo, sem o risco de serem levadas pelo vento para outros lugares”, comentou Sá. A Mush já está atendendo três parceiros com tal demanda. 

Desafios e futuro do biomaterial

Ubiratan Sá ressalta que embora o mushpack tenha uma vasta gama de aplicações, não é uma solução universal. “Ele não pode substituir todos os polímeros existentes. No entanto, em relação ao isopor, que é feito de poliestireno expandido, podemos substituí-lo com facilidade em algumas aplicações. O mesmo ocorre com produtos de madeira e espuma de poliuretano. Esses materiais, derivados de combustíveis fósseis, podem ser integralmente substituídos por nossa solução. Embora não possamos substituir todos os materiais, podemos ajudar a reduzir seu impacto no meio ambiente, o que já é uma grande contribuição”, disse.

Quando questionado sobre a expansão do produto no mercado e em quanto tempo isso poderia ocorrer, Ubiratan respondeu que há previsões de uma adoção mais ampla até 2030. No entanto, destacou que para isso acontecer, algumas condições precisam ser atendidas. “O primeiro ponto é estabelecer parcerias estratégicas. Acredito que estamos progredindo bem nesse aspecto. Em seguida, é fundamental focar no desenvolvimento da produção em escala para reduzir os custos unitários. Partindo da minha experiência profissional, não vejo isso como um desafio insuperável, embora muitos possam considerá-lo assim”, observa. 

O executivo explica que montar uma indústria química é complexo, com diversas etapas, desde a purificação da matéria-prima até a obtenção do produto final. Além disso, requer investimentos significativos. “Acredito que se encontrarmos parceiros dispostos a investir em escala industrial, saindo da fase de demonstração para uma produção em grande escala, poderemos dar um passo importante nessa jornada. É preciso ganhar escala para ser economicamente competitivo”, esclarece. 

Para Sá,  o que realmente alimenta seu propósito é contribuir para um mundo melhor. “Além de oferecer uma solução economicamente viável, queremos ajudar pessoas e empresas a reduzir seu impacto ambiental. O objetivo é trazer uma solução sustentável e biológica, baseada em tecnologia. E isso não é apenas um sonho; é uma visão que nos impulsiona”, conclui.