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Uma cidade é como um ser humano, diz diretor da ONU-Habitat no Brasil
Para o oficial sênior da ONU-Habitat, inclusão, mobilidade e resiliência preocupam cidades brasileiras, mas são desafios possíveis.
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Camila de Lira em 29 de agosto de 2022 10minutos de leitura
Cidades podem ser feitas de concreto e asfalto, mas são mais parecidas com as pessoas do que se imagina. Principalmente quanto à capacidade de se adaptar e mudar para melhor. Essa é a opinião do oficial sênior da ONU Habitat para o Brasil e Cone Sul Alain Grimard. “Uma cidade é como um ser humano; está sempre em construção”, destaca o executivo, líder do programa das Nações Unidas para os Assentamentos Urbanos, em entrevista exclusiva ao Habitability.
O programa é um dos principais promotores do ODS 11 e de conceitos como a cidade de 15 minutos. “Acredito que o timing para esta abordagem está muito atrasado. Em todas as Américas, falhamos com nossas cidades, colocando as “coisas” cada vez mais distantes, e depois construindo enormes redes de estradas e tubulações para conectá-las”, diz o oficial sobre a adoção das cidades de 15 minutos na América Latina.
Uma cidade é como um ser humano; está sempre em construção.
Como representante da agência da ONU especializada nas cidades e na promoção de ambientes sustentáveis, Grimard fala também sobre os novos paradigmas das smarts cities e de como é importante que as cidades sejam espaço para inclusão, mobilidade e resiliência.
Quais são os principais desafios que o Brasil precisa enfrentar para chegar na urbanização sustentável? E quais são os exemplos de ações e boas práticas brasileiras?
Alain Grimard – Vejo três principais desafios. O primeiro é integrar todas as pessoas e lugares de uma cidade ao planejar e investir em infraestrutura e serviços e tratá-los de forma equitativa. Aqui, me refiro a um dos lemas do ONU-Habitat: “Não deixar ninguém e nenhum lugar para trás”. O segundo desafio é diversificar as funções dos bairros – e não especializá-los –, conciliando espaços para moradia, entretenimento, trabalho e compras nas mesmas áreas. Desta forma, reduzimos as viagens e contribuímos para uma mobilidade mais ativa. Por fim, com a mudança climática se tornando cada vez mais evidente, o terceiro desafio é tornar as cidades mais resistentes aos impactos negativos que ela pode ter sobre a vida e a infraestrutura. Acredito que todas as cidades brasileiras estão fazendo esforços para atingir tais objetivos. Isto requer um diálogo permanente entre cidadãos, autoridades e profissionais de desenvolvimento.
Quais foram as lições que a crise aguda da Covid-19 trouxe para as cidades brasileiras?
Alain Grimard – Em geral, a principal lição é que a saúde deve ser sempre levada em conta no planejamento e na gestão das cidades. Muitas autoridades e profissionais haviam subestimado o aspecto da saúde como elemento-chave para o crescimento e o bem-estar urbanos. O ONU-Habitat aponta que, globalmente, uma das principais lições aprendidas é que reforçar uma coordenação entre as cidades, regiões e territórios através da criação de decisões compartilhadas plataformas é muito importante. No nível das próprias cidades, o ONU-Habitat concluiu, com especialistas de todo o mundo, que é necessário promover o acesso equitativo aos serviços urbanos através de uma maior densidade, com uso misto dos espaços, incentivando estilos de vida mais saudáveis, coesão comunitária e resiliência aos impactos da pandemia sem comprometer sua habitabilidade.
A principal lição é que a saúde deve ser sempre levada em conta no planejamento e na gestão das cidades.
Em uma escala muito menor, uma das principais conclusões aplicáveis às cidades, independentemente de sua origem, é que elas devem identificar edifícios polivalentes e flexíveis que possam contribuir para fortalecer sua resiliência sanitária contra crises futuras.
O planejamento urbano é essencial para a criação de cidades saudáveis, mas o que fazer quando as cidades já estão erguidas? Como (re) organizar os eixos da cidade para torná-la sustentável?
Alain Grimard – Uma cidade é como um ser humano; está sempre em construção. Temos que partir do que existe e ver, com seus habitantes, como ela pode ser melhorada em termos de eficácia, eficiência e, acima de tudo, promoção do bem-estar. As autoridades e os profissionais de desenvolvimento urbano não têm outra escolha senão partir do que já existe. E este é um desafio interessante. Diz-se muitas vezes que os arquitetos criam seu melhor trabalho quando têm que projetar um novo edifício a partir de múltiplas restrições ambientais. O mesmo é válido para uma cidade. Devemos trabalhar simultaneamente em todas as escalas possíveis. Vou dar exemplos em diferentes níveis de um território. Na escala de uma rua ou de um pequeno bairro, por exemplo, isso significa melhorar ou criar espaços verdes. Na escala de vários bairros, significa facilitar a criação de ciclovias que ligam diferentes regiões e redefinir a política de acesso a moradias populares em toda a cidade. Em escala regional ou metropolitana, é fortalecer a coordenação entre as cidades para melhorar os serviços de transporte público.
O que é uma smart city na sua visão?
Alain Grimard – Durante a última década, o conceito de cidade inteligente surgiu como uma forma de descrever o uso de tecnologias nas cidades e em parte hegemonizou o contexto político em torno das tecnologias urbanas. A Nova Agenda Urbana compromete os Estados-Membros a “adotar uma abordagem de cidade inteligente que faz uso das oportunidades da digitalização, energia limpa e tecnologias”. Entretanto, em ambientes urbanos, as tecnologias não podem substituir a importância de sistemas de mobilidade sustentável, espaços públicos verdes, habitação de qualidade e outros serviços urbanos fundamentais.
Adotar uma abordagem de cidade inteligente que faz uso das oportunidades da digitalização, energia limpa e tecnologias.
Para o ONU-Habitat, é crucial reconhecer que as tecnologias são apenas ferramentas que devem ser utilizadas para contribuir para o bem-estar dos jovens, por exemplo, melhorando os serviços urbanos, facilitando o diálogo e a participação pública e criando empregos e oportunidades de subsistência.
Quando pensamos em urbanização sustentável e planejamento urbano, logo vem à mente os desafios das grandes cidades e capitais brasileiras, mas qual o impacto que as pequenas cidades têm em criar um futuro sustentável?
Alain Grimard – Este é um elemento crucial para o desenvolvimento geral de uma nação, de um país. No Brasil, como em muitos outros países do mundo, há vários anos se observa que as cidades pequenas e médias estão crescendo mais rapidamente do que as grandes. Isto é especialmente verdade nos casos das cidades pequenas e médias próximas às cidades centrais. E a razão disso é simplesmente a expansão urbana. Famílias encontram acomodações que ficam cada vez mais longe das grandes cidades, já que o preço das casas diminui com a distância dos grandes centros. Daí a necessidade de dar muito mais importância ao planejamento territorial em escala regional. Devemos tentar integrar melhor a função de cada cidade para que elas sejam complementares umas às outras. Por exemplo: pequenas cidades devem desenvolver seus próprios centros de desenvolvimento econômico a fim de limitar a necessidade de as pessoas viajarem para as cidades centrais para trabalhar e, com a renda adicional gerada pelas novas atividades econômicas, oferecer serviços e infraestrutura que garantam que a população local encontre o que precisa.
Qual a importância de as cidades construírem resiliência? Como chegar na resiliência?
Alain Grimard – Grande parte do crescimento urbano nas cidades está ocorrendo espontaneamente, ou seja, não está seguindo as estruturas de planejamento oficiais, mesmo quando elas existem. Como resultado, muitos residentes urbanos vivem em áreas precárias (nas margens dos rios, nas encostas das montanhas etc.), em assentamentos informais que são muitas vezes vulneráveis aos perigos naturais causados pelo homem. Ao mesmo tempo, a mudança climática aumentou a frequência e a intensidade dos riscos naturais. Consequentemente, uma gama de riscos urbanos está se acumulando e há uma necessidade urgente de desenvolver a capacidade das cidades em relação à redução de riscos e ao planejamento da resiliência.
Mais do que nunca, as cidades precisam de ferramentas que lhes permitam planejar e empreender ações práticas para fortalecer a resiliência.
A “resiliência urbana” pode ser definida como a capacidade de qualquer sistema urbano de absorver e se recuperar rapidamente do impacto de todos os choques e tensões plausíveis ao mesmo tempo em que mantém suas funções. Mais do que nunca, as cidades precisam de ferramentas que lhes permitam planejar e empreender ações práticas para fortalecer a resiliência. Elas precisam avaliar suas vulnerabilidades e a, partir daí, definir planos de ação. Acima de tudo, precisam trabalhar simultaneamente em duas frentes: de um lado, prevenir desastres e preparar a população para eles. Do outro, investir em uma infraestrutura pública mais resistente aos desafios atuais e futuros.
Outro tema em pauta é a “cidade de 15 minutos”: como ela está relacionada ao conceito de cidade planejada? Por que os espaços urbanos deveriam estar olhando para esse conceito?
Alain Grimard – Uma “cidade de 15 minutos” é uma cidade na qual você pode acessar todas as necessidades mais básicas do dia a dia a uma caminhada de no máximo 15 minutos de sua casa. Também é um conceito conhecido como “bairro completo”. Acredito que o timing para esta abordagem está muito atrasado. Em todas as Américas, falhamos com nossas cidades, colocando as “coisas” cada vez mais distantes e depois construindo enormes redes de estradas e tubulações para conectá-las. Nossas cidades enfrentam custos de manutenção cada vez maiores para todo esse pavimento, ao mesmo tempo em que os residentes clamam por mais estradas para lidar com o congestionamento causado por todo o trânsito que nos obrigamos a fazer. Promover uma “cidade de 15 minutos” significa colocar uma ênfase crescente no planejamento da cidade, com foco na promoção de bairros socialmente inclusivos e com alta densidade, proporcionando os serviços necessários para que os residentes atendam suas necessidades localmente de modo a permanecerem saudáveis e economicamente ativos.
Planejar uma cidade “age friendly” está nos destaques do Envisaging the Future of Cities, do WCR 2022: o que isso significa de maneira prática? Como as cidades brasileiras estão se adequando?
Alain Grimard – De fato, a questão dos idosos e do envelhecimento geral da população no Brasil, como em muitos outros países, é um grande desafio para o futuro… e para o presente! Vimos as dificuldades encontradas pelos idosos durante a pandemia, já que eles não tinham acesso à tecnologia. Os idosos que vivem abaixo da linha de pobreza foram particularmente afetados. Para o ONU-Habitat, é claro que a cidade pode ter um impacto direto sobre a vida das pessoas mais velhas. Entretanto, é preciso ter em mente a complexidade e a diversidade das questões multidisciplinares que surgem do envelhecimento. As questões subjacentes são numerosas: como estruturar o transporte e as ofertas de serviços adaptadas às necessidades dos idosos? Como integrar sua participação na cidade, independentemente de suas características sociais, de idade, gênero ou categoria socioprofissional? Como podemos organizar e facilitar o curso de vida dos idosos de acordo com suas necessidades em mudança? Que modelos devem ser propostos às incorporadoras imobiliárias que estão atualmente desenvolvendo ofertas habitacionais díspares e como podemos encorajá-las a realizar operações em áreas relevantes em termos de acessibilidade e serviços dedicados para que os residentes possam permanecer lá, sejam quais forem suas necessidades futuras?
As questões subjacentes são numerosas: como estruturar o transporte e as ofertas de serviços adaptadas às necessidades dos idosos?
Mas vejo que várias cidades brasileiras começaram a dar passos positivos nessa direção, seja na instalação de equipamentos de exercício em parques urbanos, seja na gratuidade do uso do transporte público. No Brasil, até mesmo o setor privado se envolveu, criando atendimento prioritário para idosos em diferentes tipos de serviços. Eu sou do Canadá e, acredite, ainda estamos longe de ter gestos tão positivos do setor privado. As cidades precisam estabelecer metas e estratégias para adotar políticas “favoráveis à idade”, que terão de evoluir nos próximos anos à medida que o Brasil vê os maiores de 60 anos ocupando cada vez mais espaço nos territórios urbanos. São necessários diálogo e reflexão entre planejadores, tomadores de decisão e a população idosa a fim de iniciar políticas estruturais para adaptar estas áreas urbanas e periurbanas às necessidades de hoje e de amanhã. Ainda há muito trabalho a ser feito para compreender melhor os desafios do ponto de vista da vida cotidiana do envelhecimento e dos idosos, especialmente em termos de como o projeto de ambientes e serviços urbanos pode promover uma maior inclusão social para eles, bem como uma justiça espacial mais equilibrada em termos de distribuição de recursos.
Um dos principais pontos do plano estratégico de 2022-23 do ONU-Habitat é que a urbanização sustentável é um motor para a paz. Como um ponto se conecta com o outro?
Alain Grimard – É nas cidades que a maioria dos imigrantes se instala. É nas cidades que acontecem manifestações populares reivindicando direitos. É nas cidades onde há mais oportunidades para se encontrar, trocar, discutir e confrontar ideias. Daí a importância das cidades em qualquer processo que busque a paz e a harmonia. Graças à proximidade dos governos com a realidade local, as cidades sabem que a paz não é a ausência de conflito, mas a capacidade de aproximar posições e encontrar soluções sem violência. Afinal, conflitos são naturais em nossas sociedades e podem nos ajudar a avançar e transformar nossos sistemas de convivência. Mas isso só será possível através de respeito, empatia e solidariedade. Sobre isso, cidades ao redor de todo o mundo têm um papel vital a desempenhar na promoção de uma cultura de paz e no fornecimento de meios para assegurar que tensões, discursos de ódio e violências, que têm raízes na discriminação, não encontrem caminho em nossos bairros e ruas. Através da prestação de serviços, ações coletivas, desenho de espaços públicos e políticas de participação, entre outros instrumentos, as cidades têm a capacidade de contribuir diretamente para o estabelecimento de sociedades pacíficas.
Quais temas são latentes para a transformação das cidades, mas ainda não estão no radar dos governos?
Alain Grimard – Na minha opinião, após mais de dez anos de vida e trabalho neste país que amo, acredito que as cidades brasileiras têm dois principais desafios a serem enfrentados nos próximos anos. O primeiro é a inclusão de todos os cidadãos no processo de planejamento e construção de cidades. Cito novamente o lema do ONU-Habitat: “Não deixar ninguém e nenhum lugar para trás”. Em segundo lugar, a questão da mobilidade. Como a maioria dos países do mundo, as cidades no Brasil têm que sair desta armadilha de mobilidade – o ciclo vicioso de dirigir distâncias cada vez maiores para chegar às mesmas coisas – e voltar a construir lugares ao redor do mais antigo e versátil, investindo nos meios de transporte mais relevantes que existem: duas pernas e duas rodas com um pedal.
Na sua visão, como será a cidade brasileira em 2050? Como será em um cenário otimista? E se a gente continuar o “business as usual”?
2050 é amanhã! Isso é exatamente uma geração, o que não é muito tempo na vida de uma cidade ou de um país. Mas temos que admitir que os próximos anos serão especiais ou únicos em toda a jornada da humanidade devido às mudanças climáticas que estão por vir. Nunca antes as pessoas foram confrontadas com um problema tão global e gritante.
A construção de cidades verdes, inclusivas e sustentáveis deve ser a base de qualquer programa local e nacional de mudança climática.
As cidades são, em muitos aspectos, atores-chave para lidar com a mudança climática. Os setores sob sua responsabilidade (transporte, habitação etc.) são elementos-chave na luta contra a mudança climática. As cidades têm meios de ação que podem ser mais importantes do que os de governos nacionais. Mas cabe aos Estados apoiá-los política e financeiramente nesse sentido! O Banco Mundial argumenta que “a construção de cidades verdes, inclusivas e sustentáveis deve ser a base de qualquer programa local e nacional de mudança climática”. O que é claro é que as cidades precisam promover o crescimento de baixo impacto climático até 2050, o que pode incluir uma mudança na direção do transporte de passageiros para reduzir a dependência do petróleo, informar e engajar as comunidades sobre a mudança climática, ecologizar os bairros para a natureza local e, acima de tudo, aproveitar as oportunidades para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. São grandes desafios – mas não temos escolha.
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