Classificadas como o tipo de comunidade que mais contribui para os 17 ODS da ONU, ecovilas têm o urbanismo socioecológico como premissa.
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Ana Cecília Panizza em 9 de julho de 2024 8minutos de leitura
Foto: Reprodução/Casa Vogue
Uma área de proteção ambiental no litoral sul da Bahia, na Península de Maraú, no município de mesmo nome. São 16 km de praia deserta ao norte e outros 6 km ao sul. Lá fica a Ecovila Piracanga, de onde se avista um cenário deslumbrante e surpreendente: o Rio Piracanga correndo paralelamente ao mar. Mas não é apenas na paisagem que a natureza tem destaque. Ela é também o eixo central das ecovilas, onde a proposta é criar um estilo de vida de baixo impacto ambiental e com relações interpessoais cooperativas e solidárias, baseado nos seguintes pilares: pacifismo, autogestão, práticas ecológicas, laços comunitários, experiências poéticas ou transcendentes e busca de autoconhecimento. Ecovila é, assim, exemplo de abordagem socioecológica no planejamento urbano, pois nasce da integração da vivência humana com a gestão dos recursos naturais.
Com formas diferentes de ocupar a terra, consumir, produzir e tratar resíduos sólidos, partindo-se do princípio da convivência com a natureza como elemento fundamental para a vida humana e o equilíbrio ambiental, as ecovilas trazem uma perspectiva particular (ou inspiração) para o enfrentamento dos desafios globais crescentes. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), ecovilas são o tipo de comunidade que mais contribui, no mundo, para que os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável formulados pela ONU se cumpram até 2030.
Socioecologia das ecovilas como resposta aos riscos do futuro urbano
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais da metade da população mundial vive em cidades. E, até 2050, essa parcela passará para cerca de 70%. Há, portanto, uma tendência irreversível em direção a uma realidade predominantemente urbana, com riscos de escassez de água e alimentos, redução da biodiversidade, mudanças climáticas, crises econômicas, aumento das desigualdades sociais e pandemias.
Para lidar com esses problemas, as cidades precisarão de iniciativas que reduzam os impactos ambientais. “Isso significa que é necessário integrar o campo das ciências da natureza ao campo das ciências sociais e humanas no âmbito do urbanismo, nos quais se encaixa a conexão entre ecologia e desenho urbano”, afirmam as arquitetas Liza Andrade e Lara Freitas no artigo “Abordagem socioecológica como base para a escala local e do bairro para promover a resiliência urbana e comunitária frente às mudanças climáticas”, publicado na Arq.urb Revista Eletrônica de Arquitetura e Urbanismo da USP. Exemplo dessa integração está justamente nas ecovilas.
Mudança de mentalidade
O Brasil já passa por um processo acelerado de urbanização, o que resultou na ocupação (regular ou irregular) de áreas de proteção ambiental sem a devida observação e o respeito aos limites salutares – e sem o devido licenciamento ambiental. É o que destaca a arquiteta e urbanista Viviane Rubio, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Hoje as cidades no Brasil, no geral, encontram-se em uma situação limite e se faz necessária a mudança de mentalidade tanto na forma como ocupamos a cidade, bem como tratamos e produzimos os resíduos sólidos e os efeitos do consumo”, analisa ela.
As ecovilas estão à frente nesse quesito, pois já têm essa mentalidade, uma vez que são comunidades unidas por valores ecológicos, econômicos e sociais que trabalham com o princípio de não retirar mais do que o planeta pode repor, sempre de forma consciente. Assim, elas têm apresentado uma forma eficaz e acessível para combater a degradação dos ambientes sociais e ecológicos, demonstrando como a sociedade pode avançar em direção à sustentabilidade nos próximos anos.
“As ecovilas que conhecemos atualmente são basicamente rurais e tratam de um modo de vida cooperativo de baixo impacto ambiental, baseado na ecologia e na economia circular”, comenta Viviane. As primeiras foram implantadas na década de 1990, especialmente durante o simpósio da Rede Global de Ecovilas, em 1995. De acordo com a Rede Global de Ecovilas, há mais de 400 comunidades desse tipo no mundo (36 no Brasil). Segundo a professora, existem ecovilas em diferentes partes do mundo: África, Américas, Europa. No México, ela lembra que algumas ecovilas nasceram após eventos como terremotos, “partindo da ideia de cuidar das pessoas atingidas”. As principais atualmente são Yarrow EcoVillage (Canadá), La Montaña (Chile), Las Gaivotas (Colômbia), The Farm (EUA). No Brasil, além de Piracanga, outras que se destacam são SitiOm, em Vargem Grande Paulista/SP, e Vrinda Bhumi, no sul de Minas Gerais.
Prêmios e moeda própria
A Ecovila Piracanga está fazendo a sua parte no cumprimento dos objetivos da ONU em direção à sustentabilidade. As casas da vila, compartilhadas ou próprias, são construídas com tijolos convencionais ou são bioconstruídas, ou seja, erguidas por meio de técnicas de pau a pique e adobe. A maior parte tem telhado de piaçava. Os moradores seguem todos os pilares propostos pelo grupo, dedicando-se ativamente às iniciativas que sustentam essa pequena sociedade alternativa. Há construções destinadas ao uso coletivo – reuniões, cursos e retiros oferecidos para visitantes, que também podem fazer ecoturismo no local.
A população de Piracanga varia entre 100 e 200 habitantes, conforme a época do ano. O sistema de saneamento é totalmente natural e ecológico, com banheiros secos, o que levou a ecovila a ganhar o prêmio internacional Latinoamérica Verde, na categoria “águas”. Toda a comunidade participa da separação de resíduos: os orgânicos vão para compostagem; pequenos plásticos e embalagens viram ecotijolos; vidros compõem as fundações das residências e metais são enviados para um centro de reciclagem em Itacaré, a cidade mais próxima (a uma hora dali). Piracanga também conserva 69 hectares de vegetação intocada, sem qualquer interferência humana.
O terreno era uma antiga fazenda de côco, comprada pelos fundadores da ecovila – um casal de europeus – e dividida em 70 lotes. Depois a ecovila passou a ter sócios, que se mudaram para o local com suas famílias. E passou a receber outras pessoas à procura de um lugar para morar em sintonia com a natureza.
A comunidade fundou o Instituto Inkiri Piracanga, ONG focada em garantir a preservação ambiental e estimular o autoconhecimento e a espiritualidade da população. O instituto é responsável por manter as atividades da ecovila em funcionamento. Oferece, para as crianças, um ensino diferenciado, a partir de uma metodologia que rendeu a Piracanga, em 2016, o reconhecimento pelo Ministério da Educação como um dos estabelecimentos de ensino mais inovadores e criativos em educação básica no Brasil. A metodologia do Instituto Inkiri busca respeitar o desenvolvimento individual de cada criança, criando um lugar seguro onde elas possam se descobrir e se expressar de forma leve e espontânea.
Piracanga tem até moeda própria, com lastro no real, chamada “Inkiri$”. Foi implantada em 2016 para aumentar as possibilidades de troca na economia local, além de reforçar as relações humanas e os laços comunitários. Funciona como moeda complementar ao real e só têm valor dentro de uma rede específica. Em uma segunda fase de implementação e expansão, os “Inkiri$” passaram a ser aceitos por parceiros locais, como feiras que atendem a ecovila três vezes por semana, e a ser utilizados por estabelecimentos comerciais de Itacaré.
Para as arquitetas Liza Andrade e Lara Freitas, o aspecto mais relevante das ecovilas é que são locais fora da lógica de mercado. “Foram construídos pelas pessoas e para as pessoas que vivem nesses locais, atendendo a suas necessidades individuais e comunitárias, bem como a capacidade dos recursos da sua biorregião em atender às atuais e futuras gerações. Eles trabalham suas necessidades e projetos muitas vezes em interface com o poder público e não aguardam que esses agentes venham a resolver seus desafios, mas que apoiem em determinadas situações.”
Florescimentos
É o caso da Ecovila El Nagual. Uma argentina, um alemão e o desejo de novas experiências e de um futuro sustentável perto da natureza foram as sementes, ainda em 1989. Mariana Devoto e Eraldo – nome aportuguesado de Horst Erhard Bernhard Kalloch – viajavam pela América do Sul em uma kombi quando se encantaram com uma área no meio da Mata Atlântica no bairro de Santo Aleixo, cidade de Magé, em plena região metropolitana do Rio de Janeiro. Compraram um terreno por ali e fundaram a comunidade baseada no desenvolvimento sustentável e na permacultura, que é a elaboração, implantação e manutenção de ecossistemas produtivos que mantêm a diversidade, a resiliência e a estabilidade dos sistemas naturais, promovendo energia, moradia e alimentação humana em harmonia com o meio ambiente.
Localizada no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, foi estabelecida como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), ou seja, é uma reserva natural privada, de acordo com as leis brasileiras. Mais de 90% da área é preservada, cuidada, não explorada. Mariana e Eraldo acreditam que, para descobrir verdadeiramente um novo modo de vida, que seja sustentável e contribua para o florescimento das pessoas e da natureza, é preciso focar em cinco aspectos: sustentabilidade, filosofia, arte, conservação, educação. “Nós estávamos com a ideia de sair da sociedade de consumo e produzir as coisas ao invés de comprar as coisas que a televisão e o marketing sugerem. A gente quis produzir mais e consumir menos, e intuitivamente fizemos um caminho de aprendizado, de tratar as pessoas de forma diferente e de integrá-las com as plantas, a floresta. E com a nossa vida”, comenta Eraldo em relação à ecovila que concebeu.
Das ecovilas para as vilas urbanas
Outro modelo urbano com abordagem socioecológica é o de vilas urbanas, estudado pelo pesquisador americano Christopher Mare e mencionado pelas autoras no artigo “Abordagem socioecológica como base para a escala local e do bairro para promover a resiliência urbana e comunitária frente às mudanças climáticas”. Vilas Urbanas, segundo Mare, são comunidades sustentáveis autossuficientes, adaptadas para atender às necessidades essenciais primárias de seus habitantes: produção de alimentos, água, moradia, energia para cozinhar e para aquecimento, trabalho, interação social, agricultura orgânica e sistemas agroflorestais.
A Vila Urbana ideal, para Mare, tem 5 mil pessoas e pode ser solução de reestruturação para as cidades, uma nova maneira de adotar padrões e processos. Significa preparar a atividade humana com os limites naturais estabelecidos por processos e estruturas ambientais.
Urbanismo ecológico, natureza como elemento estruturante da cidade
Conciliar paisagem natural com ocupação urbana está presente em um conceito mais amplo, o de urbanismo ecológico, que surgiu no final do século 20 para criar uma mudança de paradigma no desenho das cidades. Segundo esse conceito, os projetos urbanos são pensados a partir das potencialidades e limitações dos recursos naturais existentes. Ou seja, a própria paisagem natural é o elemento estruturador da cidade, e não a arquitetura (como se é convencionado). Assim, as áreas verdes podem ser aproveitadas como estratégia de engenharia, pois têm potencial de amortecimento, retenção e tratamento de águas da chuva, por exemplo. Com o urbanismo ecológico, o desenho da cidade passa a ser definido pelos elementos naturais existentes.
Em sua tese de mestrado, a arquiteta Patricia Harumi Akinaga defende que é possível implantar urbanismo ecológico no bairro de Itaquera, que fica na zona leste da cidade de São Paulo e tem uma população de mais de 200 mil pessoas. Segundo Patrícia, o caminho está em políticas públicas, ações da iniciativa privada e envolvimento comunitário, com objetivo conjunto de melhorar a qualidade ambiental e a vida urbana.
A pesquisadora lembra que a região foi impactada, nos últimos anos, pela implantação de equipamentos urbanos como o estádio de futebol do clube Corinthians. Ela identificou a oportunidade de transformar o entorno da arena a partir da aplicação de princípios ecológicos. A ideia dela é reconfigurar o traçado viário; retomar cursos d´água; estruturar o desenho urbano juntamente com áreas verdes; implantar bairros ecológicos (menores) na região; criar espaços adequados para ciclistas e pedestres; usar lotes vazios e subutilizados como novas âncoras da infraestrutura verde.
Para isso, Itaquera – assim como outros bairros, regiões e cidades mundo afora – precisam ter suas legislações aprimoradas para implantação e sustentação de modelos como ecovilas e vilas urbanas, em direção ao alcance dos ODS. Experiências concretas e bem-sucedidas, como a Piracanga, em que a vida em comunidade se concilia com a natureza, mostram que, sim, é possível!
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