Arborização urbana: ‘a natureza somos nós’, diz Gisseli Giraldelli  

Defensora da arborização urbana, conhecida na trajetória de sucesso de Campo Grande no tema. Conheça a bióloga Gisseli Giraldelli.

Por Paula Maria Prado em 1 de fevereiro de 2024 7 minutos de leitura

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Foto: Divulgação/Prefeitura Campo Grande

Reconhecida como uma das cidades mais arborizadas do mundo, Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, recebeu em 2023, pelo quarto ano consecutivo, o título de “Tree City of the World” (“Cidade Árvore do Mundo”, em tradução livre), concedido anualmente pela Arbor Day Foundation e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU). O município é reconhecido ainda como “Cidade Amiga das Árvores”, pela Sociedade Brasileira de Arborização Urbana (SBAU). Por trás da arborização urbana que rendeu os reconhecimentos, estão as ações de preservação, inovação e proteção da chamada floresta urbana, com práticas bem sucedidas no manejo de árvores desenvolvidas pela prefeitura, e um nome: Gisseli Giraldelli, atual superintendente de fiscalização e gestão ambiental, auditora fiscal de meio ambiente de carreira, com atuação na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Gestão Urbana (Semadur) de Campo Grande e diretora regional centro-oeste da SBAU. 

Para ela, entender as árvores como indivíduos, com direito à vida tanto quanto nós, humanos, é o início da construção de uma relação mais respeitosa com o meio ambiente. “Não há mais tempo de achar que natureza é a mata, a floresta. As mudanças climáticas estão aí, precisamos mudar a forma de pensar. A natureza somos nós”, crava a bióloga.

O município conta, segundo o site da Tree City of the World, com 37.841 árvores plantadas. No entanto, mais do que quantidade, o título leva em conta um conjunto de práticas, como a manutenção da floresta urbana e a gestão. 

Em conversa com o Habitability, Gisseli conta como Campo Grande tornou-se referência na área de manejo e preservação ambiental, revela sua paixão pelo meio ambiente e seu sonho de uma sociedade com mais respeito ao meio ambiente. Confira: 

Quem é essa mulher defensora das florestas e da arborização urbana? 

Gisseli Giraldelli – Sou uma nerd e workaholic feliz! Sempre fui muito estudiosa e autodidata. Aprendo muita coisa sozinha. Tenho uma família incrível, meu marido e minhas filhas são minha base. Sou filha de um agricultor e uma dona de casa e aprendi com eles que o tamanho do conhecimento é o tamanho da responsabilidade. Gosto das coisas sempre bem feitas.  

A biologia entrou na minha vida por influência de uma professora do ensino fundamental. Eu amava as aulas dela. E, anos depois, na graduação na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), onde tive bolsa de iniciação científica, desenhei para mim uma carreira acadêmica. Fiz mestrado e estava na minha programação o doutorado, que começaria meses depois. Mas, no meio do caminho, surgiu um concurso público em Campo Grande. Fiz minha inscrição incentivada por minha irmã, passei e logo assumi o cargo de auditora fiscal de meio ambiente.

Fiz parte da primeira turma, quando nem tínhamos ainda modelos de lauda e monitoramento. Comecei a me especializar e virei “a louca da árvore”. Fato é que amei tanto a minha nova função que não voltei para a universidade. O doutorado ficou para depois. 

Considero-me uma servidora pública engajada. Em 2019, me associei à SBAU, que reúne os principais especialistas em arborização urbana do país. Hoje estou como diretora regional centro-oeste. Assim, fui me consolidando como referência na área. Gosto de contar minha história, não para me vangloriar, mas, para servir de exemplo, principalmente para quem está começando.  

E o doutorado saiu de vez dos planos? 

Gisseli Giraldelli – Não! Estou agora doutoranda, 16 anos depois! Eu já tinha desistido. Mas recebi um convite e hoje integro o Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da Uniderp-Anhanguera, sob a orientação dos professores Dr. Osvaldo Borges e Drª. Neiva Guedes.

Sobre sua atuação, qual o principal desafio que encontrou nessa trajetória da arborização urbana? 

Gisseli Giraldelli – Fazer as pessoas compreenderem a importância do meio ambiente é o desafio da humanidade. Por mais que nós estejamos vivendo os efeitos extremos da sua degradação, com alterações climáticas e, consequentemente, passamos a dar mais importância ao meio ambiente, ainda estamos muito aquém do ideal. 

Ainda hoje, o meio ambiente é visto como algo secundário, que deve se limitar a parques, florestas ou áreas de preservação. Quando na verdade, precisamos coexistir. Nós precisamos mais das árvores do que elas de nós – elas chegaram antes neste mundo. E os serviços ambientais que elas prestam são essenciais [cortam a incidência direta de raios solares, drenam águas pluviais, contêm processos de assoreamento e erosão, tornam o clima mais úmido, sequestram carbono etc]. E mesmo assim, continuamos degradando.

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E Campo Grande está na contramão.

Foto: Divulgação/Prefeitura Campo Grande

Gisseli Giraldelli – Nós ainda temos problemas, como toda cidade. Mas conseguimos identificá-los, bem como os sucessos. E construímos um planejamento de curto, médio e longo prazos para resolver tais problemas. 

Hoje temos um patrimônio arbóreo florestal expressivo. Trabalhamos a compatibilização da floresta urbana com a população há muitos anos, com parcerias público-privadas e começamos  a ter outro olhar para a árvore. Antes de cortá-la, buscamos formas de mantê-la. Nossas árvores têm valor histórico, cultural e ecológico. Para as velhinhas, investimos em tratamento [descompactação e adubação do solo ao redor das árvores, tratamento fitossanitário de pragas e doenças, termorretificação de cavidades existentes, adubação foliar, endoterapia, inoculação de organismos no solo capazes de melhorar a fixação e disponibilidade de nutrientes]

Também implantamos uma plataforma (Arbolink) por meio da qual podemos fazer a gestão em sua integralidade. Dentro dela, temos a Defesa Civil, a empresa de energia… São várias frentes unidas em prol da manutenção da floresta urbana. Além disso, nosso arcabouço legal é muito bem elaborado, bem constituído, amarrado e factível, com plano diretor de arborização urbana, uso e ordenamento do solo, código de licenciamento ambiental. 

Por fim, nosso corpo técnico prima pela excelência e trabalha o tempo todo com fiscalização e controle. Contamos ainda com a participação da academia (Uniderp, SBAU e UFMS) e da população, que aderiu à iniciativa. 

Aliás, quando começa a ser sistematizada a floresta urbana em Campo Grande?

Gisseli Giraldelli – Não é uma ação de uma gestão específica. Temos um século de história de arborização. Em 1921, nosso código de posturas, que determinava as leis municipais, trazia como regra que a distância mínima para construir na margem do rio é de 20 metros. Ou seja, muito antes de existir o Código Florestal, de 1965, um gestor visionário [Arlindo de Andrade Gomes, que governou a cidade de 1921 a 1923] criou esse código. 

Ele também documentou a construção da cidade com a arborização. No entanto, algumas práticas foram se perdendo ao longo dos anos. Tivemos árvores mutiladas e agredidas, problema que acontece em muitas cidades ainda hoje. Além disso, quando uma árvore cai, a culpa não é da árvore, mas da má gestão da floresta urbana. E isso gera medo na população, que não quer árvores perto de suas casas, por exemplo. E é aí que mora o paradoxo: as árvores são essenciais para que possamos suportar eventos climáticos extremos.  

Como mudar esse cenário? 

Foto: Divulgação/Prefeitura Campo Grande

Gisseli Giraldelli – É um trabalho de médio e longo prazos. Quando falamos em habitação, existe um conceito chamado biofilia, muito usado na arquitetura. Nós somos seres vivos e naturais, presentes na natureza. Ou seja, quando estamos diante de elementos naturais, nos sentimos bem. É um cenário que remete às nossas raízes de ser natural.  

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Quando pegamos fotos de uma via arborizada e da mesma via árida, sem vegetação e pedimos para que uma pessoa escolha qual imagem prefere, é unânime: todos escolhem a via arborizada. Nós precisamos da floresta urbana até por uma questão de saúde.   

Cidades também precisam de leis que garantam que projetos na área ambiental sejam continuados, independentemente da gestão municipal, e um projeto de preservação e manejo que possibilite aos seus habitantes maior integração com a natureza e comprometimento com seu cuidado.     

Como é feito tecnicamente o cálculo de árvores em uma via?

Foto: Divulgação/Prefeitura Campo Grande

Gisseli Giraldelli – Isso é medido de acordo com cada local. É necessário um diagnóstico que especifique, por exemplo, o porte da planta que será colocada ali. Por exemplo, uma calçada de três metros de largura. Ela precisa servir ao passeio público, com faixa permeável, poste, sinalização viária… Qual espécie caberia nesse espaço? E precisa levar em conta ainda o clima e o bioma. A infraestrutura precisa ser compatível para evitar problemas posteriores. 

Aqui no cerrado, por exemplo, priorizamos espécies nativas e gostamos de equilibrá-las com espécies exóticas, como a Sete Copas (Terminalia catappa L.), que se adaptou muito bem, não produz efeitos nocivos e as araras vermelhas adoram.

E árvores frutíferas?

Gisseli Giraldelli – Toda árvore (angiosperma) tem frutos (risos). É que nós estamos acostumados às frutas do supermercado em vez de descobrir outras frutas que podemos comer, como guavira, jenipapo, jatobá, gabiroba, marmelo do cerrado… Há várias linhas de pesquisa sobre isso. Do ponto de vista nutricional, o consumo é muito bom. 

Já árvores com frutas que já conhecemos é preciso ter cuidado. Por exemplo, um abacateiro na calçada, por ter um fruto grande, pode causar acidente. O jamelão deixa o chão escorregadio. Então é preciso olhar com muito cuidado. Mas nós temos o projeto “Fruta no quintal”, onde doamos mudas de pitanga, goiaba, jabuticaba para a população plantar em casa. 

Você comenta que a manutenção da floresta tem relação direta com a biodiversidade. Como isso ocorre?

Gisseli Giraldelli – Quando eu tenho um canteiro central lotado de espécies nativas, a fauna da região passa a fazer parte dessa estrutura. São espécies que se alimentam de frutos, de pólen e se reproduzem sobre as cascas. Toda árvore é um ecossistema. 

Aqui em Campo Grande a população abraçou esse raciocínio. Fazemos, claro, um trabalho de orientar as pessoas a não se aproximarem dos animais. Mas eu me orgulho de ver que conseguimos coexistir com quatis, capivaras, tamanduás e lobinhos. É uma fauna muito expressiva. E todos têm direito à vida. 

Hoje existe uma legislação nacional com foco em florestas urbanas? 

Gisseli Giraldelli – Não. O corpo técnico da SBAU se debruçou sobre a questão e elaborou uma minuta para uma Política Nacional do Meio Ambiente. A apresentamos em uma articulação política e hoje tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 4309/21, [que institui o marco regulatório da arborização urbana, com o objetivo de auxiliar os municípios brasileiros no planejamento da arborização e mitigar os efeitos da urbanização acelerada]. Tomara que vire realidade. 

Como você vislumbra o futuro?

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Gisseli Giraldelli – O artigo 225 da Constituição Federal deveria ser cláusula pétrea [“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”]. Para mim, ele sistematiza a nossa existência. Todas as atividades fazem uso de recursos ambientais. 

A arborização urbana é fundamental para a nossa vida. E, se estiver presente em mais cidades, todos temos a ganhar. Então, espero que ocorra no futuro um convívio harmônico entre cidadãos, vegetação e elementos urbanos. E, para isso, queremos inspirar outras cidades. Nos colocamos à disposição para municípios que queiram conhecer nossas práticas.