De grão em grão, areia sustentável segue caminho da circularidade

Com o consumo global de areia atingindo 50 bilhões de toneladas anualmente, o CCO da Agera, Fabio Duarte, destaca a importância de adotar práticas sustentáveis na construção civil.

Por Nathalia Ribeiro em 16 de outubro de 2024 9 minutos de leitura

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Fabio Duarte (Foto: Divulgação)

O consumo global de areia e cascalho chega a 50 bilhões de toneladas por ano, o suficiente para construir um muro de 27 metros de espessura e altura ao redor da Terra. O material, essencial para a construção civil, ocupa o segundo lugar, atrás apenas da água, no ranking dos recursos naturais mais consumidos. Diante da crescente dependência dele, o relatório Sand and Sustainability: 10 Strategic Recommendations to Avert a Crisis, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) destaca a necessidade urgente de reconsiderar a areia como um recurso estratégico. 

É nesse cenário que o modelo de negócio baseado no conceito de economia circular se destaca, como o da Agera, que consiste em investir em tecnologias inovadoras para reciclar materiais e encontrar alternativas que promovam a construção responsável. A empresa, 100% detida pela mineradora Vale, desenvolve aplicações e mercados para a areia de mineração.

À frente dessas iniciativas está Fabio Duarte, Chief Commercial Officer (CCO) da Agera. Com uma carreira sólida e diversificada nos setores de negócios e biotecnologia, ele se dedica desde 2022 a conectar inovação e demanda, refletindo sua habilidade em identificar oportunidades e impulsionar a adoção de práticas sustentáveis na construção civil. Para ele, a areia sustentável representa além de uma oportunidade de inovação na construção civil, uma necessidade urgente diante dos desafios ambientais que o mundo enfrenta. Confira na entrevista a seguir.

O que é exatamente a areia sustentável e como ela se diferencia da areia convencional utilizada na construção?

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Foto: Reprodução/ Agera via YouTube

Fabio Duarte: A nossa areia é proveniente do processo de concentração de minério de ferro da mina de Brucutu, da Vale. Outras minas também têm potencial, mas focamos em Brucutu por questões estratégicas. Essa areia é sustentável, circular e causa um impacto bem menor quando comparada às areias tradicionais, que são extraídas de encostas, leitos de rios, cavas e pedreiras, processos exploratórios que degradam o ambiente de alguma forma. No caso da mineração, o processo de extração já ocorre naturalmente por conta do minério, utilizando equipamentos de grande porte que recuperam o material diretamente da frente de lavra ou do talude de uma cava, trazendo o chamado ‘ROM’ (Run of Mine), que é o material bruto extraído da mina. Então aproveitamos o material que seria descartado depois do processamento do ROM.

Por que a areia da Agera é considerada sustentável?

Fabio Duarte: Nosso material é considerado sustentável porque não causa degradação ambiental adicional, sendo um subproduto do processo de extração e concentração de minério de ferro. Ao reprocessar esse material, que antes seria descartado, conseguimos transformá-lo em areia sem aumentar as emissões de carbono ou recorrer à exploração de rios, abertura de novas cavas ou detonação de pedreiras. 

É importante ressaltar que a exploração do minério de ferro é uma realidade que sempre existirá, pois o ferro é fundamental para a sociedade. Então, nossa abordagem visa aproveitar parte desse processo para oferecer uma solução mais sustentável para a areia, alinhando-se à economia circular e evitando a exploração de novos recursos, enquanto reaproveitamos materiais já existentes.

Como é o processo de produção da areia sustentável?

Fabio Duarte: O material extraído da mina é levado para uma usina de concentração, onde é processado para separar o minério das impurezas. O que sobra é uma lama que antes ia para as barragens. No entanto, após o ocorrido em Mariana e Brumadinho, a utilização de barragens passou a ser muito discutida, e hoje já não se permite o uso dessas estruturas, o que levou as mineradoras a encontrarem destinações mais adequadas para o material descartado.

Após quase 10 anos de pesquisa, a Vale desenvolveu um processo que permite reprocessar a lama gerada durante a concentração do minério de ferro. Esse material passa por etapas de filtragem e flotação, resultando na separação de dois subprodutos: o primeiro é o material arenoso, que é a nossa areia, e o segundo é uma lama mais fina. Essa lama residual ainda é destinada a algumas barragens menores que permanecem ativas, mas cerca de 80% do material total é recuperado como areia, reduzindo a quantidade de rejeitos.

A areia sustentável é economicamente viável em comparação à areia convencional?

Foto: Reprodução/ Vale

Fabio Duarte: Sim, é economicamente viável. Nosso modelo de negócio difere do tradicional, pois, geralmente, para vender um produto no mercado, é necessário ter margens que justifiquem essa comercialização. No nosso caso, obtemos benefícios em duas frentes: primeiramente, geramos lucro financeiro ao vender o material. Além disso, oferecemos uma vantagem indireta para a Vale, que é a redução de riscos e custos associados ao armazenamento desse material nas minas. Com a descontinuação gradual do uso de barragens na mineração brasileira, esse material, que anteriormente seria descartado, agora é empilhado. Eles são misturados a outros componentes, como estéril ou terra seca, e armazenados em grandes pilhas geotécnicas.

Entretanto, essas pilhas ocupam um espaço significativo, limitando a área de exploração da mina. Ao retirar esse material, estamos liberando novas áreas para exploração. Para exemplificar, para cada tonelada de areia que removemos, conseguimos explorar uma quantidade maior de minério de ferro na mina, uma vez que estamos criando espaço útil. Esses dois aspectos nos permitem comercializar a areia a um preço mais acessível e transportá-la para distâncias maiores, ampliando nosso alcance no mercado e possibilitando a venda em regiões mais afastadas do local de origem do material.

Essa areia pode ser utilizada em todas as etapas de uma construção ou existe alguma limitação de uso?

Fabio Duarte: A areia que produzimos é um pouco mais fina do que a areia tradicional disponível no mercado. Investimos fortemente em pesquisa e desenvolvimento para garantir sua utilização nas aplicações tradicionais, como concreto e argamassas, sem comprometer a eficácia. Embora existam limitações quanto ao uso desse material, elas são geralmente de natureza técnica. Durante a construção, o engenheiro civil deve considerar diversos fatores, como a qualidade do produto final e a resistência necessária para suportar diferentes esforços, como compressão, tração e cisalhamento. Esses aspectos são essenciais para garantir a segurança da estrutura.

Além disso, a definição das proporções de materiais, ou “traço”, pode ser ajustada conforme a aplicação, permitindo variações na quantidade de areia fina, areia média, água e cimento. Nossa areia, por ser muito fina, apresenta uma vantagem ao ser misturada em proporções de 40% a 60% com areia média, preenchendo os espaços vazios da mistura. Esse preenchimento reduz a necessidade de água, o que, por sua vez, diminui a quantidade de cimento utilizado, permitindo uma redução de até 5% no consumo de cimento e água, dependendo da mistura. O que varia nessas aplicações são as proporções utilizadas e a técnica de execução do serviço. De modo geral, nossa areia é versátil e pode ser empregada em diversas finalidades, sempre que a aplicação exigir uma areia mais fina.

Falando em redução de cimento, existe o debate sobre a redução do uso desse e de outros materiais devido ao seu impacto ambiental. Como você avalia a relevância dessa discussão para o setor da construção civil?

Fabio Duarte: Muito importante. Existem várias instituições dedicadas a esse tema, como o Ibracon, que é liderado por José Massucato, um renomado especialista na área. Uma das principais metas dele é desenvolver um concreto de baixo carbono. Para atingir essa meta, existem diversas estratégias que permitem essa redução sem comprometer a qualidade do produto final. Isso inclui a utilização de novos materiais, como nossa areia, e a incorporação de geopolímeros, que são ligantes que podem substituir o cimento, amplamente utilizado em vários países que estão buscando a redução de CO2.

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A Vale também tem uma iniciativa semelhante à nossa. Assim como a Agera foi criada, a Vale lançou a Circlua, uma empresa focada em desenvolver geopolímeros a partir de caulinita, encontrada nas camadas de estéril das suas operações. A iniciativa visa aproveitar materiais descartados para criar soluções sustentáveis. Estamos até buscando combinar nossa areia com o geopolímero deles para desenvolver uma argamassa mais sustentável e eficiente para a construção civil.

Estamos buscando transformar o setor, mostrando que é possível operar de forma segura e sustentável, com menor impacto ambiental. O objetivo é que o setor entenda a viabilidade de explorar novos insumos, que já existem, mas precisam de tempo e investimento para serem desenvolvidos. Com Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e apoio de especialistas, podemos usar esses recursos de forma eficiente e promover soluções mais sustentáveis para a indústria.

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Quais são os principais obstáculos para a adoção da areia sustentável no mercado atual?

Fabio Duarte:  O mercado de construção civil é muito conservador e visual. É um setor que é conhecido por ser bastante “touch and feel” [tocar e sentir, em tradução livre], o que significa que os profissionais do setor gostam de ter contato direto com os materiais antes de aprová-los. Eles observam a granulometria, cor, umidade e até o cheiro para avaliar se o material é adequado. Se a areia parece muito escura ou fina, muitos podem duvidar da sua qualidade de imediato. Uma das principais barreiras que enfrentamos é justamente a questão visual. A areia da Agera, por exemplo, proveniente de um processo de mineração, tende a ser mais escura que a areia de rio, o que pode causar estranhamento nos primeiros testes. Além disso, nosso processo de concentração de minério é úmido, o que faz com que a areia tenha um teor de umidade de cerca de 12% ao sair da usina. Embora ela drene por um tempo, esse fator também pode influenciar a percepção inicial de quem vai utilizá-la.

Costumamos informar aos nossos clientes que a umidade da areia varia de 5% a 8%, embora ela possa chegar um pouco mais úmida na entrega. Essa diferença pode dificultar a compreensão de que essa umidade não impacta negativamente em seus processos. Além disso, ao introduzir um novo insumo em uma central de concreto, é necessário ajustar a receita utilizada, o que representa uma barreira significativa. Essa adaptação pode exigir modificações na central e, muitas vezes, é necessário passar pela aprovação de um técnico responsável pela validação do material. O setor da construção civil tende a ser bastante conservador: convencer um profissional com 20 ou 30 anos de experiência de que nossa areia é adequada pode ser um desafio.

Qual é a importância da areia sustentável na indústria de construção civil?

Fabio Duarte: O mercado de areia é um ponto muito relevante, porque a areia é o segundo mineral mais comercializado no mundo, perdendo apenas para a água. No Brasil, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), a areia ocupa a segunda posição em valor de mercado, ficando atrás apenas do minério de ferro. Anualmente, o País consome cerca de 300 milhões de toneladas de areia. No entanto, é preocupante que dois terços desse segmento seja considerado irregular. O mercado de areia no Brasil é pouco controlado, dificultando a obtenção de informações precisas sobre o volume comercializado. 

Mas, ao comparar os poucos dados de algumas instituições em relação à areia com os de cimento, que é muito mais monitorado, percebe-se que o consumo de cimento no Brasil supera muito o consumo de areia esperado, com base nas proporções usualmente utilizadas na produção de concreto e argamassa. Essa diferença entre o que é registrado e o que seria o consumo adequado de areia indica a presença de um mercado ilegal. Essa realidade é preocupante, e, na Agera, nossa missão é transformar esse cenário. Cada membro da equipe tem um propósito claro e se compromete a fazer a diferença, refletindo a importância de operar dentro da legalidade e promover práticas sustentáveis no setor. 

Você vê a areia sustentável se tornando um padrão na construção civil nos próximos anos?

Fabio Duarte: Sim, acredito que é uma tendência sem volta. A demanda por materiais sustentáveis está crescendo e, com o tempo, a reciclagem e reutilização de materiais se tornarão necessárias. No entanto, o desafio é grande, pois enfrentamos diversos elementos no mercado. Recentemente, começamos a enviar nosso material para São Paulo, onde o setor é bem organizado. Fomos chamados para uma reunião com uma associação de produtores de areia preocupados com nossa entrada no mercado. Eles questionaram nossa abordagem e expressaram receios de que iríamos dominar o mercado com preços baixos.

Em resumo, saímos dessa reunião com dois novos parceiros de venda. Constatamos que os medos que eles tinham eram, na verdade, criações em suas próprias mentes. Conseguimos transformar essa preocupação em esperança e animação. Agora, temos parceiros interessados em desenvolver o mercado com nosso material, percebendo que o público, especialmente em lugares como São Paulo, começa a exigir mais. Quando alguém se muda para um apartamento, por exemplo, quer saber sobre a pegada de carbono do prédio e os materiais utilizados. Muitos estão dispostos a pagar um pouco mais por um ambiente sustentável. 

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Como você enxerga o futuro da indústria da construção em relação ao uso de materiais sustentáveis como um todo?

Fabio Duarte:  Os materiais sustentáveis ainda são um pouco mais caros, porque há um grupo que os aceita. Mas, em algum momento, isso será necessário, já que os materiais tradicionais vão começar a faltar. Precisaremos reciclar, reaproveitar e reutilizar o que já temos. Morei seis anos em Moçambique e vi de perto a reciclagem por lá; cerca de 60% da siderurgia era feita com materiais reciclados, como metais de equipamentos quebrados, que eram processados para criar vergalhões e vigas para construção. 

Os governos estão incentivando mais as indústrias de reaproveitamento e reciclagem. Portanto, à medida que o tempo passa, precisamos estar preparados com tecnologias para usar esse tipo de material. Para mim, essa tendência está se tornando uma realidade.

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