Arquiteta ativista paquistanesa premiada. Conheça Yasmeen Lari.

Yasmeen Lari, a 1ª arquiteta do Paquistão, transformou a arquitetura em ativismo em prol de comunidades sustentáveis e resilientes.

Por Camila de Lira e Nathalia Ribeiro em 24 de julho de 2023 8 minutos de leitura

yasmeen lari
Foto: © Heritage Foundation of Pakistan


Por Camila de Lira e Nathália Ribeiro

Primeira mulher formada em arquitetura no Paquistão, conselheira da Organização das Nações Unidas (ONU), responsável pelo Zero Carbon Cultural Center, ganhadora de prêmios, construtora de casas carbono zero para mais de 400 mil famílias em pobreza extrema. Yasmeen Lari é tudo isso mesmo. Mas acima de todos os rótulos, ela é uma líder generosa, atenta e consciente, que usa a arquitetura para transformar o mundo a sua volta (casa por casa, pessoa por pessoa).  A laureada profissional deu uma entrevista exclusiva para o Habitability, contando um pouco sobre sua carreira e sua visão de mundo.

“Não podemos ficar sentadas em nossas cadeiras e dizer que está tudo bem, há algo no mundo que não está certo, que não é justo. Sinto que os arquitetos precisam se tornar realmente ativistas, lutar contra as injustiças sociais”, fala Yasmeen. Mas nem sempre sua carreira foi ligada à causa humanitária e à da equidade de gênero

Com 82 anos, Yasmeen diz que “demorou” para encontrar o seu propósito: a “arquitetura ativista”. Foi depois que se aposentou da sua carreira tradicional, em frente a um dos maiores escritórios de arquitetura e construção no Paquistão, que a líder passou a se dedicar ao que agora chama de “barefoot social architecture”. O movimento que literalmente se traduz como “arquitetura social descalça” constrói com bambu, terra e cal, a partir do compartilhamento de informação entre os moradores locais e designers

Os espaços erguidos são completamente carbono zero, resilientes às intempéries do clima paquistanês – como enchentes e terremotos – e dão poder à comunidade: após treinamento, as mulheres das regiões lideram as obras, a partir dos designs feitos por Yasmeen. “Não faço meu trabalho sozinha e nunca estive sozinha. Quero enfatizar isso, eu comecei do zero, mas as pessoas deram a chance”, fala a arquiteta.

“Mais de 50% das pessoas no meu país vivem abaixo da linha da pobreza. Uma vez que você vê isso, não tem como ficar confortável. Não adianta viver em uma bolha. Quando você vê a condição em que as pessoas moram, especialmente as mulheres, é impossível não ver a injustiça social. Olhar para tudo isso também obriga a gente a pensar que não é OK que isso aconteça. A pergunta que deve ficar é: o que eu posso fazer como arquiteta para mudar esse sistema?”, enfatiza Yasmeen.

Raízes em terracota

Formada em Oxford em 1969, Yasmeen conta que teve que desaprender e reaprender os saberes construtivos ao longo da carreira. “Quando você estuda em um curso de arquitetura, você é ensinado a seguir o modelo internacional de design. Além disso, você aprende que precisa criar para aqueles que vão pagar pelos seus projetos, ou seja, para os mais ricos. E eu voltei para o Paquistão com essa mentalidade”, conta.

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O pai de Yasmeen, Zafar-ul-Ahsan Lari, era um “Indian Civil Service” (ICS), um servidor do Império Britânico na Índia. Quando o Estado do Paquistão foi formado, a partir de uma cisão com a Índia em 1947, Ahsan optou por ficar em terras paquistanesas. Por lá, ficou responsável pelas autoridades de desenvolvimento de infraestrutura de Lahore, cidade no norte do país, na região Punjab. 

“O Paquistão se tornou independente quando eu estava crescendo. Eu tinha pouca noção da minha cultura e das minhas tradições quando fui para a faculdade. Depois de estudar fora, eu pensava que as tradições não eram úteis para construir cidades”, relembra a arquiteta.

A perspectiva mudou radicalmente em meados dos anos 1980. Yasmeen e seu marido, o historiador e fotógrafo Suhail Zaheer Lari, criaram a Heritage Foundation of Pakistan. O Instituto tinha como objetivo preservar prédios e locais históricos, como as ruínas de Moenjodaro, civilização que existiu entre 3.300 e 1.300 anos antes de Cristo.

Yasmeen Lari
Ruínas de Moenjodaro

Em Carachi, quinta cidade mais populosa do mundo, localizada no litoral do Paquistão, onde mora atualmente, o projeto ajudou a manter em boas condições fragmentos da história e a criar leis para que pesquisadores pudessem fazer escavações por ali. Há registros de cidades na região visitadas por Alexandre, o Grande. A cidade murada de Lahore, por exemplo, data de 2.000 anos antes de Cristo, com fortificações que ainda são objetos de estudo pelo mundo. 

Mas a fundação ajudou em uma descoberta ainda mais significativa para a arquiteta. Ao conhecer esses lugares, ela percebeu sua conexão com as cidades ancestrais. “Isso me fez perceber que as cidades tradicionais tinham muito mais valor e eram mais resistentes porque eram ligadas às pessoas. Enquanto as cidades que estávamos criando eram muito industriais, com foco nos carros. Não eram vibrantes quanto a dos povoados”, fala.

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Até hoje, as construções ancestrais são fonte de inspiração para pensar em materiais e técnicas. Afinal, paredes de mais de quatro mil anos de idade seguem intactas e “nenhuma delas foi feita com concreto”, brinca.

A ancestralidade também desencadeou um processo de autoconhecimento e identidade. “Essa época foi muito importante não só para reaprender sobre mim mesma, mas para me reconectar com o meu país e as minhas raízes”, diz. 

Chacoalhão para o ativismo

Yasmeen Lari
Foto: © Heritage Foundation of Pakistan

As raízes de Yasmeen fizeram ainda mais sentido quando ela entrou em contato com a população vulnerável do país. O “choque de realidade” para quem cresceu em ambientes privilegiados, foi transformador. “Somos treinados para criar coisas extraordinárias, mas apenas em áreas privilegiadas”, avalia.

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A guinada veio aos poucos. “Fui criada em um ambiente e, de certa forma, permaneci nele quando trabalhava. Meus clientes eram os mesmos, sempre muito ricos, que queriam fazer grandes construções. E eu percebi que estava fazendo sempre as mesmas coisas, apenas servindo o meu ego. Então decidi parar”.

Mas foi diante da “devastação sem tamanho” provocada por um terremoto de magnitude 7,8 no norte do Paquistão, na região da Caxemira, em 2005, que ela soube que tinha que fazer algo. Foram quase 90 mil mortos, 19 mil deles, crianças, mais de cem mil feridos e 3,5 milhões de pessoas afetadas. De acordo com a ONU, o fenômeno dizimou uma geração inteira. 

A experiência em projetos e a pesquisa com construções ancestrais deram a Yasmeen um ativo importante naquele momento: a capacidade de criar casas resistentes a fenômenos como esse para os desabrigados. “Não são os desastres e os terremotos que matam as pessoas, são as construções com concreto, são os prédios que colapsam que matam. Algumas pessoas que moravam nas montanhas morreram porque os escombros de concreto eram muito pesados para retirar e impediram que o resgate chegasse. Se as estruturas fossem mais leves, muita gente estaria a salvo”, diz a arquiteta. 

Sustentável e que se sustenta

Foi quando o “calor do momento” das ajudas internacionais passou que a filosofia do arquiteto descalço surgiu. Yasmeen passou a ensinar metodologias de construção para voluntários, estudantes, artesãos e pessoas das vilas atingidas pelo terremoto.

Foto: © Heritage Foundation of Pakistan

O uso de materiais locais foi um caminho para não só baixar o custo das operações, como também para mesclar os conhecimentos locais ao de design. As primeiras centenas de casas ainda usavam madeira, que logo foi substituída por bambu, por questão de logística. “Acredito que se as pessoas desenvolvem a capacidade por elas mesmas, elas acabam se ajudando. E é importante porque os desastres não vão parar de acontecer. No ano passado, novos terremotos aconteceram e, com o caos climático, vai impactar ainda mais a vida das pessoas que estão abaixo da linha da pobreza”, afirma Yasmeen.

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De mulher pra mulher

No sul da Ásia, onde a cultura ancestral valoriza o cuidado com a família, comunidade e o meio ambiente, as mulheres desempenham um papel essencial. No entanto, o uso milenar de fogueiras a lenha para cozinhar, tem exposto essas mulheres a riscos significativos, resultando em queimaduras e incêndios.

Esses fogões tradicionais também são responsáveis por sérios problemas de saúde, incluindo infecções respiratórias devido à fumaça produzida por meio da queima de combustível fóssil. Além disso, a montagem desses fogões diretamente no chão eleva o perigo de contaminação dos alimentos, tornando-se um fator agravante para casos frequentes de diarreia, sobretudo em crianças. Há, ainda, riscos ambientais, uma vez que a queima de combustíveis fósseis libera gases tóxicos.

Foto: Reprodução/Deezen

Com o seu olhar atento para as necessidades sociais e sensibilidade para as questões femininas, somado ao seu vasto conhecimento das tecnologias locais de construção, Yasmeen desenvolveu uma solução inovadora: um fogão de barro e cal de baixo custo, livre de fumaça e carbono, chamado Chulah, que visa proteger tanto as mulheres como o meio ambiente.  Uma característica marcante da criação é a plataforma elevada de tijolos de barro que sustenta o fogão. Além de proteger o item em áreas propensas a inundações, essa elevação oferece uma estação de trabalho higiênica e bem ventilada para as mulheres que cozinham nas vilas paquistanesas. “Isso não apenas permite que elas cozinhem alimentos limpos e sirvam de maneira agradável à sua família, mas também lhes proporciona muita dignidade, porque não estão mais sentadas no chão onde pode haver sujeira, poeira e animais de todos os tipos”, observa.

Construindo dignidade com as próprias mãos 

Foto: © Heritage Foundation of Pakistan

Em uma iniciativa pioneira, a arquiteta foi além da concepção do objeto e o incorporou no projeto Barefoot Architecture. Através do treinamento adequado por meio do Heritage Foundation e Zero Carbon Cultural Center, as mulheres aprendem a fazer tijolos, casas e construir os Chulahs utilizando materiais naturais disponíveis, como a terra, que podem ser produzidos e processados pelas próprias mulheres, mesmo sem recursos financeiros. Essa abordagem difere das alternativas contemporâneas, muitas vezes dispendiosas e pouco acessíveis às comunidades vulneráveis. 

A ênfase na utilização de práticas indígenas tem sido fundamental para o sucesso do projeto. Mulheres não alfabetizadas são capacitadas com o conhecimento que já detêm, ampliando suas habilidades e proporcionando uma oportunidade única de exercer um papel ativo de melhoria de suas condições de vida e das comunidades em que vivem. 

O projeto, com seu foco na sustentabilidade, empoderamento feminino e preservação cultural, ressalta a importância de abordagens inclusivas e conscientes para promover mudanças positivas no entorno de grupos marginalizados. Para Lari, o Chulah é mais do que um fogão, é uma ferramenta de transformação social. “Isso está ajudando-as a recuperar outro tipo de respeito da sociedade, quer dizer, elas estão simplesmente felizes, porque as crianças não se queimam mais. Eu acho que mais e mais mulheres precisam se juntar, dar as mãos e promover umas às outras”. 

Yasmeen Lari: do Paquistão para o mundo

Foto: Reprodução/RIBA via Twitter

Para quem “nunca construiu nada fora do Paquistão” e diz não ser uma arquiteta internacional, sem “desejo algum de ser”, receber a medalha de ouro do Royal Institute of British Architects (RIBA) foi uma surpresa, especialmente por que, para ela, o trabalho fora do eixo Europa-Estados Unidos é pouco reverenciado. “Estou muito honrada que vocês, do Brasil, estão falando comigo, me fazendo perguntas, porque minha experiência sempre foi apenas no meu país, com os meus compatriotas e com a minha vila”, diz Yasmeen. 

Mas ao, literalmente, construir a equidade em vilas paquistanesas, a arquiteta octagenária inspira todas as partes do mundo a também procurarem por saídas. “Quando a gente encontra soluções para lidar com essas injustiças, o mundo inteiro se abre para a gente. Ainda há muito para ser feito porque, honestamente, quase nada foi feito”, afirma Yasmeen. 

Aos 82 anos, atuando “onde pode e como pode”, ela tem um único sonho: ver 1 milhão de famílias paquistanesas morando em casas resistentes e sustentáveis. “Quero ver essas famílias estabelecidas e nunca mais serem desabrigadas”, diz. Nos seus cálculos, a marca será atingida em seis anos. Um sonho de construir casas, resiliência e consciência, com uma mensagem clara: não importa a origem, cada um tem o poder de ser agente transformador em sua própria comunidade. Um chamado à ação em prol da justiça social, dignidade e sustentabilidade. Afinal, como ela mesma indaga com entusiamo: “Por que não começar um movimento?”.