A relação entre os espaços em que vivemos e nossa saúde mental nunca foi tão evidente. Compreender que a arquitetura pode ser uma aliada no cuidado com o bem-estar emocional tem motivado profissionais da área a pensar soluções que vão além da estética ou da funcionalidade. Luz natural, ventilação cruzada, presença de plantas, áreas verdes e ambientes que respeitam hábitos culturais e afetivos são elementos que, cada vez mais, integram os projetos urbanos e residenciais com o objetivo de tornar a vida nas cidades mais saudável e acolhedora. Para a professora Amanda Saba Ruggiero, do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo (USP), de São Carlos (SP), é papel da arquitetura garantir não apenas as condições físicas adequadas, mas também promover vínculos afetivos e identitários com os espaços. Isso vale tanto para o ambiente doméstico, quanto para hospitais, escolas, ruas e praças.
Ou seja, mais do que uma questão de projeto, trata-se de um desafio político e social. Para Amanda, a construção de ambientes urbanos mais saudáveis e inclusivos passa pela atuação conjunta entre poder público, sociedade civil e instituições de ensino. É necessário desenvolver políticas públicas que incentivem soluções sustentáveis, garantam o acesso democrático aos espaços e fortaleçam a participação cidadã. Afinal, como ela mesma destaca, a arquitetura tem o potencial de transformar não apenas os lugares, mas também as vidas que neles se constroem.
Em um bate-papo com o “Habitability”, Amanda fala sobre os impactos do espaço na saúde emocional, o papel social da arquitetura e os caminhos possíveis para cidades mais acolhedoras. Confira!
Como a arquitetura pode colaborar, na prática, para ambientes que promovam saúde mental e bem-estar?

Amanda Saba Ruggiero: Quando pensamos em arquitetura, é importante lembrar sua definição clássica, presente no tratado “De Architectura”, escrito na Antiguidade Romana pelo arquiteto Vitrúvio. Nele, está a conhecida tríade Utilitas, Firmitas e Venustas, que traduz a relação intrínseca da arquitetura com a sua função e utilidade (utilitas), com a estrutura, estabilidade e durabilidade (firmitas), e com o belo e a beleza (venustas).
Nesse contexto, o livro “A Beleza e o Mármore” (2011), do arquiteto e professor Mario Henrique D’Agostino, publicado pela editora Annablume, é um excelente convite à compreensão da beleza e dos valores fundamentais da arquitetura, desde o Renascimento até os dias atuais. A arquitetura, portanto, é a disciplina que deve conciliar e conferir aos espaços construídos — sejam públicos ou privados, na escala do objeto, da casa, das cidades ou do território — características e valores que promovam o bem-estar das pessoas.
O que uma boa arquitetura deve considerar para promover esse bem-estar?
Amanda Saba Ruggiero: Para promover esse bem-estar e, por consequência, nossa saúde mental, uma boa arquitetura deve necessariamente considerar os aspectos físicos dos espaços: temperatura adequada às atividades realizadas, boa ventilação e iluminação — preferencialmente naturais — além de mobiliário e equipamentos com materiais e ergonomia ajustados às suas funções. Trata-se de um conjunto amplo de saberes técnicos e materiais que devem ser elaborados com cuidado por profissionais capacitados. E, não menos importante, é essencial atentar também aos valores subjetivos, à sensibilidade e aos aspectos culturais e afetivos de cada lugar: costumes, vínculos, valores regionais, memórias, beleza, harmonia e as poéticas do cotidiano que conectam as pessoas aos seus ambientes.
De que forma os elementos naturais, como luz e ventilação, impactam a experiência das pessoas nos espaços?

Amanda Saba Ruggiero: A luz natural é um elemento fundamental para nossa saúde e bem-estar. Nesse sentido, somos privilegiados no Brasil pela abundância de luminosidade, sol e clima tropical ao longo do ano. Há benefícios fisiológicos comprovados para o nosso corpo em relação à luz natural, como a regulação da vitamina D, do ciclo circadiano — ou seja, do nosso relógio biológico, do humor, do sono, da pressão arterial e, consequentemente, de todo o funcionamento do organismo. Portanto, privilegiar ambientes com incidência de luz natural, bem como com ventilação natural, deve ser cada vez mais considerado por arquitetos e por todos os envolvidos na produção da cidade e dos espaços.
É preciso também pensar em políticas públicas com instrumentos legais de incentivo às novas construções. Além dos aspectos ligados ao bem-estar, é necessário considerar o uso de energia, o emprego de fontes renováveis e os efeitos das mudanças climáticas que enfrentamos no planeta. Ou seja, privilegiar o uso de energias limpas e minimizar seu consumo, utilizar mecanismos que potencializem a ventilação natural — como aberturas generosas, ventilação cruzada, uso de brises, cobogós, beirais e telas de sombreamento — são soluções já empregadas e ao alcance de todos. Essas estratégias devem ser adotadas em detrimento de edifícios e ambientes que privilegiam exclusivamente a ventilação e a iluminação artificiais.
A presença de plantas também é um elemento estratégico?

Amanda Saba Ruggiero: A presença de plantas, jardins internos, coberturas e paredes verdes também pode colaborar com os ambientes, trazendo maior frescor e umidade. Em alguns casos, essas soluções auxiliam no sombreamento, na redução da poluição e contribuem para criar uma ambiência natural, com seres vivos, que amplia nossa proximidade com a natureza. Portanto, é preciso lembrar que, além dos edifícios e conjuntos, ao pensar as cidades — suas praças, parques, espaços públicos, ruas e avenidas —, deve-se também considerar a incidência de luz natural, a ventilação e o plantio adequado de espécies arbóreas e plantas, de modo a ampliar nosso contato com espaços que impactam positivamente o bem-estar e a saúde mental.
Qual o papel dos aspectos culturais e sociais no planejamento de ambientes mais saudáveis?
Amanda Saba Ruggiero: As formas de sociabilidade e as especificidades culturais de cada grupo social e comunidade são fundamentais na construção de ambientes mais saudáveis. Afinal, são os usos, as técnicas, os materiais e as relações sociais que moldam os espaços com características próprias para os contextos em que são construídos e habitados. Um bom exemplo são as varandas, típicas das casas em climas tropicais. Elas protegem da incidência direta do sol, criam ambientes mais arejados, oferecem abrigo contra a chuva e contribuem para o conforto térmico das residências, ajudando a amenizar o calor. Da mesma forma, os beirais largos — prolongamentos das coberturas — protegem as paredes da chuva e sombreiam as aberturas.
Quais outras soluções construtivas tradicionais contribuem para ambientes mais saudáveis?
Amanda Saba Ruggiero: Os porões presentes em casas antigas também revelam sabedoria arquitetônica: ao elevar o piso do solo, permitem a ventilação da parte inferior da casa e evitam o contato direto com a umidade. Nos espaços internos, especialmente em regiões mais quentes do País, a prática indígena de dormir em redes segue presente — tanto nos cômodos, quanto em varandas e alpendres.
Podemos ainda destacar os pátios internos, típicos da arquitetura antiga de culturas árabes, islâmicas e mediterrâneas, que funcionam como núcleos de ventilação, iluminação e convivência. Igualmente importantes são os espaços das casas e dos quintais das comunidades negras no interior de São Paulo, reconhecidos como territórios de resistência, subsistência e sociabilidade — verdadeiros quilombos urbanos — como apontam pesquisas recentes da pesquisadora Joana D’Arc de Oliveira.
Nas cidades, os hábitos culturais e sociais também devem ser considerados no planejamento urbano: o uso e o desenho das ruas, as formas de convivência nos espaços públicos, como encontros em praças e parques, eventos festivos e desfiles. Para que esses espaços cumpram seus papeis social e cultural, é essencial que o planejamento esteja em sintonia e equilíbrio com os costumes e práticas de quem irá utilizá-los.
Em que medida a flexibilidade e a capacidade de adaptação dos espaços são relevantes para atender diferentes necessidades ao longo do tempo?
Amanda Saba Ruggiero: Os ambientes devem se adaptar às necessidades das pessoas, apresentando flexibilidade para mudanças ao longo do tempo. Podemos pensar desde os espaços privados, como as casas. Muitas pessoas vivenciaram recentemente a experiência do trabalho remoto e, com isso, casas e apartamentos precisaram se adequar para abrigar uma mesa de trabalho com cadeira, iluminação adequada e pontos de energia.
Nossas cidades enfrentam grandes desafios nesse sentido e devem se preparar para as novas condições climáticas, considerando a segurança, a saúde e o bem-estar da população. É necessário, por exemplo, promover mudanças nas formas de deslocamento e mobilidade, permitindo diferentes meios de transporte — do caminhar seguro ao uso de bicicletas, passando pela ampliação e qualificação do transporte público.
Vivemos a urgência de qualificar, ampliar e manter os espaços verdes urbanos como lugares de convivência, criando praças, parques, áreas de lazer, espaços para brincar e praticar esportes — assim como espaços de deleite e silêncio, como os jardins. A ampliação das áreas permeáveis ajuda a reduzir o volume e a velocidade da água que percorre o asfalto, com soluções como os chamados jardins de chuva, que minimizam os impactos das enchentes e os altos volumes de água que, ano após ano, provocam grandes tragédias nas cidades contemporâneas.
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A arborização urbana também contribui para amenizar os efeitos das ilhas de calor, criando ambientes mais frescos e agradáveis durante os períodos de altas temperaturas. Dessa forma, as chamadas Soluções baseadas na Natureza (SbN), na escala do lote, da quadra e dos bairros, devem ser adotadas e ampliadas, interferindo positivamente no ambiente urbano e permitindo cidades mais seguras e resilientes.
Portanto, falamos em flexibilidade e capacidade de adaptação em todas as escalas — do espaço privado ao espaço público — e em todos os níveis, envolvendo grupos sociais e instituições como o poder público, empresários, empreendedores e todos os cidadãos que, de alguma forma, participam da produção da cidade e da vida urbana.
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Quais aprendizados projetos como os hospitais da Rede Sarah, reconhecidos como exemplo de arquitetura favorável à saúde mental, trazem sobre ambientes institucionais mais acolhedores?

Amanda Saba Ruggiero: O projeto do arquiteto João Filgueiras Lima, conhecido por Lelé, para a rede Sarah de hospitais é inovador por integrar soluções técnicas e ambientais, utilizando sistemas de ventilação e iluminação natural aliados a elementos pré-fabricados e modulares. Também conecta jardins internos e externos aos espaços de estar e circulação, criando uma atmosfera mais agradável e em sintonia com a natureza.
De forma criativa, o projeto também incorpora os trabalhos do artista plástico Athos Bulcão em paredes, painéis, elementos verticais e mobiliários. Suas composições geométricas, coloridas e vibrantes trazem leveza e sensibilidade ao ambiente, contribuindo para uma experiência mais lúdica e acolhedora.
Ambientes institucionais, especialmente os hospitais, devem ser mais receptivos e humanizados, considerando que atendem pessoas em situação de alta vulnerabilidade física e emocional. Essa lógica também se aplica a escolas, creches e espaços de aprendizagem, por reunirem públicos diversos e lidarem com o desafio coletivo da educação. O mesmo vale para espaços culturais, museus, áreas de lazer, práticas esportivas e locais de atendimento ao público em geral — todos devem ser pensados com empatia, acessibilidade e qualidade de vida.
Como o desenho das cidades pode contribuir para a saúde mental da população?

Amanda Saba Ruggiero: A cidade deve ser gentil com seus cidadãos. E gentileza significa garantir circulação livre, deslocamento seguro, agradável e acessível para todos os corpos — pedestres, ciclistas ou motoristas. A saúde mental está diretamente ligada à sociabilidade: a cidade precisa possibilitar encontros, convivência, brincadeiras, jogos e momentos de contemplação. Ela deve acolher a diversidade social, promovendo a convivência pacífica entre diferentes grupos e comunidades, a interação entre gerações e a coexistência de múltiplas formas de lazer: do lúdico ao contemplativo, do ruído ao silêncio, respeitando diferentes maneiras de estar e habitar o mundo.
A cidade deve incentivar o movimento, o exercício livre e seguro, a prática de esportes, oferecendo vias, parques, praças e espaços comuns bem planejados. Deve, também, aproximar as pessoas da natureza: cursos d’água, rios e lagos, áreas verdes e parques devem ser acessíveis, enquanto ruas arborizadas e sombreadas ajudam a manter o solo permeável, amenizar temperaturas e regular o clima.
A diversidade e a democracia dos espaços públicos precisam ser garantidas para que encontros, festas, manifestações artísticas e políticas ocorram de forma pacífica e igualitária, reduzindo cada vez mais a segregação socioespacial.
Medidas como diminuir a circulação de veículos, reduzir a velocidade dos automóveis e priorizar vias mais lentas e seguras contribuem para menos ruído e poluição, promovendo qualidade de vida — e, consequentemente, bem-estar e saúde mental para todos.
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Quais desafios existem para incluir a perspectiva do bem-estar mental nas políticas públicas de urbanismo e arquitetura?
Amanda Saba Ruggiero: Os desafios são muitos e diversos, e se manifestam desde a formulação até a implementação e gestão das políticas públicas. De um lado, observamos a dificuldade dos gestores em planejar, executar e manter os espaços públicos e comuns, como parques, praças e passeios. De outro, vemos o avanço de iniciativas que visam à privatização da gestão desses espaços — o que nem sempre resulta em melhorias ou em maior acesso. Muitas vezes, essas ações descaracterizam os ambientes e aprofundam a segregação social, seja pela cobrança de serviços, seja pela priorização de determinados grupos.
O desafio também passa pela construção conjunta entre poder público e sociedade de novos modelos de gestão, com mecanismos de participação popular inovadores, que garantam a qualidade, a manutenção dos equipamentos públicos e o acesso democrático a esses espaços. É um caminho longo e contínuo, que deve ser trilhado por todos nós por meio de ações cotidianas e de uma atuação política consciente e resiliente — pautada na crença de que mudanças e transformações são possíveis.
Como a sociedade pode participar do debate e da cobrança por ambientes mais saudáveis e inclusivos?
Amanda Saba Ruggiero: A cobrança da sociedade é fundamental e deve estar articulada em todas as instâncias públicas e administrativas, tanto no poder executivoquanto no legislativo. De um lado, a sociedade organizada, por meio de conselhos, associações de bairro e grupos escolares locais, deve estar presente e em diálogo com a gestão municipal, os legisladores e dirigentes, ao reivindicar seus direitos, seja no protagonismo na elaboração de programas e demandas, seja na fiscalização e zeladoria dos espaços públicos.
O dever de cuidado com o bem comum é de todos. Por isso, é essencial educar para o pertencimento e o conhecimento do que é público, bem como respeitar os direitos e deveres do coletivo. Nesse sentido, uma linha importante de ação é a educação para uma cidadania ativa e participativa, por meio de iniciativas institucionais contínuas, incentivadas e garantidas pela sociedade. Trata-se, portanto, de um trabalho necessário, em múltiplas frentes, que deve ser exercido nas comunidades locais — nos bairros, municípios, estados e no governo federal. Nesse contexto, as universidades públicas podem — e devem — assumir um papel protagonista, atuando como mediadoras na identificação, apoio e fortalecimento dessas ações.
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