Cidades resilientes: resistência e adaptação às adversidades

Reconhecidas internacionalmente, Santos e Campinas mostram que o caminho para cidades resilientes é o aparente paradoxo entre o simples e o complexo.

Por Redação em 15 de fevereiro de 2024 6 minutos de leitura

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Foto: Divulgação/ Prefeitura de São Borja

Entre janeiro e setembro de 2023, os danos decorrentes de eventos naturais no Brasil totalizam US$ 555 milhões. Somente as intensas chuvas no Rio Grande do Sul, em junho, foram responsáveis por US$ 205 milhões. O fato de cerca de 4 milhões de pessoas viverem em áreas de risco, completamente expostas a adversidades climáticas, mostra que a realidade pode ser ainda pior. Ser capaz de enfrentar e superar os desafios inerentes a esse cenário com a agilidade que a urgência da situação pede implica em cidades resilientes.

A urgência do tema fez a Organização das Nações Unidas (ONU) lançar a iniciativa global “Construindo Cidades Resilientes” com o propósito de sensibilizar autoridades governamentais e cidadãos acerca da importância em fortalecer as cidades diante de situações adversas e desastres. Mais de uma década depois, o tema continua em pauta, com ainda mais ênfase.

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Construindo cidades resilientes e adaptáveis

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Conforme definida pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), resiliência urbana é à aptidão de um sistema urbano para absorver, recuperar-se e se preparar diante de eventos adversos futuros. Ela representa a capacidade das cidades de adaptar-se ou transformar rapidamente suas funções diante de perturbações que possam limitar suas possibilidades. Por isso, o programa da ONU busca promover a conscientização sobre a importância de implementar medidas preventivas e estratégias resilientes. 

Marcada por um histórico de desastres naturais, Santos, no litoral paulista, participa ativamente da iniciativa desde 2013, sendo atualmente reconhecida como uma das cidades mais avançadas do Brasil em termos de resiliência urbana.

Em 2015, a cidade deu início aos estudos que originaram, de forma pioneira, o Plano Municipal de Mudanças Climáticas de Santos (PMMCS). Para se ter uma ideia do ineditismo da ação, o Plano Nacional de Adaptações à Mudança Climática elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), por exemplo, foi lançado apenas em maio de 2016.

O plano abarca desde instrumentos econômicos, financeiros e fiscais para promover ações e programas voltados à sustentabilidade, até ações visando à mitigação e à adaptação. O desenvolvimento de uma base de dados a partir da implantação de monitoramento contínuo em áreas costeiras é uma dessas ações, viabilizando tomada de decisões informadas.

Segundo consta no plano, fomentar a proteção e recuperação de ecossistemas naturais e capacitar a população para enfrentar situações de risco emergem como estratégias chave. Por isso, a participação ativa da sociedade civil, organizações não governamentais (ONGs) e universidades nos processos consultivos e deliberativos relacionados às mudanças climáticas é enfatizada, reforçando a importância da colaboração ampla na busca por soluções efetivas.

A partir de 2021 a cidade passou também a integrar a iniciativa “Municípios Paulistas Resilientes”, lançada pelo estado de São Paulo. O projeto, abrangendo toda a Baixada Santista e mais 13 cidades do estado de São Paulo, propõe oferecer capacitações aos municípios para a elaboração de seus planos de adaptação climática. Visa também utilizar a rede de dados estadual para facilitar a compreensão das vulnerabilidades climáticas, especialmente relacionadas a eventos extremos, como chuva e temperatura.

A iniciativa recebe o respaldo da Agência de Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ). A disponibilização personalizada de informações, permitindo que as regiões desenvolvam planos específicos para lidar com os impactos da mudança climática, representa uma abordagem inovadora no contexto brasileiro. A expectativa é estender essas ações para 645 municípios nos próximos anos.

Por meio do projeto, as prefeituras têm a oportunidade de padronizar e compartilhar suas bases de dados, identificando suas vulnerabilidades, tais como riscos de deslizamento e problemas na rede de drenagem, entre outros desafios e, assim, conseguirem suporte para desenvolver seus planos estratégicos.

Boas práticas, do interior paulista para o mundo

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Além de Santos, Campinas/SP é outra integrante do programa internacional da ONU e destaca-se como uma das cidades brasileiras que tem concentrado esforços na busca pela inteligência e resiliência. 

A Administração Municipal de Campinas, por exemplo, investiu em medidas preventivas, incluindo a aquisição de sensores de alerta, com a instalação de 36 desses dispositivos em áreas suscetíveis a inundações. Cada sensor está conectado a um dispositivo eletrônico na residência de um agente comunitário que foi capacitado para a função.

Outra medida eficaz foi a realocação de famílias em moradias dignas, resultando em uma redução de 64% no número de residentes em zonas de risco. Essas ações, custeadas por diversas fontes do Orçamento Municipal, incluindo a arrecadação do IPTU, têm garantido financiamento estável.

O êxito dessas iniciativas chamou a atenção do Escritório de Estratégia para Redução de Desastres Naturais da ONU. Em 2013, Campinas conquistou a distinção de ser o primeiro município do Brasil certificado como cidade modelo de boas práticas na construção de resiliência e redução de riscos de desastres.

Os esforços da cidade continuam sendo destaque. Em 2022, Campinas foi reconhecida como o 1ª Centro de Resiliência do Brasil, pelo Comitê de Coordenação Global da Iniciativa Construindo Cidades Resilientes e Escritório das Nações Unidas para Redução de Desastres. Primeiro lugar no ranking Connected Smart Cities 2019, também foi laureada com o Prêmio Sasakawa das Nações Unidas para a Redução de Desastres, tendo mais um reconhecimento de sua posição como uma das cidades mais resilientes do mundo.

Assim, Campinas integra um grupo seleto de centros de resiliência, composto por oito cidades de diversas nações, como Coreia, Suécia, Espanha, Itália, Inglaterra, México, Colômbia e Brasil. A meta para o próximo triênio é que esse conjunto de cidades trabalhem em conjunto para aprimorar a colaboração entre elas, visando capacitar outras comunidades a desenvolverem mais resiliência diante de desastres.

Simples e complexo

Os desafios ambientais enfrentados nas cidades são, em grande medida, consequência dos processos acelerados, intensos e, por vezes, desordenados de urbanização, que resultam em complexas ramificações, espaços diferenciados, segmentados e vulneráveis.

Falta de saneamento básico, o descarte inadequado de resíduos sólidos e a localização inadequada de residências são exemplos representativos dos inúmeros desafios de planejamento urbano que impactam as populações, sobretudo aquelas com menor renda.

Essas características são evidentes em sociedades contemporâneas de países em desenvolvimento, como o Brasil, conforme destacado em um artigo na revista do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território.

Para o sociólogo alemão Ulrich Beck, autor do livro “Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade”, a falta de planejamento urbano se apresenta como um dos fatores que tornam as cidades e suas populações mais vulneráveis.

Se por um lado, reverter essa lógica seja um desafio complexo que passa por questões históricas e culturais, construir resiliência pode (e deve!) ser mais simples, embora isso não signifique ser fácil.

Para o especialista em Avaliação de Impactos Ambientais, Érick Mota, em participação no episódio 47 do podcast Habitability, é preciso identificar as infraestruturas críticas da cidade. Para ele, a cidade é um organismo vivo, com diversos elementos interligados, como energia, transporte e habitação. A garantia de que esses aspectos não falhem em momentos de estresse é fundamental. Isso implica na necessidade de comunicação efetiva com a população desde o início do planejamento.

Érick Mota

Mota pontua que não basta simplesmente enviar mensagens de texto ou acionar alarmes nos bairros. Há uma necessidade de construir uma percepção coletiva na população, envolvendo-a ativamente no processo. Isso significa promover a participação ativa da comunidade, educando-a sobre os riscos ambientais e capacitando-a a identificar sinais precoces de possíveis desastres. 

A cidade de Santos, por exemplo, destaca-se como uma das cidades mais adiantadas do país ao adotar medidas proativas diante das tempestades extremas, reconhecendo a importância do diálogo com a população. No início de 2022, a Secretaria de Meio Ambiente de Santos apresentou um Plano de Ação Climática (PACS), um marco significativo na resposta aos desafios climáticos. Este plano delineia 50 metas a serem alcançadas no período entre 2025 e 2050. Sua elaboração foi fruto de uma colaboração efetiva entre o governo local, organizações não governamentais e, especialmente, representantes da comunidade.

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Agostinho Tadashi Ogura

O analista e gestor de riscos e ex-pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Agostinho Tadashi Ogura, mesmo tendo uma longa carreira em inovação e tecnologia, valida e enriquece essa abordagem de Mota ao ressaltar que não são necessárias grandes inovações.

Foto: Reprodução/ Mose Venezia

Como exemplo dessa perspectiva, ele destaca o projeto Mose, implementado em Veneza, na Itália. Este projeto utiliza uma engenharia já consagrada – as comportas – para prevenir inundações em uma cidade localizada ao nível do mar, uma região naturalmente propensa a riscos. “Trabalhar com barreiras hidráulicas e comportas é uma prática ancestral. A verdadeira complexidade reside na urgência de realizar obras de engenharia em tempo hábil para mitigar ao máximo os prejuízos, uma vez que os eventos já estão em curso“, alerta Ogura.