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Arquitetura flutuante: de ficção à necessidade
Assentamentos que flutuam sobre as águas são possíveis soluções para as mudanças climáticas e a elevação dos mares.
Por
Paula Maria Prado em 6 de março de 2024 6minutos de leitura
Foto: OCEANIX/BIG-Bjarke Ingels Group.
Uma mesa redonda promovida pelas Nações Unidas sobre questões de assentamentos humanos deu o que falar: investidores, cientistas e especialistas debatiam sobre cidades flutuantes e autossustentáveis. Coisa de ficção científica? Diante da previsão de que, em 2050, 90% das megacidades do mundo estarão expostas à elevação dos mares, a resposta é não! A arquitetura flutuante está aí para provar. “Estamos prontos para iniciar um diálogo sobre Cidades Flutuantes Sustentáveis para o benefício de todas as pessoas”, cravou Maimunah Mohd Sharif, diretora-executiva da ONU-Habitat e subsecretária-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em declaração à “IFLScience”.
O ano era 2019, quando o mundo conheceu o “Oceanix”, projeto de cidade flutuante revelado na época, concebido pela agência de arquitetura BIG-Bjarke Ingels, considerado o primeiro protótipo do tipo no mundo. Conceitual, o projeto de arquitetura flutuante é constituído por várias plataformas hexagonais conectadas, como um grande arquipélago ancorado no fundo do mar. Combinadas, elas totalizaram 6,3 hectares e poderiam abrigar até 12 mil pessoas, com potencial de expansão para mais de 100 mil residentes.
Nele, cada bairro é projetado para servir a um propósito específico. As plataformas são acompanhadas de painéis fotovoltaicos e estufas para que os moradores produzam seus próprios alimentos, tanto em áreas de cultivo (hortas e pomares na superfície) quanto em dispositivos submersos (frutos do mar e algas). A água potável é obtida por processos de dessalinização da água do mar, técnica atualmente empregada em mais de 100 países do mundo.
O projeto está ancorado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e já tem destino: Busan, considerada a segunda maior cidade da República da Coreia, com 3,4 milhões de habitantes. Espera-se que a Oceanix Busan esteja pronta antes de 2030 e possa abrigar refugiados climáticos. “Nossas cidades são adaptáveis, escaláveis e reconfiguráveis para atender às necessidades em evolução. Estamos aprendendo tanto com a natureza quanto com as pessoas. Os hexágonos centrais no design da plataforma são inspirados na capacidade das abelhas de fazer uso eficiente do espaço usando o mínimo de recursos. Aprendemos com iniciativas sustentáveis em todo o mundo e com as comunidades existentes que vivem e prosperam no oceano”, informa comunicado da Oceanix.
Dados divulgados pela ONU revelam que duas a cada cinco pessoas no mundo vivem em um raio de 100 quilômetros da Costa. Com o lento progresso no combate ao aquecimento global, a escassez de terras, que deve elevar os custos da habitação, e as inundações, que devem resultar em deslocamentos em massa e destruição de casas e infraestrutura, soluções não convencionais não podem mais ser desconsideradas.
Adaptação às mudanças climáticas; otimização do uso do solo e crescimento urbano; resiliência a desastres naturais e sustentabilidade ambiental são alguns dos pilares que, segundo a arquiteta Nayara Pires, impulsionam o interesse nesse tipo de arquitetura que dá origem às cidades flutuantes. Coordenadora dos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores da Unifio – Ourinhos, a profissional é autora do livro “Flexibilidade: arquitetura em movimento”, que parte do termo flexibilidade e se aprofunda em seus sinônimos – adaptabilidade e polivalência, modulação, mobilidade, arquitetura remontável, multifuncionalidade e elasticidade – e como são aplicados na construção arquitetônica.
“Após compreender seu significado e características desde os primórdios até os dias atuais, dirigi meu foco para os estudos relacionados a construções sobre as águas. Acreditei ser um exemplo notável de construção sustentável, capaz de atender especialmente às comunidades ribeirinhas. Essa incursão nos estudos dessas estruturas flutuantes ressalta não apenas a importância da flexibilidade na arquitetura, bem como também a sua aplicação prática em soluções inovadoras e sustentáveis para atender às necessidades habitacionais de maneira adaptável e consciente”, afirma.
As comunidades ribeirinhas também são tema de estudo de Danielle Khoury Gregorio, destaque na lista “Forbes Under 30” (2022). Para ela, o futuro da arquitetura envolve a criação de estruturas cada vez mais adaptadas às características específicas de cada região, paisagens e clima. “Imagino uma arquitetura menos global e mais local, que valorize a cultura, além de utilizar racionalmente os recursos naturais da região, impulsionando a economia local”, afirma.
É dela o premiado projeto “Sobre as Águas da Amazônia – Habitação e Cultura Ribeirinha”, que consiste em um conjunto habitacional em Manaus/AM, voltado para populações ribeirinhas que vivem em situação de vulnerabilidade, produzido na ocasião de sua graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Seu trabalho levou o primeiro lugar no Prêmio Enanparq 2020 Brasília e no IE School of Architecture and Design Prize (Madri).
Segundo a profissional, no caso dessas comunidades, a construção sobre as águas, ou seja, o modelo de cidades flutuantes, surge como uma opção eficaz à paisagem local, uma vez que o rio é fonte vital de subsistência e renda, além de possuir papel fundamental na organização espacial humana na região. “A facilidade de transporte por barcos e canoas nas margens dos rios, em contraste com as dificuldades de locomoção por trilhas na densa mata do interior da floresta, é um dos principais motivos para o desenvolvimento da vida em áreas de várzea”, explica.
Assim, por necessidade, essas comunidades desenvolveram uma arquitetura resiliente às inundações, um conhecimento valioso que, segundo Danielle, podemos aplicar. “Em um mundo cada vez mais sujeito a cheias e inundações frequentes devido às mudanças climáticas, aprender com a adaptabilidade dos ribeirinhos é uma oportunidade para criar espaços que melhor se ajustem a esses desafios ambientais”.
No entanto, as cidades flutuantes têm seus desafios, uma vez que a preservação da vida aquática deve ser considerada, bem como a estabilidade e a segurança das estruturas.
Vida marinha preservada
Para as arquitetas, dosar a construção e habitação sobre as águas com a poluição dos lagos requer uma abordagem integrada. É crucial, por exemplo, considerar os impactos desse tipo de construção e amenizá-los antes de iniciar o projeto, com implementação de sistemas eficazes de gestão de resíduos para construções, abrangendo coleta, separação e disposição adequada de sólidos.
Também é fundamental evitar o descarte direto de resíduos na água, promovendo conscientização e educação nas comunidades sobre práticas de descarte responsáveis; e garantir o tratamento de águas com a utilização de sistemas eficientes para as águas, com a instalação de sistemas de tratamento de esgoto compactos e ecologicamente corretos.
“A implementação de restrições de zoneamento e regulamentações ambientais é essencial, bem como programas de monitoramento ambiental contínuo devem ser estabelecidos para avaliar o impacto das construções flutuantes no lago ao longo do tempo”, destaca a arquiteta Nayara Pires.
A instabilidade causada por mudanças nas condições das águas, ventos fortes e ondas é outro desafio enfrentado por projetos de estruturas flutuantes. Bem como variações nos níveis da água e a garantia da durabilidade dessas construções, considerando a degradação natural dos materiais ao longo do tempo.
“Atualmente, ainda não dispomos de tecnologias avançadas que permitam a localização de construções flutuantes em mares violentos. As estruturas flutuantes são viáveis principalmente em áreas mais calmas, onde as condições do ambiente aquático são menos adversas. O progresso na arquitetura flutuante está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento tecnológico e à busca contínua por soluções inovadoras que permitam a adaptação a ambientes marinhos mais desafiadores no futuro”, defende a arquiteta.
Conhecimento ancestral
A escolha de materiais de construção sustentáveis é uma medida importante para minimizar o impacto ambiental durante a construção e ao longo da vida útil da estrutura. Hoje, a construção modular em madeira não é a única opção para casas sobre as águas, ainda que seja uma escolha popular e sustentável. “Em comunidades tradicionais, observamos um conhecimento construtivo transmitido de geração em geração, aprimorando-se ao longo do tempo. Pessoas nessas comunidades possuem habilidades sólidas no uso de materiais locais, especialmente a madeira, sabendo como aplicá-la da melhor forma para o território em que vivem há anos”, afirma Danielle Khoury Gregorio.
Ainda segundo ela, o estudo da arquitetura tradicional revela lições engenhosas, por exemplo, sobre o uso apropriado de recursos locais. Duas tipologias principais podem ser identificadas: as palafitas (construções elevadas sobre pilares e que exigem considerações detalhadas sobre o solo, forças das correntes e níveis de cheias) e os flutuantes (sobre toras de assacu, madeira local de baixa densidade que funciona como boias).
Tais construções ribeirinhas destacam a importância da adaptação, sustentabilidade, resiliência e integração harmoniosa com o meio ambiente na criação de estruturas que atendam às demandas atuais. “Ao compreender e incorporar esses princípios na arquitetura contemporânea, é possível desenvolver construções sobre as águas que respeitem o entorno natural, sejam eficientes e sustentáveis, ao mesmo tempo em que o preserva.
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