Danielle Khoury Gregorio: arquitetura vernacular mostra que temos muito a aprender

Destaque da ‘Forbes Under 30’, Danielle Khoury Gregorio defende integração entre conhecimento tradicional e novas tecnologias para uma arquitetura adaptadas às condições locais.

Por Paula Maria Prado em 20 de fevereiro de 2024 8 minutos de leitura

arquitetura vernacular
Foto: Divulgação

Uma integração mais harmoniosa entre o ambiente construído e as comunidades que o habitam. Esta é a máxima que norteia cada projeto elaborado pela arquiteta Danielle Khoury Gregorio, inspirada pela arquitetura vernacular. Considerada um dos talentos mais promissores da nova geração de profissionais da área no Brasil, é dela o premiado projeto “Sobre as Águas da Amazônia – Habitação e Cultura Ribeirinha”, acerca da arquitetura tradicional dos povos ribeirinhos da Amazônia. O estudo, com a elaboração de uma habitação social, rendeu a ela prêmios nacionais e internacionais, o destaque da lista “Forbes Under 30” 2022 na categoria “Arquitetura e Design” e uma certeza: temos muito a aprender com as comunidades tradicionais.

Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP), foi por lá que se interessou sobre a harmonia das construções tradicionais com a paisagem e decidiu se aprofundar no assunto. No entanto, sua trajetória na arquitetura começou a se desenhar antes do vestibular, durante algumas viagens, quando percebeu que as emoções positivas e a fascinação que sentia por cada cidade por onde passava se devia à arquitetura e ao impacto transformador que ela possui, moldando os cenários nos quais vivemos. “Essa percepção do poder da arquitetura em influenciar positivamente a existência das pessoas motivou minha decisão de me tornar uma arquiteta”, conta.

Danielle coleciona no currículo passagens em escritórios como Andrade Morettin Arquitetos Associados, KAAN Architecten (Holanda) e Weindel Architekten GBr (Alemanha). Hoje é sócia de sua irmã, Raquel Khoury Gregorio, no Estúdio Khoury Arquitetura, onde segue à risca tudo o que tem aprendido ao longo da sua trajetória profissional. Nesta entrevista, ela nos conta sobre suas pesquisas e como espera que seja o futuro da arquitetura no mundo. Confira!

Falando sobre seu trabalho a respeito das comunidades ribeirinhas, de que forma a arquitetura vernacular, ou melhor, os sistemas construtivos de povos ancestrais podem ajudar a arquitetura a entender os caminhos para as atuais construções sobre as águas? 

Danielle Khoury Gregorio: essas comunidades possuem um conhecimento profundo sobre a paisagem que habitam, desenvolvendo e aperfeiçoando ao longo de gerações suas técnicas de construção em áreas alagadas. O estudo da arquitetura tradicional revela lições engenhosas, por exemplo, sobre o uso apropriado dos recursos locais. Essa prática destaca a eficiência em utilizar racionalmente os recursos disponíveis, minimizando o impacto ambiental.

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Habitação ribeirinha em Nhamundá, na Amazônia (Foto: Eduardo Girão / Acervo Museu da Casa Brasileira, 2013)

Nas comunidades tradicionais, identificamos duas tipologias principais de arquitetura: as palafitas e os flutuantes. As palafitas são construções elevadas sobre pilares e exigem considerações detalhadas como tipo de solo, forças das correntes e níveis de cheias para sua construção. Já os flutuantes são construídos sobre toras de assacu, uma madeira local de baixa densidade que funciona como boia.

Essas lições destacam a importância da adaptação, sustentabilidade, resiliência e integração harmoniosa com o meio ambiente na criação de estruturas que atendam às demandas atuais. Ao compreender e incorporar esses princípios na arquitetura contemporânea, é possível desenvolver construções sobre as águas que respeitem o entorno natural, sejam eficientes e sustentáveis, ao mesmo tempo em que preservam a rica herança de conhecimento das comunidades tradicionais.

Aliás, por que construir sobre as águas? Será esse o nosso futuro uma vez que o nível dos oceanos está subindo?

Danielle Khoury Gregorio: no caso das comunidades ribeirinhas, a construção sobre as águas surge como a opção mais eficaz para a paisagem local. A proximidade com o rio é enraizada em questões históricas e culturais. Além de ser uma fonte vital de subsistência e renda, o rio possui um papel fundamental na organização espacial humana na região. A facilidade de transporte por barcos e canoas nas margens dos rios, em contraste com as dificuldades de locomoção por trilhas na densa mata do interior da floresta, é um dos principais motivos para o desenvolvimento da vida em áreas de várzea. 

Então, por necessidade, essas comunidades desenvolveram uma arquitetura resiliente às inundações, um conhecimento valioso que podemos aplicar. Em um mundo cada vez mais sujeito a cheias e inundações frequentes devido às mudanças climáticas, aprender com a adaptabilidade dos ribeirinhos é uma oportunidade para criar espaços que melhor se ajustem a esses desafios ambientais.

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Quais os desafios da arquitetura flutuante hoje? 

Danielle Khoury Gregorio: a construção de flutuantes demanda atenção a diversos fatores. Um deles é a distribuição equitativa dos pesos, provenientes de móveis e paredes, ao longo da casa para garantir o nivelamento adequado. 

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Foto: Reprodução / Sobre as águas da Amazônia – Habitação e Cultura Ribeirinha

Garantir a estabilidade e segurança das estruturas flutuantes representa outro desafio significativo. Essas construções precisam resistir a condições climáticas adversas, incluindo tempestades e ondas, sem comprometer a integridade estrutural. Todas as residências contam com âncoras para assegurar sua fixação, no entanto, o ideal é buscar locais onde as águas são mais calmas, a fim de evitar movimentações mais intensas. 

Além disso, o desenvolvimento de infraestrutura adequada, como sistemas de abastecimento de água, tratamento de esgoto e fornecimento de energia, é um desafio que demanda atenção especial.

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E no caso das palafitas, quais os riscos, no seu ponto de vista? 

Danielle Khoury Gregorio: existem cenários bastante distintos que merecem destaque. Em comunidades tradicionais, observamos um conhecimento construtivo transmitido de geração em geração, aprimorando-se ao longo do tempo. Pessoas nessas comunidades possuem habilidades sólidas no uso de materiais locais, especialmente a madeira, sabendo como aplicá-la da melhor forma para o território em que vivem há anos.

No entanto, quando nos voltamos para cenários urbanos, a situação se transforma. O acesso a materiais de construção na cidade é dispendioso, contrastando com a disponibilidade de recursos naturais de qualidade em áreas ocupadas por florestas.

Como resultado, as casas urbanas sobre palafitas frequentemente são construídas com restos de construções anteriores ou materiais de baixa qualidade, tornando-as frágeis e inseguras. Essa prática expõe os moradores a riscos constantes de desabamento e incêndio, uma vez que a falta de acesso da população a infraestrutura adequada e materiais construtivos de qualidade os coloca em uma situação de maior vulnerabilidade.

Falando em sustentabilidade, é possível dosar a construção e a habitação sobre as águas com a poluição de lagos e rios?

Danielle Khoury Gregorio: dosar a construção e habitação sobre as águas com a poluição dos lagos requer uma abordagem integrada. O ideal é que a arquitetura seja planejada para minimizar o impacto no ambiente, incorporando sistemas locais eficientes de tratamento de esgoto e implementando métodos de coleta e gestão de resíduos. Além disso, é fundamental promover a educação ambiental para a população local, conscientizando-a sobre a importância da preservação ambiental e práticas sustentáveis.

Você acha que o interesse pela arquitetura desenvolvida pelas comunidades tradicionais ao longo das gerações (arquitetura vernacular) tem aumentado entre profissionais da área?

Danielle Khoury Gregorio: Embora o conceito em si não seja novo, nas últimas décadas observou-se um crescente interesse por parte de alguns arquitetos em estudar a fundo as estratégias adotadas por essas comunidades.

Diferentemente da arquitetura convencional projetada por arquitetos, a vernacular emerge organicamente, transmitida de forma prática entre as pessoas ao longo do tempo. Ao longo dos séculos, diversas comunidades ao redor do mundo cultivaram estilos arquitetônicos distintos, adaptando-os às condições climáticas, disponibilidade de materiais e necessidades específicas de cada região.

Essa abordagem busca oferecer respostas mais sustentáveis aos desafios locais, ao mesmo tempo em que valoriza a identidade e a cultura locais. Essa convergência de conhecimentos tradicionais e práticas contemporâneas representa um enriquecimento para a arquitetura, permitindo uma integração mais harmoniosa entre o ambiente construído e as comunidades que o habitam.

Você já é formada pela USP, mas segue estudando arquitetura vernacular na Amazônia? 

Danielle Khoury Gregorio: de fato, recebi uma bolsa de pesquisa da Holcim Foundation for Sustainable Construction, parte da premiação pelo meu Trabalho de Conclusão de Curso. Essa bolsa tem possibilitado aprofundar meu estudo sobre a arquitetura vernacular na Amazônia e suas implicações para a arquitetura contemporânea brasileira.

Ao imergir nos estudos com as comunidades tradicionais do estado do Amazonas, identifiquei uma riqueza de técnicas e estratégias desenvolvidas para enfrentar os desafios ambientais locais. A essência dessa arquitetura reside no respeito e sensibilidade às condições geográficas específicas, como o clima e os ciclos das cheias dos rios. Além disso, ela proporciona uma conexão vital entre os seres humanos e o ambiente que habitam.

A arquitetura vernacular local se revelou uma fonte valiosa de conhecimento e inspiração para a arquitetura contemporânea. O estudo aprofundado dessas construções tradicionais oferece lições relevantes para a construção sustentável, permitindo o design de edifícios com maior eficiência energética, menor impacto ambiental e uma melhor integração com as condições locais.

O objetivo não é um retorno nostálgico ao passado, mas sim uma reflexão sobre como o conhecimento tradicional pode ser sinergicamente combinado com as novas tecnologias para desenvolver uma arquitetura mais adaptada às condições locais. É imperativo olhar para a história, cultura, clima e paisagem, desenvolvendo edifícios capazes de enfrentar os desafios intrínsecos de cada região.

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Quais os próximos passos dessa nova pesquisa?

Danielle Khoury Gregorio: o próximo passo da pesquisa visa integrar esses conhecimentos e técnicas à arquitetura contemporânea, especialmente em edifícios destinados às comunidades ribeirinhas urbanas. O resultado dessa pesquisa é a formulação de um conceito para um projeto de habitação social que exemplifica o diálogo entre o conhecimento tradicional e práticas contemporâneas. 

Esse projeto pretende abordar os desafios urgentes de moradia enfrentados por comunidades urbanas ribeirinhas, muitas vezes sujeitas a realocações para projetos padronizados que desconsideram suas tradições culturais únicas e necessidades específicas. Propõe-se uma alternativa baseada em uma perspectiva não hegemônica, representando a aplicação prática das estratégias e lições aprendidas durante a pesquisa.

Além da arquitetura vernacular, você também estuda construções perma circulares pela Bambou Immobilier Groupe. Pode nos explicar o que é essa pesquisa?  

Danielle Khoury Gregorio: a arquitetura perma circular é um tipo de construção que integra os princípios da permacultura, um conceito que busca criar ambientes produtivos e sustentáveis em harmonia com a natureza, associado a princípios de economia circular, onde os recursos são utilizados de maneira eficiente e os resíduos são minimizados.

No âmbito desses estudos, o foco principal foi a investigação de materiais e técnicas construtivas aplicáveis à construção civil, com uma ênfase especial nas práticas empregadas na região franco-suíça. A pesquisa teve uma abordagem direcionada para atender às demandas de uma empresa estrangeira, visando compreender e aplicar as melhores práticas no desenvolvimento de construções perma circulares.

Porém, os estudos têm proporcionado insights relevantes sobre como adaptar essas práticas e técnicas ao contexto brasileiro. Acredito que há potencial para a incorporação desses princípios na construção civil brasileira, contribuindo para edificações mais sustentáveis, eficientes e alinhadas com as demandas ambientais.

Por fim, você conquistou o 1º lugar no Enanparq 2020 Brasília, 1º lugar no IE School of Architecture and Design Prize (Madri), foi destaque no livro “World Arch-Student Best Project Selection Book”, na revista francesa “L’Architecture d’Aujourd’hui” e integra a lista “Forbes Under 30”. Como tudo isso dialoga com aquela menina de anos atrás que sonhava em cursar arquitetura? 

Danielle Khoury Gregorio: estar na lista “Forbes Under 30” foi uma imensa felicidade, pois representa um reconhecimento do trabalho que tenho dedicado à arquitetura ao longo dos anos. É gratificante ver que o que venho construindo desde os primeiros passos na minha carreira está sendo valorizado e reconhecido pela comunidade. É como um sinal de que estou seguindo o caminho certo, e isso me traz motivação para continuar buscando excelência e inovação na minha profissão.

Na área profissional, meu objetivo é expandir ainda mais minha atuação, buscando oportunidades para contribuir de forma positiva para o cenário da arquitetura atual. Isso inclui projetos que tenham um impacto positivo no meio ambiente, promovam o bem-estar das pessoas e abram espaço para novas abordagens e ideias na arquitetura.