Quando o tufão Yagi atingiu Mianmar em setembro de 2024, o impacto foi devastador. Vilarejos inteiros foram submersos pelas águas, milhares de pessoas ficaram desabrigadas e a vulnerabilidade estrutural das comunidades ficou evidente. No entanto, a tragédia deu origem a uma mobilização local, guiada por uma abordagem que vai além da reconstrução física: aposta na capacitação comunitária, na valorização dos saberes tradicionais e no uso estratégico de materiais naturais, como o bambu.
Essa transformação vem sendo conduzida pela segunda fase do programa Myanmar Climate Change Alliance (MCCA2), uma iniciativa liderada pela ONU-Habitat com apoio da União Europeia. O foco está em escolas monásticas da região de Taunggyi, no estado de Shan, onde jovens, professores e artesãos estão sendo capacitados a construir abrigos resilientes utilizando técnicas vernaculares e matérias-primas sustentáveis.
O uso do bambu, nesse contexto, vai muito além do valor simbólico ou cultural. É uma escolha técnica e estratégica. O material é abundante, de rápido crescimento, leve, acessível e altamente resistente a impactos e deformações, características que o tornam ideal para regiões sujeitas a desastres naturais como tufões e enchentes.
Mianmar, aliás, é um dos países mais expostos às mudanças climáticas no Sudeste Asiático. A situação se agrava com o avanço urbano desordenado, a precariedade da infraestrutura e a instabilidade política que se intensificou após o golpe militar de 2021. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), mais de 18 milhões de pessoas precisavam de ajuda humanitária no país até o final de 2023. Nesse cenário, soluções locais e acessíveis se tornaram não apenas viáveis, mas urgentes.
Arquitetura que transforma: saberes locais como resposta aos desastres
Diante desse contexto desafiador, o MCCA2 aposta em um modelo de reconstrução enraizado na autonomia e no protagonismo das comunidades. As oficinas organizadas pela ONU-Habitat ensinam os participantes a projetar e construir estruturas conhecidas como “casas de lâminas”: edificações elevadas, bem ventiladas e capazes de resistir a inundações. O envolvimento direto dos moradores nesse processo tem gerado não apenas melhorias práticas na infraestrutura, mas também um forte senso de pertencimento e autoestima coletiva.
Nas escolas monásticas de Shan, por exemplo, os reflexos dessa transformação são visíveis. Antes vulnerável às chuvas e com acesso precário à água, a Escola Pyinnar Ooyin, que abriga mais de mil alunos, hoje conta com abrigos seguros e um sistema de bombeamento de água alimentado por energia solar.

O impacto disso vai muito além das obras: houve um fortalecimento dos laços comunitários e da confiança nas soluções locais, além de despertar nos jovens a consciência ambiental e o sentimento de pertencimento. Ao participar ativamente da construção dos abrigos, os estudantes desenvolvem habilidades técnicas e passam a valorizar os materiais naturais e a cultura construtiva local, algo que, por muito tempo, foi visto como ultrapassado ou inferior às técnicas ocidentais. “As oficinas mudaram a forma como vemos as casas de bambu e madeira. Agora entendemos sua força e beleza”, afirmou ao portal da ONU Habitat, Nang Kan Bwar, aluna do 12º ano.
Essa mudança de percepção também é relatada por moradores como Ma Aye Aye Khine, artesã e mãe de dois filhos. Ela conta que, até participar do projeto, enxergava o bambu como um material frágil e ultrapassado. Hoje, após ser treinada nas oficinas, reconhece sua força estrutural e valor simbólico como instrumento de proteção e reconstrução.
Mulheres na linha de frente
Em um país onde a construção civil ainda é marcada por uma forte predominância masculina, o programa da ONU tem promovido uma mudança significativa: mulheres estão assumindo papéis centrais na reconstrução de suas comunidades, não apenas como beneficiárias, mas como lideranças ativas e multiplicadoras de conhecimento.
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Nas oficinas, elas são treinadas para atuar como artesãs, carpinteiras e projetistas, aprendendo técnicas avançadas de construção com bambu e madeira. Esse processo tem aberto novas possibilidades profissionais, especialmente para mulheres de comunidades rurais, onde o acesso a oportunidades formais de trabalho e educação é mais limitado.
O impacto vai muito além das obras erguidas. Ao dominarem as técnicas construtivas e contribuírem para a criação de abrigos seguros e sustentáveis, essas mulheres conquistam autonomia econômica, reconhecimento social e fortalecem o tecido comunitário. O saber local, muitas vezes transmitido oralmente entre gerações, ganha novo status quando associado a práticas de arquitetura resiliente e sustentável.
De acordo com a diretora da Escola Monástica Pyinnar Ooyin Daw Nang Kan Kywar o envolvimento das mulheres no projeto foi fundamental para a transformação da instituição. Ela destacou que, antes da intervenção, a falta de instalações adequadas dificultava o aprendizado dos alunos. No entanto, com a implementação de sistemas de água limpa e abrigos mais resistentes, a situação foi significativamente melhorada, proporcionando um ambiente mais seguro e propício ao ensino.
Ao promover o protagonismo feminino, o programa busca romper ciclos históricos de exclusão, impulsionar a igualdade de gênero e mostrar que reconstruir Mianmar vai além de levantar paredes e telhados, trata-se de reconstruir autoestima, pertencimento e confiança no futuro.
Um movimento global pelo bambu
A experiência com bambu não é isolada. Em diversas partes do mundo, esse material tem sido redescoberto como um aliado da arquitetura sustentável, com aplicações que vão desde escolas e moradias até pavilhões de exposições e mobiliário urbano.
Na Indonésia, a Green School Bali tornou-se referência global ao ser construída quase inteiramente com bambu. Integrada à paisagem e inspirada em princípios de design ecológico, a escola é hoje modelo de sustentabilidade educacional e arquitetônica.

Seguindo esse mesmo princípio, a arquiteta Elora Hardy, fundadora do estúdio Ibuku, desenvolve projetos inovadores utilizando o bambu como elemento estrutural central. Suas obras mesclam resistência, leveza e beleza, redefinindo o que se entende por construção sustentável no século XXI.
Na Colômbia, o arquiteto Simón Vélez elevou o uso do bambu guadua a outro patamar. Com técnicas próprias, ele projeta pontes, pavilhões e habitações de alto desempenho, argumentando que o bambu, quando corretamente tratado, pode ser até mais eficaz que o concreto.
No Brasil, essa visão ganha força com o trabalho de jovens profissionais como a arquiteta Helena Ruette. Especialista no uso de materiais ecológicos, ela tem se dedicado a promover o bambu como alternativa sustentável na construção civil. Sua abordagem une inovação e responsabilidade ambiental, valorizando técnicas construtivas mais naturais, acessíveis e de baixo impacto.
A reconstrução de Mianmar, impulsionada pelo uso do bambu e pela valorização dos saberes comunitários, somada a iniciativas semelhantes ao redor do mundo, é um lembrete poderoso de que a arquitetura vai além da edificação de espaços, ela pode ser uma verdadeira ferramenta de transformações social e ambiental.
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