O sertão vai virar mar? Nível dos oceanos subiu 9,4 cm em 30 anos

Aumento do nível do mar ameaça cidades inteiras no Brasil e no mundo. Saiba quais são e as estratégias de mitigação e adaptação integrando engenharia cinza e soluções baseadas na natureza.

Por Redação em 17 de dezembro de 2024 9 minutos de leitura

aumento do nível do mar
Foto: Shutterstock

O sertão vai virar mar. A profecia de Antônio Conselheiro, líder do povoado de Canudos retratado no livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, pode ser lembrada hoje, mais de 120 anos depois da publicação dessa obra clássica. Isso porque o aumento do nível do mar chegou a uma média 9,4 cm nos últimos 30 anos – o que pode parecer pouco, mas não é. As informações são do relatório “State of the Climate in the South-West Pacific 2023, da Organização Meteorológica Mundial (OMM), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Já o Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) projeta que, até 2100, o nível médio do mar pode aumentar pelo menos 43 cm “em um cenário otimista de baixa emissão de carbono, podendo chegar a 82 cm em cenários pessimistas”. 

A persistir esse ritmo, grandes cidades do mundo poderão ser inundadas pela água do mar, alerta levantamento da organização não-governamental Climate Central, divulgado em 2021 e atualizado em 2023. O documento identificou áreas de inundações em cerca de 100 cidades de 39 países, entre eles o Brasil, onde 2,1 milhões de pessoas podem ser afetadas. Os municípios ameaçados são Rio de Janeiro/RJ, Fortaleza/CE, Salvador/BA, Recife/PE, Porto Alegre/RS, São Luís/MA e Santos/SP. São, portanto, regiões que precisam buscar medidas de prevenção e mitigação de danos provocados pelo aumento do nível do mar tais como corte nas emissões de gases do efeito estufa. 

O Sexto Relatório de Avaliação do IPCC explica que o aumento da temperatura dos oceanos responde por 40% da elevação do nível dos oceanos no mundo. Isso porque a água do mar sofre um processo de expansão à medida que fica mais quente. Os outros 60% são causados pelo derretimento de geleiras. E é o aquecimento do planeta que acelera esses dois fenômenos e resulta do acúmulo, na atmosfera, dos GEE decorrentes de queima de combustíveis fósseis, desmatamento e queimadas. Relatório do observatório europeu Copernicus informa que o verão europeu de 2024 foi o mais quente já registrado, com 1,54°C acima da média de 1991-2020. O resultado é acima do limite de 1,5ºC estabelecido pelo Acordo de Paris para frear o aquecimento global. 

No Rio de Janeiro, segundo a Climate Central, as águas do mar podem alagar parte do bairro de Botafogo, a estação de metrô Botafogo, a Barra da Tijuca e praias da Ilha do Governador. Em Fortaleza, as inundações cobririam as praias e comunidades do Titanzinho e do Futuro. Em Salvador, o mar pode avançar sobre parte do centro e outras áreas da Cidade Baixa, além do Mercado Modelo e do Elevador Lacerda. Em Porto Alegre, seriam tomadas as margens do rio Jacuí, do Lago Guaíba e a região da Usina do Gasômetro. Em São Luís seriam invadidos pela maré a Avenida Beira-Mar, o Cais da Praia Grande e parte do Centro Histórico. Santos pode ter todas as praias e parte da área urbana submersas. 

Remando contra ou com a maré?

Nas regiões costeiras mais críticas em relação ao avanço do nível do mar, a contenção dos alagamentos requer obras caras, que precisam ser planejadas a médio prazo e fazer parte de uma estratégia mais ampla dos municípios, que contemple adaptação às mudanças climáticas e prevenção a eventos climáticos extremos. Quando se pensa em conter o avanço do mar, pode-se pensar imediatamente na Holanda. Com 26% do território abaixo do nível do mar e 59% dele suscetível a inundações, o país é referência na proteção contra o avanço do mar. A preocupação chega ao nível da governança: a Holanda tem um Ministério da Infraestrutura e Gestão da Água, que investe 7 bilhões de euros por ano em sistemas antienchentes. Além disso, uma lei, a “Water Act”, torna obrigatórios investimentos nas questões relacionadas à água.

Não vem de hoje esse temor. Uma das primeiras grandes obras de engenharia holandesa para conter as águas foi um dique de 32 quilômetros construído entre 1927 e 1932 – a própria palavra vem do holandês, dijk. A barreira, com duas eclusas nas pontas, criou o Lago Issel. Em 1953, após enchente que matou 1,8 mil pessoas no sul do país, uma nova e ampla construção de barreiras e diques foi realizada. Porém, em 1993 e em 1995, a elevação dos grandes rios que cortam a Holanda provocou quatro mortes e 250 mil desabrigados. Com isso, o país conhecido pelos diques mudou a abordagem para lidar com as águas. A estratégia, antes baseada em mecanismos contra a água (para tentar contê-la), passou a ser norteada por trabalhar com a água, ou seja, abrir espaços para ela avançar sobre planícies alagáveis. Entendeu-se que não era sustentável continuar a elevar diques, a verticalizar áreas, com estruturas cada vez mais altas. 

Em águas brasileiras

Não vem só da Europa o exemplo para lidar com o avanço do nível do mar: há iniciativas importantes e inovadoras em diversas regiões do Brasil, a exemplo do Recife, onde o bairro Casa Amarela seria alagado pelo rio Capibaribe, segundo a Climate Central, considerando elevação de 1,5ºC na temperatura global. Já com aumento de 3ºC, a maior parte das ruas e avenidas da capital pernambucana seria alagada, de acordo com o documento. Diante disso, a prefeitura começou a retirar moradores da área para abrir espaço para o avanço das águas – tal como a estratégia holandesa – e iniciou obras como o Parque Alagável do Rio Tejipió, que terá 3,9 mil metros quadrados de área com gramados e estruturas para reter as águas.

Primeiro parque alagável do Recife, localizado entre os bairros de Areias e Ipsep, às margens do Rio Tejipió (Foto: Edson Holanda/ Prefeitura da Cidade do Recife)

O município começou a desapropriação e demolição de 107 imóveis residenciais e comerciais construídos à margem do rio – cerca de 50 já foram derrubados. O parque contará com paisagismo e equipamentos de lazer. Nas margens em que os imóveis foram demolidos, foi iniciado o alargamento da calha do Rio Tejipió, que deságua no Rio Capibaribe. 

Também está em andamento no Recife o Projeto Orla Parque, que implantará, ao longo de 9,3 km, um parque linear nas praias de Boa Viagem e Pina, com objetivo de manter as áreas adjacentes à praia livres de construções e apenas com equipamentos de lazer, o que reduz riscos em casos de avanço da maré. O parque terá jardins, lâminas d’água, ciclovia e 730 árvores em toda a extensão. As únicas construções permitidas serão quiosques e banheiros. A primeira etapa do projeto foi entregue em março de 2024 e a previsão de término é até 2025. 

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Conter o aumento do nível do mar requer fechar a torneira na fonte

Ronaldo Christofoletti, professor e pesquisador do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (IMar/Unifesp), Campus Baixada Santista, aponta caminhos e soluções de adaptações e alerta para cuidado com a palavra “conter” porque “o oceano ocupa 70% do planeta e a dinâmica das águas tem uma força muito grande, nada vai conter o mar que está subindo”. 

Segundo ele, a subida do nível do oceano poderia ter sido evitada mediante uma transição energética para minimizar os impactos dos gases de efeito estufa e do aquecimento global. “Essa é a primeira ação porque ela significa fechar a torneira na fonte, que são os GEE, que geram o aquecimento global, que geram o derretimento das geleiras, que por sua vez faz o mar subir. Lembramos que ele já subiu em torno de 9 cm desde que há registros de monitoramento. E, a cada centímetro que ele sobe em altura, falamos em um metro que ele avança em termos de litoral, em média – algumas áreas são mais e, outras, menos, dependendo da profundidade próxima às áreas”, pontua Christofoletti, que coordena o Programa Maré de Ciência/Unifesp e o Programa Escola Azul Brasil, em parceria com a Unesco. O pesquisador também é secretário-executivo da Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica e presidente do Grupo Mundial de Especialistas em Cultura Oceânica. 

“Ao continuar o derretimento das geleiras, nada vai impedir o aumento do nível do mar. Absolutamente nada”. Ele aponta caminhos que podem amenizar os impactos, como as Soluções Baseadas na Natureza. Christofoletti explica que elas partem do princípio de que “não podemos pensar em tentar minimizar o impacto da subida do mar com nossa cabeça de quem constrói prédios, constrói uma mureta, o que chamamos de engenharia cinza. Existem soluções baseadas na natureza que muitas vezes são mistas: usam engenharia, mas também trazem aspectos naturais”.

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Do Espírito Santo ao Reino Unido 

O pesquisador conta que na COP 29, realizada no Azerbaijão, em novembro de 2024, foi lançado o documento Cidades Azuis – Soluções Baseadas na Natureza para a Resiliência Climática Costeira, sobre soluções bem-sucedidas em todo o mundo e aplicadas em cidades costeiras. O estudo foi produzido pela Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica, coordenada pelo Programa Maré de Ciência/Unifesp, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação e a Unesco, em colaboração com a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. 

Um dos casos brasileiros é o da Área de Preservação Ambiental (APA) Costa das Algas, nos municípios de Aracruz, Fundão e Serra, no Espírito Santo. Criada em 2010, o espaço de 115.002 hectares abrange recifes, costões rochosos, bancos de rodolitos e áreas de gramas marinhas, que abriga uma das maiores diversidades de algas marinhas do Brasil. Esses ecossistemas fornecem habitats e áreas de crescimento para diversas espécies de peixes, tanto comerciais como ameaçados. E são fundamentais para comunidades locais que vivem de pesca. A manutenção dessa APA garante a sustentabilidade das comunidades e a proteção das cidades costeiras da região, reforçando a resiliência climática e a conservação da biodiversidade marinha.

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Área de Proteção Ambiental Costa das Algas (Foto: Ana Paula Correa do Carmo/ Wikimedia Commons)

Outro caso que chama atenção por sua Solução Baseada na Natureza é o realinhamento costeiro de Medmerry, em West Sussex, Reino Unido. O projeto, que busca reduzir o risco de inundações e restaurar habitats naturais costeiros, foi concluído em 2013 e envolveu a retirada de diques artificiais ao longo da costa e a criação de uma nova linha de defesa natural. Resultado: o mar invade áreas intencionalmente projetadas para serem alagadas, formando um sistema natural alagável que serve como barreira contra enchentes e fornece novos habitats para a biodiversidade.

O projeto protege 350 propriedades e importantes infraestruturas da região (estradas, estações de bombeamento) e viabilizou 183 hectares de novos habitats naturais, beneficiando várias espécies de aves e outros organismos costeiros. A economia e a população locais também foram beneficiadas em função de atividades com caminhadas, observação de aves e turismo sustentável, ao mesmo tempo que aumentou a resiliência da região às mudanças climáticas. “O realinhamento costeiro de Medmerry é um exemplo inovador de gestão integrada entre proteção ambiental e segurança urbana, demonstrando como soluções naturais podem oferecer benefícios ecológicos, econômicos e sociais duradouros”, destaca o documento lançado na COP 29. 

A parte de cada frente ao aumento do nível do mar

Christofoletti comenta sobre as responsabilidades dos setores público e privado para soluções para enfrentar os problemas da elevação do nível do mar, seja por meio de soluções baseada na natureza ou outras ações. “Por exemplo, áreas portuárias têm responsabilidade porque, se os portos deixarem de funcionar (ou funcionarem mal), estamos falando de um problema econômico. Já a responsabilidade pelas orlas recai sobre o setor público – os governos municipais, estaduais e federal devem promover adaptações nas cidades costeiras. E qual é o papel do cidadão? Conhecer, estar bem informado e cobrar dos setores responsáveis, para que tomem atitudes e façam os investimentos da melhor forma possível”.

Mitigação e adaptação

O biólogo Alexander Turra, professor do Instituto Oceanográfico da USP e coordenador da Cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano, explica que o enfrentamento à elevação do nível do mar – e às mudanças climáticas como um todo – pode ser feito a partir de duas estratégias: mitigação e adaptação. 

“As medidas de mitigação são fundamentais porque são menos custosas e envolvem basicamente a redução das emissões dos gases que provocam o efeito estufa. Isso significa implementar o Acordo de Paris, de 2015, e seguir as metas lá estipuladas”, comenta Turra. “Também significa aumentar a capacidade dos sistemas naturais, incluindo os oceanos, de sequestrar e estocar carbono por meio da biodiversidade da fotossíntese, e isso inclui manguezais, fitoplâncton e uma série de outros organismos”. 

Foto: Aditya fs/ Shutterstock

Segundo ele, algumas estratégias para fazer frente ao aumento do nível do mar requerem planejamento do uso e da ocupação do solo nas áreas costeiras, com identificação das áreas passíveis de inundações, para que as regiões não sejam ocupadas. “Isso reduz a possibilidade de danos. Já nas áreas urbanizadas – com ocupação já intensa, como grandes cidades e áreas portuárias – há possibilidade de se fazer obras de contenção ou diques, como na Holanda e em Veneza, mas que tem limitação em função do tanto que o mar vai subir”, frisa o professor. “É fundamental pensar na realocação da população costeira para outras regiões, em um cenário mais extremo. E isso não é necessário se fizermos o trabalho de reduzir as emissões e sequestrar mais carbono – ou seja, mitigação é a primeira e principal estratégia”, diz Turra. 

Assim, seja em municípios litorâneos do Brasil, seja em regiões de outros países que são cases globais quando o assunto é lidar com o aumento do nível do mar, vale o famoso ditado “é melhor prevenir do que remediar”.