Carnaval e urbanismo: uma história que se mistura no Brasil

A relação entre carnaval e urbanismo mostra a complexidade - e também um pouco da diversão - da sociedade brasileira

Por Redação em 20 de fevereiro de 2023 6 minutos de leitura

carnaval e urbanismo

O Carnaval começa oficialmente quando rei Momo recebe as chaves da cidade, uma maneira divertida de dizer que, nos próximos quatro dias, é a “corte da folia” que comanda o município. Tal ato também é simbolismo de outra relação entre as cidades e o Carnaval – afinal, a festa mais popular do Brasil floresceu com o crescimento urbano no país. Diferente do rei Momo, tais mudanças não acabaram na quarta-feira de cinzas. A história mostra que a ligação entre Carnaval e urbanismo é mais forte do que se imagina.

A conexão entre o Carnaval e as ruas da cidade é tanta que, no nosso imaginário, a palavra já remete a uma festa se espalhando pelas calçadas e pelo asfalto. Seja em blocos de Carnaval, escolas de samba, troças, o espaço urbano é palco da folia no Brasil. E quanto mais ele cresceu, mais as formas de festejar se multiplicaram e passaram a refletir a sociedade brasileira. 

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O primeiro ponto a se destacar é que o Carnaval não nasceu no Brasil. O festejo foi “importado” das comemorações da quaresma que aconteciam na Europa medieval. Alguns historiadores remetem o Carnaval à Antiguidade, com as danças e festividades da Roma Antiga e dos gregos antigos. Mas o que aconteceu para a comemoração se tornar parte tão essencial do brasileiro? A resposta pode estar nas cidades.

Entrudo sem samba

Quando embarcou no país, lá no século 16, o Carnaval se chamava “Entrudo” (ou seja, uma “entrada” da quaresma), uma celebração um tanto quanto diferente da festa com música e fantasias que acontecia, por exemplo, em Veneza. Durante o Entrudo, as pessoas jogavam água (limpas ou não), frutas (em bom estado ou não), ovos (podres ou não) e, bem, uma variedade alta de líquidos e alimentos.

As ruas estreitas das nascentes cidades brasileiras não ajudavam a amenizar a celebração, que chegou a ser proibida nas capitais. De acordo com o pesquisador da UERJ e criador do Centro de Referência do Carnaval, Felipe Ferreira, o entrudo reproduzia as tensões sociais da época, principalmente entre os negros recém-libertos e a burguesia. 

“A base da festa é significar o espaço onde ela é organizada, e o Carnaval sempre foi calcado nas tensões entre diferentes atores e na disputa espacial”, disse a designer Marília Ferrari, pesquisadora da relação entre Carnaval e cidades na Universidade de São Paulo.  Em pouco tempo, o Carnaval e o urbanismo iriam se encontrar de vez.

Reproduzido pelo Acervo Instituto Moreira Salles

No final do século 19, a elite brasileira se espelhava na França e buscava “expurgar da cidade os costumes grosseiros e vulgares associados às heranças negra, portuguesa e indígena”, escreve Ferreira, em seu artigo “Rio de Janeiro: 1850 e 1930: a cidade e seu Carnaval”. E assim entram os “bailes de máscaras”, primeiro dedicados apenas aos mais ricos, depois em forma de bailes “públicos”. Daí para a rua foi um pulo (carnavalesco), quando a população acostumada com a brincadeira do entrudo também absorveu o costume de se fantasiar e colocar máscaras. 

“Por volta de 1850, período de maior estabilidade política e prosperidade econômica do Império, já era costume dos foliões burgueses colocarem uma máscara, vestirem uma fantasia e sair passeando pelas ruas, antes das danças nos bailes”, analisou Ferreira em seu artigo. Foi nessa mesma época que surgiram os primeiros clubes carnavalescos.

Um pouco antes disso, em 1846, já existia uma prática que foi absorvida ao Carnaval: o Zé Pereira, que era uma pessoa que saía andando pelas ruas batendo bumbo e tambores. Foi um dos pontos que acrescentou a música ao Entrudo. O “Zé Pereira” era considerado um “Carnaval do Pobre”, já que não era preciso convite ou grandes organizações, bastava uma pessoa e um tambor para a festa começar nas ruas. 

Carnaval e urbanismo no Brasil

No início do século 20, a festa de rua mudou nas capitais brasileiras. Isso porque a própria rua mudou. No Rio de Janeiro, por exemplo, a Avenida Central foi aberta entre 1903 e 1906. O espaço passou das ruas estreitas para as largas avenidas.

A reforma do Rio de Janeiro foi guiada pelos conceitos de uma nova ciência para a época: o urbanismo. Instigados pela remodelagem de Paris, feita por George Haussmann, os planejadores urbanos brasileiros apostaram em avenidas largas, espaços de convivência e o afastamento da área industrial (e os trabalhadores que ficavam em seu entorno) do centro da cidade. Apenas para abrir a Avenida Central, foram demolidas entre 600 e 3 mil casas, desabrigando mais de 20 mil pessoas mais pobres, levando-as para regiões mais afastadas.

Reproduzido pelo Acervo Instituto Moreira Salles

O modelo não foi apenas seguido no Rio de Janeiro. Em Salvador, na Bahia, foi no final do século 19 que os bondes, canalização de rios e calçamentos chegaram para a cidade que só crescia. Em paralelo às obras, vinha a tecnologia das “smart-cities do século 20”: a iluminação a gás, os bondes elétricos e os automóveis. Mais uma vez, o Carnaval e o urbanismo cruzaram seus caminhos no país.

Tudo isso influenciou o Carnaval, que passou a ter alegorias maiores. “A abertura das avenidas muda o tipo de manifestação — aparecem os grandes carros, um carnaval mais elitizado”, descreveu Marília. A urbanização também abriu caminho para a criação de uma cidade “às margens”, que também procurou formas de se encontrar e tomar conta do espaço urbano que lhe foi negado. 

No Rio de Janeiro, a casa da Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, um expoente da cultura afro-brasileira) reunia rodas de festejos e de candomblé nos arredores da Praça Onze. A Praça Onze, até o final do século 18, era usada como espaço para colocar lixo, mas foi reurbanizada em 1846 e ganhou até um chafariz. Tal espaço foi central para a criação de uma nova música que misturava os batuques do candomblé às festividades: o samba. 

Cidade carnavalesca

Embora tenha sido idealizada para que os ricos desfrutassem da capital do Brasil, a reurbanização trouxe também os mais pobres para aproveitar as ruas e calçadas nos dias de folga. O Carnaval e o urbanismo se encontraram. A Avenida Central, feita com calçadas largas, tinha os pedestres e o comércio em foco. E, durante o Carnaval, tornou-se o eixo dos blocos e cordões. Em Salvador, o mesmo aconteceu na Avenida Sete de Setembro e em volta do Farol da Barra.

Reproduzido pelo Acervo Instituto Moreira Salles

Para se ter ideia, em 1907 a Avenida Central reuniu 500 mil pessoas durante o Carnaval. Em 1919, o Carnaval “da revanche”, que comemorava o fim da Primeira Guerra Mundial e o arrefecimento da Gripe Espanhola, levou 400 mil pessoas às ruas apenas no primeiro dia, com carros alegóricos que faziam alusão às dores da pandemia, como o “chá da meia noite” (bebida dada para os pacientes terminais da Gripe Espanhola) e os medicamentos “milagrosos”. Mais do que uma festa, o Carnaval se tornou a maneira com que o brasileiro lidava simbolicamente com as dificuldades e as idiossincrasias da sociedade. 

Culturalmente, o Carnaval também deu espaço e voz para a cultura negra, ignorada pelas vias oficiais. O evento permanece relevante para a cultura negra, ao mantê-la viva e ativa nas celebrações. “Nelas o negro é protagonista”, afirmou o pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora, em entrevista ao portal da UFJF, Rafael Rezende. “O Carnaval é uma possibilidade de ele se enxergar positivamente, ter orgulho de si, além de oferecer conhecimento e, com isso, desfazer preconceitos por meio de enredos que o represente, principalmente no que se refere à religiosidade, alvo constante de manifestação de intolerância. Então, pelas vias culturais, ele pode encontrar o espaço que ainda lhe é negado.”

“Ao juntar, em clima de descontração, pessoas das mais variadas idades, situações econômicas e culturas, o Carnaval se torna um espaço de intenso diálogo e, também, negociador das tensões sociais que perpassam as relações no dia-a-dia das cidades”, afirmou Rezende.

Carnaval e urbanismo no século 21

Para os dias de hoje, depois de uma profunda transformação tecnológica e social das cidades, ainda há uma lição que o Carnaval pode trazer para o espaço urbano.  Novamente, o Carnaval e o urbanismo podem aprender um com o outro.

“A cidade, sob uma “ordem carnavalesca”, teria sua mobilidade organizada hierarquicamente, priorizando o pedestre, valorizando o transporte público e colocando o transporte individual motorizado como um recurso último. Com ideias tiradas do contexto, autorreferenciadas, criam-se possibilidades de recuperar a urbanidade perdida pela adoção no passado de soluções estritamente tecnicistas ou simplesmente pela falta de ideias do tempo presente. A cidade do século XXI pode vir a ser, novamente, aquela da escala humana, mesmo sendo metropolitana”, afirmou o arquiteto e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Roberto Montezuma, em artigo.

Segundo Marília, da USP, o Carnaval deve ser levado para os outros dias do ano não apenas como modelo de celebração, mas considerando seu potencial transgressor, como esclarece em seu trabalho: “a festa explicita tensões, faz gritar a existência do outro, aponta a ilusão da realidade, inverte e reinventa lógicas sociais, desacelera e ritualiza o tempo cotidiano, corporifica e conscientiza a prática da cidade.”