Cidade ideal construída do zero: utopia ou possibilidade real?

Exercícios para criar município-modelo apontam caminho baseado em tecnologia associada a soluções de cooperação com multiplicidade de visões.

Por Ana Cecília Panizza em 2 de setembro de 2025 8 minutos de leitura

cidade ideal construída do zero
Imagem gerada por Inteligência Artificial

Quem já jogou SimCity ou outro jogo de gerenciamento já teve a sensação poderosa de criar o mundo do zero. De conceber a cidade perfeita para se viver: arborizada, sem trânsito excessivo, onde serviços urbanos funcionam e fluem em um mesmo espaço em que casas e prédios emergem organizadamente. Tudo administrado pelo jogador. Na vida real, é possível conceber uma cidade ideal construída do zero? 

Características dos municípios onde se vive hoje, mesmo que eles não sejam ideais e apresentem desafios complexos, podem contribuir para o exercício de uma cidade ideal construída do zero, enquanto a concepção de uma comunidade-modelo pode ajudar a melhorar aspectos de metrópoles nos dias de hoje, sem precisar dissolvê-las e reconstruí-las.    

Como o mundo deveria ser

A arquiteta e urbanista Maiara Vigand Pitanga, designer arquitetônica generativa da Arqgen (startup que usa Inteligência Artificial generativa para projetos de arquitetura), destaca que, historicamente, cidades e comunidades não foram criadas do zero. Para ela, elas são frutos de um ato político e um ativo econômico, que carrega relações de poder, cultura, tecnologia e economia de cada tempo. “A partir das ideias de Leonardo Benevolo (urbanista e historiador italiano), autor do livro ´História da Cidade´, as cidades nunca surgem ´do zero´, em um vácuo absoluto. Há uma tensão histórica. As cidades podem surgir de forma espontânea e orgânica, e crescer de modo incremental, acumulando camadas históricas. E há aquelas que surgem de decisões racionais centralizadas, que buscam impor uma ordem geométrica, funcional, moral ou política sobre o território. Sempre que o homem tentou construir cidades do zero (especialmente nos casos de cidades-modelo, capitais novas etc.), ele estava materializando uma visão de como o mundo deveria ser”, ressalta Pitanga, que trabalha em projetos práticos e de pesquisa na intersecção entre computação e arquitetura. 

A arquiteta acrescenta que, na história do urbanismo, cidades foram construídas do zero em vários momentos — e a diferença está sempre no porquê e para quem são construídas, “desde as cidades coloniais espanholas e portuguesas nas Américas até um dos exemplos mais emblemáticos, como Brasília, que se tornou um dos maiores símbolos do modernismo no urbanismo”. 

Exercício para cidade ideal construída do zero

cidade ideal construída do zero
Foto: ElDooderino/ Shutterstock

Em um exercício de como se daria uma cidade ideal construída do zero, Pitanga explica que, sob os pontos de vista da arquitetura e do urbanismo, a empreitada envolve etapas e decisões interligadas, que vão desde a escala territorial até o cotidiano das pessoas. “Precisamos pensar nas estruturas física e ambiental — onde será implantada, como será o uso do solo, qual a relação com a paisagem, quais serão os limites de crescimento, quais recursos naturais existem ali. Desenvolver o desenho espacial — aqui entram as decisões urbanísticas: as ruas, os bairros, os equipamentos públicos, as escalas, as densidades, a mobilidade e o tipo de tecido urbano que se pretende criar”, pontua a arquiteta. 

É um projeto político-social, defende ela, citando a ideia do urbanista Kevin Lynch, no livro “A Imagem da Cidade”, de que o desenho urbano deve construir uma imagem mental clara para seus habitantes, com caminhos bem definidos, marcos visuais, bairros com identidades próprias e espaços de encontro. “Mais do que a questão técnica de projetar ruas e edifícios, criar uma cidade envolve definir como as pessoas vão viver, circular, trabalhar, conviver — e, principalmente, quem terá o direito real de ocupar e usufruir desses espaços. A discussão sobre o direito à cidade, como colocava o filósofo e sociólogo Henri Lefebvre, ganha ainda mais força: trata-se de garantir que todos — e não apenas uma elite econômica — possam participar ativamente da produção e do usufruto da vida urbana”, avalia Pitanga. 

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Cidade de laboratório  

Saindo da teoria rumo à prática, uma nova comunidade foi planejada na América do Norte, em 2017, quando a Sidewalk Labs – divisão de inovação urbana do Google – anunciou a construção de uma cidade ideal dentro de uma outra: Toronto, no Canadá. O novo município receberia o nome de Sidewalk Toronto e seria formado sobre pisos modulares, removíveis e hexagonais (criados pelo arquiteto e engenheiro italiano Carlo Ratti), compondo um sistema chamado Dynamic Street, cujo objetivo era explorar padrões criados a partir da reconfiguração dos pisos para tornar as ruas mais seguras e acessíveis a pedestres e ciclistas. O sistema permitiria que a função de uma rua mudasse rapidamente – de uma rodovia para carros em um dia, para um espaço infantil no outro, tornando as ruas moldáveis. Viabilizaria, ainda, a implantação de faixa extra durante a hora do rush ou a transformação de uma via em praça para pedestres à noite. 

A Sidewalk Toronto também era pautada pela tecnologia: o projeto contemplava robôs de coleta de lixo operando no subsolo e instalação de rede de sensores em todos os lugares para medir indicadores da vida cotidiana, desde informações sobre poluição do ar até sobre os sinais vitais da população e o comportamento dos moradores, o que gerou debates sobre proteção de dados e vigilância. O projeto pleiteava mudanças nas leis de zoneamento da região de modo que as conformidades urbanísticas fossem verificadas por sensores em vez de ser checadas via inspeção humana. Por conta das críticas, em maio de 2020 a Sidewalk Labs desistiu do projeto de cidade ideal construída do zero. 

O debate em torno da Sidewalk Toronto se voltou para os dados: quem os coletaria, quem os usaria e como. Em meio a discussões sobre dados e leis de propriedade intelectual, os aspectos arquitetônicos do novo município foram ofuscados. “A Sidewalk Toronto não é uma cidade inteligente”, escreveu o ex-executivo da BlackBerry Jim Balsillie, em artigo de opinião em 2018. “É um experimento colonizador em capitalismo de vigilância que tenta atropelar importantes questões urbanas, cívicas e políticas”. 

Donos da cidade – e dos dados 

Para Pitanga, o projeto da cidade Sidewalk Toronto “tinha soluções arquitetônicas muito interessantes, como o sistema modular hexagonal das ruas, mas a discussão acabou sendo dominada pelas questões de vigilância e controle dos dados — exatamente como Evgeny Morozov (autor do livro ´A Cidade Inteligente´) já previa”. Segundo ela, o cancelamento do projeto foi “uma vitória dos movimentos civis urbanos, que conseguiram colocar em pauta quem deve governar o espaço público e os dados que nele circulam”. 

“A tecnologia não substitui as escolhas políticas e sociais no urbanismo — e o Sidewalk Labs acabou virando um exemplo clássico disso —, além do problema da governança de dados: quem é o dono da cidade? As empresas ou a coletividade? Esse tipo de tecnologia, quando aplicada sem estrutura pública forte de regulação digital, acaba colocando os cidadãos como reféns das big techs. Hoje, dados viraram um ativo econômico, um produto”, diz a arquiteta. 

Ela sugere que, em vez de iniciativas conduzidas por empresas privadas, sejam adotados, para uma nova cidade, modelos de política pública participativa, como o de Barcelona, que tem implantado projeto de soberania digital. “Em Barcelona, a coleta de dados urbanos acontece sob governança pública e transparente, priorizando o interesse coletivo, e não o lucro de empresas de tecnologia. As smart cities de verdade precisam, antes de tudo, de uma política digital democrática — e não apenas de sensores e algoritmos”, afirma Pitanga. 

Cidade serena  

A 56 quilômetros de Atlanta, capital do estado americano da Geórgia, fica o município de Chattahoochee Hills. Dentro dele há uma cidade ideal construída do zero: Serenbe, nome alusivo aos termos serenity e to be. De fato, a serenidade parece permear esse vilarejo com cerca de mil habitantes, entre famílias jovens, aposentados e pessoas que priorizam senso de comunidade, qualidade de vida e contato com a natureza. 

Serenbe nasceu em 2004 por iniciativa de Steve Nygren e sua esposa, Marie. Ele trabalhava na área de restaurantes e sonhava em construir uma comunidade com interação com a natureza – por isso, manteve 70% da área preservada. 

A comunidade é dividida em três áreas – Selborne, Grange e Mado –, conectadas por estradas e trilhas. As residências e demais construções têm diferentes estilos arquitetônicos, que vão de casas sulistas de linhas retas a complexos de apartamentos de inspiração escandinava, a depender da finalidade do design do vilarejo. 

Selborne funciona como setor de cultura e artes, com uma rua principal que lembra um centro americano, com toques de influência italiana na ornamentação dos edifícios. Lá, os moradores assistem a peças de teatro, filmes e shows e participam de oficinas de culinária, por exemplo. Já Grange é a área agrária, com casas rústicas e uma fazenda orgânica que produz alimentos frescos, vendidos em uma feira de produtores locais. Em Mado fica o setor de saúde e bem-estar, onde a arquitetura é marcada por designs minimalistas inspirados em cidades nórdicas como Copenhague. 

A construção de Serenbe foi assinada pela família Nygren e pelo escritório de arquitetura Serenbe Planning and Design. Cada ajuste feito em uma casa, bem como cada nova estrutura construída, passam por processo de revisão de projeto, em que o local, a linguagem arquitetônica, a planta baixa e outras diretrizes da comunidade são considerados antes da intervenção. 

Utopia agrária contemporânea

“Serenbe é um caso interessante porque, diferentemente do Sidewalk Labs, não aposta na tecnologia como motor central da cidade, mas sim na ideia de um retorno a uma vida comunitária idealizada, integrada à natureza e com um urbanismo muito controlado desde o início. É uma espécie de utopia agrária contemporânea”, define Pitanga.  

“Quando eu olho para Serenbe, eu enxergo ecos de projetos históricos de organizações social e urbana. Por exemplo, o familistério (complexo residencial) de Guise, na França, que era um modelo habitacional do século 19 criado por Jean-Baptiste Godin, influenciado por ideias socialistas e que Friedrich Engels também observou criticamente em seu tempo. No familistério, o foco era justamente criar uma estrutura de convivência comunitária, onde habitação, trabalho, educação e lazer estivessem todos integrados, sob um mesmo planejamento central, buscando bem-estar coletivo”, comenta a arquiteta. 

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Segundo ela, Serenbe utiliza a ideia de organização da vida em torno de núcleos funcionais, onde cada vila tem um tema e uma função: arte, agricultura, bem-estar. “Assim como no familistério, existe uma forte centralização do controle do espaço e uma busca por harmonia social — mas hoje aplicado a um público de alto poder aquisitivo, diferentemente do ideal igualitário dos modelos do século 19”. 

Além disso, Serenbe dialoga com a tradição das cidades-jardim de Ebenezer Howard, lembra a arquiteta, por buscar equilibrar cidade e campo, trabalho e natureza, vida urbana e saúde. “É uma cidade-jardim adaptada ao século 21, mas ainda carregando a mesma tensão de sempre: quem pode acessar esse tipo de lugar? Porque muitas vezes o custo de entrada é alto, e ele não resolve os problemas estruturais de moradia acessível para a maioria das pessoas”, questiona a arquiteta. Assim, Serenbe contribui para o exercício de cidade ideal construída do zero, mas é um projeto extremamente restrito e elitizado, acessível a uma pequena parcela de pessoas. 

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Arquiteto com superpoderes 

Foto: Gorodenkoff/ Shutterstock

A ideia de uma cidade ideal construída do zero reflete a busca por um lugar melhor para se viver. Isso, no entanto, pode estar nos municípios já existentes. O desafio é repensar as estruturas urbanas. Para isso, a tecnologia pode ser uma importante aliada.

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A Inteligência Artificial (IA) na arquitetura, por exemplo, pode viabilizar uma cidade ideal construída do zero, de acordo com Pitanga. “Eu brinco que é quase como dar superpoderes ao arquiteto, porque se consegue ir mais longe. A era da IA e da tecnologia vem nesse superpoder que a gente pode dar, mas ao mesmo tempo sem inibir o ser humano. Antigamente, 100% do trabalho e do esforço eram feitos pelo ser humano. Hoje em dia, considero que 80% do trabalho manual é feito pela máquina, mas ainda vão ter 20% do ser humano. A IA, para projeto urbano, arquitetônico, pode melhorar a qualidade das soluções, para simulação de futuro”, frisa a arquiteta.  Ao mesmo tempo, paralelamente às tecnologias, é preciso buscar soluções cooperativas e sustentáveis, com planejamento participativo, e considerando a multiplicidade de visões e a diversidade de pessoas; afinal, são elas que habitam as cidades. 

A cidade ideal, portanto, não vai surgir exatamente do zero, mas da construção de novos paradigmas, da ação intencional, integrada e coletiva. Sem a participação e o esforço das pessoas, nem na lua será possível começar algo verdadeiramente do zero.

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