O direito à cidade é de quem? Urbanista Joice Berth responde

Autora do livro "Se a cidade fosse nossa", arquiteta e urbanista Joice Berth analisa as raízes históricas da desigualdade urbana e o direito à cidade.

Por Redação em 26 de setembro de 2023 7 minutos de leitura

direito a cidade
Joice Berth (Foto por: Betolino Caetano)

Ter um lar seguro, viver em um ambiente limpo e saudável, desfrutar de uma infraestrutura urbana de alta qualidade e poder se locomover com facilidade pela cidade, a qualquer hora e em qualquer lugar. Além disso, ter acesso à coleta de resíduos, reciclagem e saneamento básico, bem como a serviços públicos, oportunidades de trabalho e momentos de lazer. Tudo isso compõe o que chamamos de Direito à Cidade!

No Brasil, esse direito está assegurado pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que enfatiza a importância dos planos diretores como ferramenta essencial para garantí-lo. Além disso, estabelece diversas normas legais e políticas para combater fatores que contribuem para a desigualdade urbana. Mas, na prática, todos de fato têm acesso à cidade? 

Leia também: Paulo Tavares: cidade é direito, arquitetura é advocacia

As bases que abordam essa questão foram estudadas por mais de uma década pela arquiteta e urbanista Joice Berth. Com formação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), a arquiteta e urbanista desempenhou o papel de jurada em eventos prestigiosos, como o 7º Prêmio de Arquitetura do Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel e a premiação IABsp 2019, foi palestrante em eventos internacionais, como na conferência EuroLeads 2019, realizada em Paris, e agora compartilha suas descobertas em seu segundo livro, intitulado “Se a cidade fosse nossa”, publicado pela editora Paz e Terra.

“Em teoria, a cidade pertence a todos. Nós vivemos nela, construímos nossas vidas e realizamos atividades cotidianas, mas quem realmente toma decisões sobre a cidade? A cidade, na verdade, é do Capital, do racismo e do sexismo, daqueles que contribuem para as desigualdades. Ela não é nossa. Se fosse, teríamos uma mobilidade mais segura e menos problemas de moradia. Teríamos acesso livre e poderíamos desfrutar plenamente da cidade”, afirma

As raízes históricas da desigualdade urbana

direito a cidade

A partir da análise de projetos urbanísticos, como os de Lina Bo Bardi e Diébédo Francis Kéré, aliados às perspectivas influentes de pensadores urbanos como Milton Santos e Lélia Gonzalez, Joice traça um panorama sobre como as raízes históricas da construção das cidades têm perpetuado a exclusão social. 

A formação das cidades reflete uma complexa interseção de fatores históricos, sociais e econômicos. Para compreender esse processo, a arquiteta enfatiza que é preciso voltar ao período pós-Abolição, que coincidiu com a transição da mão de obra escrava para a mão de obra industrializada. Segundo ela, a cidade começou a se desenvolver paralelamente a essa transição, que incluía o surgimento do automóvel como um ícone de desenvolvimento. À medida em que que a cidade se expandia, começou a se formar uma classe social marginalizada, composta, principalmente, por afrodescendentes que enfrentavam dificuldades econômicas após a Abolição.

Leia também: Gabriela de Matos: África é inspiração e modelo para o futuro do habitar

direito a cidade

Esse cenário formou novos padrões de precariedade. A estrutura urbana inicialmente moldada para acomodar o carro, perpetuou características do modelo colonial de cidade, onde fazendas de café e algodão estavam no centro, enquanto as senzalas estavam nas periferias e eram polos de mão de obra e serviços.

“As cidades ainda refletem uma divisão semelhante, onde encontramos o equivalente à ‘Casa Grande’ e, ao mesmo tempo, persistem as condições que se assemelham às ‘Senzalas’, localizadas nas periferias e áreas de favelas”, ressalta. “No Brasil, até hoje os urbanistas que tinham a dianteira da discussão negligenciaram a questão racial, que é o principal formador das desigualdades sociais. Quando vemos as estatísticas, é sempre a negritude que está no limbo”.

Leia também: Sonia Guimarães: o futuro da ciência é ancestral e africano

De fato, um relatório divulgado pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos lança luz sobre a persistência do racismo sistêmico como um desafio significativo para a participação efetiva das comunidades afrodescendentes nos assuntos públicos de seus países. O documento enfatiza que as experiências históricas de escravidão e colonialismo continuam a ser raízes profundas da marginalização e exclusão que afetam de forma duradoura as populações afrodescendentes, ecoando em suas vidas até os dias atuais e refletindo na formação das cidades.

Conforme uma pesquisa do IBGE, de 2018, uma proporção significativamente maior da população preta ou parda vive em residências desprovidas de coleta de lixo (12,5%, em comparação com 6% da população branca), sem acesso a abastecimento de água através de rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca) e sem sistema de esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, em contraste com 26,5% da população branca). “Para podermos efetivamente desmantelar essa lógica segregatória e desigual das cidades é fundamental que compreendamos suas raízes históricas de forma profunda. Caso contrário, quando nos sentarmos à mesa de planejamento urbano e discutirmos questões urbanas, estaremos abordando os problemas de forma superficial, recorrendo a soluções paliativas em vez de enfrentar as questões estruturais”, acrescenta Joice.

Direito à cidade para quem?

direito a cidade

Os desafios crônicos que moldam o cenário urbano tornam-se ainda mais acentuados em metrópoles como São Paulo. Com uma população de 12 milhões de habitantes, a capital paulista enfrenta contrastes marcantes: por um lado, o número de pessoas vivendo nas ruas cresceu consideravelmente, chegando a um total de 52 mil indivíduos em situação de vulnerabilidade. Por outro lado, o mercado imobiliário vive um período de intensa atividade, com o lançamento de 75 mil unidades habitacionais entre fevereiro de 2022 e março deste ano.

Nesse contexto, surge um tema de extrema importância no âmbito municipal: o planejamento territorial e a revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo. As propostas de alteração, incluindo a expansão das áreas passíveis de adensamento construtivo, somente se tornarão efetivas após a revisão e aprovação da Lei de Zoneamento. Joice argumenta que essas medidas, em sua maioria, atendem prioritariamente às demandas do mercado imobiliário, deixando de abordar de maneira adequada às necessidades da população.

“Essa é uma questão crítica que o plano diretor anterior estava tentando resolver. Havia sinais de abertura para discutir e abordar essas questões de forma mais abrangente”, relembra Joice. “Eu não demonizo a especulação imobiliária, o capital movimenta tudo, mas não podemos negligenciar as pessoas e as necessidades que elas têm na cidade. É preciso encontrar soluções equitativas e equilíbrio. Entretanto, parece que o novo plano diretor optou por priorizar somente o capital. O resultado disso é que, em geral, as pessoas de baixa renda são as mais afetadas por essas decisões”. 

Nesse processo, a classe média também está destinada a sentir os efeitos. Essa dinâmica representa uma virada importante que já está gerando uma mobilização significativa em torno do plano diretor. Moradores do bairro de Pinheiros, por exemplo, estão buscando formas de preservar suas vilas e comércios locais mesmo diante do avanço imobiliário. “Eles começaram a expressar suas preocupações e a se opor ao plano, destacando que não aceitariam certas mudanças. Isso é relevante porque essas são pessoas com maior poder aquisitivo, e elas são um dos principais grupos que consumirão o que o mercado de especulação imobiliária produzirá. É importante que estejam alertas para essa questão”.

No entanto, Joice Berth observa uma dinâmica peculiar quando se trata do impacto dessas transformações urbanas. Quando as mudanças atingem aqueles com maior poder aquisitivo e influência, a complexidade da situação se acentua para as camadas sociais mais baixas. Nesse sentido, para ela, o impacto final do Plano Diretor permanece incerto e deve ser monitorado com cautela.

Preservando a identidade urbana

Iniciativas como o Parque do Rio Bixiga, a Rede Novos Parques e o Coletivo Salve Saracura estão se unindo para promover mudanças na revisão do Plano Diretor. Um dos pontos que preocupa os urbanistas é a construção de arranha-céus em áreas com importância histórica para a cidade, como o bairro do Bixiga. De acordo com os movimentos, existem brechas no Plano Diretor – neste caso específico, os chamados Eixos de Transformação – que permitem a construção de mega empreendimentos em áreas indevidas do bairro. 

“É interessante notar que muitos brasileiros da classe média viajam para a Europa e retornam encantados, devido à sua rica história, tradição e beleza arquitetônica. O que muitas vezes não percebem é que os habitantes da Europa valorizam e preservam suas memórias e suas cidades. Embora as grandes cidades europeias também tenham seus problemas, elas têm um compromisso com a preservação de sua história”, aponta. “No entanto, no Brasil, muitas vezes parece que não gostamos de nossa própria história, é como se quiséssemos apagar nossa própria identidade”. 

O bairro do Bixiga, frequentemente associado à imigração italiana, que influenciou a identidade do bairro a partir do século 19, tem raízes mais profundas que incluem uma presença indígena fundadora e uma significativa contribuição das populações negras e das classes populares. Essas influências históricas ainda são visíveis nas ruas do bairro paulistano, sendo um lugar que guarda as memórias de diversos povo.

Para Joice, a preservação dessas memórias é de suma importância e aqui entra o papel do profissional de arquitetura e urbanismo. “Acredito que devemos promover debates públicos e pressionar os meios de comunicação. Precisamos alcançar o maior número de pessoas para que elas compreendam em profundidade como essas questões funcionam e até que ponto estão impactando suas vidas”, pontua.

O direito à cidade e a responsabilidade social do arquiteto e urbanista

Segundo o geógrafo britânico, David Harvey, autor do livro The Right to the City, o direito à cidade transcende o mero acesso individual aos recursos urbanos; trata-se, primordialmente, do direito de influenciarmos a cidade para que ela melhor corresponda aos nossos anseios. Para ele, a liberdade de reconfigurar a cidade, e por conseguinte, a nós mesmos, é um dos nossos direitos humanos mais valiosos, ainda que frequentemente negligenciado.

Leia também: Placemaking: a comunidade no centro da revitalização de espaços públicos

Joice pensa de maneira semelhante e reitera que a arquitetura e o urbanismo são disciplinas profundamente conectadas com o aspecto social da vida nas cidades e o direito à cidade. No entanto, o elitismo que muitas vezes permeia a atuação de arquitetos impede que a população em geral se identifique como beneficiária das possibilidades que essas áreas técnicas podem oferecer.

“Um profissional de arquitetura e urbanismo tem que resgatar esse contato com as pessoas e fazer a sociedade entender a importância e o tanto que a gente pode contribuir. Isso pode ser alcançado por meio da comunicação, da escrita, expressão artística ou da simplificação das questões técnicas para torná-las mais acessíveis ao público em geral”, destaca.

A responsabilidade de um arquiteto ou urbanista transcende a simples criação de edifícios e ambientes urbanos. Inclui, igualmente, a capacitação das comunidades, proporcionando-lhes o conhecimento e a compreensão necessários para que possam contribuir ativamente para a construção de cidades mais inclusivas e antirracistas.