Cláudio Crispim: desafiando a arquitetura hostil em nome do encontro

Para o conselheiro do IAB-RJ, a cidade não se "resolve" perpetuando a lógica da exclusão com novas, mais perversas e mais hostis exclusões. 

Por Paula Maria Prado em 11 de novembro de 2024 7 minutos de leitura

Cláudio Crispim
Cláudio Crispim (Foto: Acervo pessoal)

A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, canta Vinícius de Moraes em “Samba da Bênção”. A bossa, com sua sutil delicadeza, reflete o que pode emergir de encontros inesperados, contrastando com a arquitetura hostil, que, na contramão, tenta limitá-los. O tema ganhou destaque fora do ambiente acadêmico após as intervenções do padre Júlio Lancellotti no viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no Tatuapé, zona leste de São Paulo/SP, em fevereiro de 2021, onde a gestão municipal instalou pedras para impedir que pessoas em situação de rua se abrigassem ali.

Na ocasião, o Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento do Rio de Janeiro (IAB-RJ) divulgou sua primeira manifestação sobre o caso nas redes sociais. Utilizando a definição de arquitetura do africano Diébédo Francis Kéré, Cláudio Crispim, Conselheiro Estadual do IAB-RJ e representante do Grupo de Trabalho sobre Arquitetura Hostil na instituição, ressalta que “arquitetura não se limita à construção; é um meio de melhorar a qualidade de vida das pessoas”. Para ele, que também é arquiteto e urbanista, especialista em infraestrutura urbana, “continuar ensinando às futuras gerações que a segregação leva ao desenvolvimento é um caminho que, como sociedade, buscamos superar. Mais do que isso, devemos reparar os efeitos sobre as populações que sofreram. Portanto, a ‘arquitetura’ hostil não é uma solução viável; é repetir erros do passado, resultando em embrutecimento social e grosseria urbana”. Confira na entrevista a seguir.

Qual foi o reflexo do primeiro posicionamento público do IAB sobre a arquitetura hostil?

Cláudio Crispim: Fomos posteriormente consultados por legisladores de diversas esferas, em uma colaboração que ajudou a fundamentar leis contra a arquitetura hostil, aprovadas em níveis federal e municipal. Esse movimento se espalhou por vários municípios, dada a enorme repercussão na época. Devemos celebrar a regulamentação da lei 14.489/2022, denominada “Padre Julio Lancellotti”, em dezembro de 2023, que proíbe intervenções hostis em espaços públicos, parte do ambicioso e estimulante “Plano Nacional Ruas Visíveis”. 

Quando a arquitetura passou a utilizar materiais e formas para causar desconforto/impedimento de atividades em locais públicos?

Cláudio Crispim: Arquitetura hostil é o conjunto de medidas, técnicas, ações e materiais, em sua forma concreta, usado para gerar desconforto, restrição ou impedimento de certos tipos de atividades, a certos indivíduos ou grupos de indivíduos com características tidas como “indesejadas” para aquele espaço, em áreas públicas. Segundo alguns pesquisadores, a “arquitetura hostil” teve seus primeiros exemplares nos anos 1990, em zonas centrais de apelo comercial/financeiro. Porém, elementos de exclusão na arquitetura têm raízes muito mais antigas, por exemplo, em estratégias de cercamento de locais privados em áreas rurais; e muros, concertinas e cercas elétricas em condomínios residenciais e lotes privados nas áreas urbanas. 

E quando ganha o nome de “hostil”? 

O nome de “arquitetura hostil” é muito contraditório e tem origens na língua inglesa, como “hostile architecture” ou “architectural exclusion”. Mas, a sociedade civil organizada de arquitetura e urbanismo está paulatinamente rechaçando este termo. No entanto, é longo o debate para se chegar a um termo consensual e, ao mesmo tempo, impactante. Inclusive, já denominada “arquitetura anti-mendigo”.

Como essa “arquitetura” se manifesta nas cidades?

Cláudio Crispim: De múltiplas formas, seja em bancos repartidos para uma pessoa não se deitar; espetos em superfícies horizontais para pessoas não se sentarem; grades embaixo de passarelas e viadutos para pessoas não se protegerem das intempéries; grades em praças e jardins para as pessoas não utilizarem fora do horário determinado ou mesmo poderem fazer suas necessidades fisiológicas em espaços onde não existem banheiros públicos; lixeiras anti-catadores… Um caso emblemático, recente e muito triste é o do cinema Roxy, em um dos bairros de estratos sociais mais diversos do Brasil que é Copacabana, no Rio de Janeiro/RJ. Por lá, foram instalados chuveirinhos embaixo das marquises para que a população em situação de rua não se abrigasse sob estes locais. 

Qual a lógica por trás desse tipo de intervenção? 

Cláudio Crispim: Uma lógica de dupla-exclusão, em que não basta o cidadão ser excluído de seus direitos básicos assegurados pela Constituição (como habitação, saúde, educação e alimentação, entre outros), como lhe é retirado também o direito à permanência em lugares de uso público. Nesse sistema, a exclusão é ainda mais perversa, pois inviabiliza até mesmo a mais precária alternativa para quem já está, muitas vezes, no limite da sobrevivência. A solução para o problema social passa a ser, na lógica da dupla-exclusão, impedir que os espaços públicos sejam ocupados por pessoas em situação de vulnerabilidade socioespacial. É preferível, no sistema da Arquitetura Hostil, que os lugares permaneçam inutilizáveis, vazios, sujos, úmidos, poluídos, escuros e sobretudo desocupados por cidadãos “indesejáveis”. 

Além de pessoas em situação de rua, a arquitetura hostil visa repelir outros grupos sociais? 

Cláudio Crispim: Em uma segunda escala menor também são repelidos os trabalhadores manuais, que precisam de lugares públicos para se alimentar, descansar, trocar de roupa e são “rechaçados” pelos seguranças privados, pela própria polícia e pelas construções hostis. A necessidade de alguns grupos concebidos nos próprios espaços urbanos públicos realizarem atividades diferenciadas nestes mesmos espaços, como le parkour, skate, apresentações artísticas etc., fazem com que os grupos contrários, que desejam esta homogeneidade deletéria da construção hostil, ampliem seus domínios sem nenhum compromisso com a coletividade, estabelecendo e restringindo, de forma particular e unilateral, o direito à cidade. 

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Isso é algo que ocorre no mundo todo? 

Cláudio Crispim: Acontece principalmente nos espaços de maior desigualdade socioeconômica, principalmente nos grandes centros urbanos e nas zonas de maior renda, em todo o mundo. Há relatos de arquitetura hostil em Londres, Nova Iorque, Paris, Rio de Janeiro, São Paulo etc., ou seja, mesmo em países desenvolvidos este tipo de característica é utilizada indiscriminadamente. 

De que forma esse “tipo” de arquitetura vai na contramão do que de fato defende a arquitetura? 

Cláudio Crispim: A expressão “arquitetura hostil” tem um nome rechaçado por nossa classe de arquitetos e urbanistas (talvez devesse se chamar “construção hostil”), principalmente nos departamentos do IAB. Afinal, a arquitetura se propõe a gerar bem-estar e cuidado para todos, justamente o oposto do que propõe a arquitetura hostil: uma desintegração nada harmônica, generalizada e tendenciosa de classes econômicas, faixas etárias e interesses. 

De que forma ela invisibiliza problemas sociais graves _ ou coloca luz sobre eles? Você acredita que a arquitetura hostil agrava problemas de desigualdade social nas cidades? Tem a ver com aporofobia? 

Cláudio Crispim: Tem tudo a ver com aporofobia. Além de fragilizar o caráter democrático do espaço público, que tem suas regras de convivência culturalmente aceitas, a arquitetura hostil tem um viés autoritário: passa a prescrever de forma monocrática que usos e funções aquele espaço pode ter, impossibilitando usos alternativos através da violência contra quem confere aos equipamentos públicos funcionalidades alternativas às projetadas.

Usando o projeto e, assim, a arquitetura, como instrumentos dessa violência, a arquitetura hostil privilegia um sistema social e econômico que exclui determinados grupos, perpetuando a exclusão social como forma institucionalizada de resolver o problema social das cidades, principalmente das grandes cidades. Ela ressignifica, assim, o espaço público urbano, subvertendo seu conceito original, ainda que isso signifique o cerceamento às necessidades humanas mais básicas, como o dormir de forma minimamente segura, ao abrigo de intempéries. 

Quais exemplos no Brasil e no mundo você considera marcos da arquitetura hostil e seus impactos? 

Cláudio Crispim: Durante as Olimpíadas do Rio, em 2016, pudemos perceber principalmente a colocação de pedras ou elementos embaixo de vários viadutos e passarelas. As ditas “barreiras acústicas” em vias de grande fluxo, principalmente junto a favelas, também foram elementos controversos na paisagem urbana, pois eram barreiras visuais, que acabavam tendo o mesmo significado: uma aversão à população vulnerabilizada, que sequer deve ser visualizada, como se fosse uma população necessária, porém somente durante a prestação de seus serviços de baixo custo. 

Um exemplo mais recente, na França, e mundialmente percebido, foi a instalação de um conjunto de blocos imensos de concreto sob uma ponte que liga o Stade de France e o Parc des Nations, onde moradores em situação de rua anteriormente se abrigavam. 

Na sua opinião, existe um dilema ético no uso da arquitetura hostil para “controlar” o comportamento social? 

Cláudio Crispim: Sim. Devemos reconhecer e incentivar que os investimentos públicos devam ir na direção da inclusão e integração de espaços, conformando-os em acordo com a paisagem em que se inserem, especialmente viabilizando transportes ativos, não-motorizados, com iluminação, limpeza e manejo de águas, convertendo-os em exemplos de arquitetura inclusiva, em vez de aplicar recursos públicos inócuos em ilusórios exemplares de arquitetura hostil, construídos para afastar o problema do testemunho público, e não para colaborar com sua solução. É, sobretudo, entender que a cidade não pode ser projetada para atender apenas a uma parcela da população e expulsar outra. A cidade não se “resolve” perpetuando a lógica da exclusão com novas, mais perversas e mais hostis exclusões. 

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A chamada arquitetura hostil encontra fôlego na sociedade?

Cláudio Crispim: Não há quem a defenda abertamente, afinal são elementos segregadores em múltiplas e pulverizadas dimensões, acabando por afetar populações que sequer têm voz para se defender e também são culturalmente segregadas. Não geram força e/ou interesse para uma tréplica de quem as aplicou, por exemplo. Porém, são ações perpetuadas até mesmo por escritórios e empresas de design, arquitetura e construção civil, que atendem a estes interesses/clientes e ferem seus próprios códigos profissionais de conduta. 

Há exemplos de cidades ou projetos urbanos que estão buscando soluções mais humanizadas para esses problemas? 

Cláudio Crispim: O avanço nas leis anti-arquitetura hostil em todo o País, principalmente nas cidades mais ricas onde se vê com mais clareza a disparidade econômica, ajudou o tema a entrar na pauta, porém ainda carece muito de fiscalização, denúncia e inclusão social, de forma simultânea. Os abrigos sociais para acolhimento da população mais vulnerável, políticas públicas sanitárias para a população de mais baixa renda, como a atual distribuição de absorventes íntimos femininos e a internação voluntária em programas de recuperação de dependência química, a necessária instalação de banheiros públicos ou o acesso franqueado e gratuito a estes em espaços e prédios públicos… A lista de ações é extensa e temos muitas iniciativas globais, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), que ajudam a nortear as agendas urbanas. 

Quais alternativas de design urbano poderiam substituir a arquitetura hostil, sem comprometer a segurança e a ordem pública? Como os arquitetos e urbanistas podem equilibrar a necessidade de espaços seguros com a inclusão social? 

Cláudio Crispim: A arquitetura já fez seu papel nestes espaços, com o desenho urbano e arquitetônico que os gerou e, posteriormente, foram desvirtuados. As alternativas não deverão vir do desenho urbano, mas são socioculturais: que os espaços públicos possam ser adotados por empresas e parcerias, como também possam incluir a população em situação de rua para manter estes próprios espaços, com capacitação apropriada, de forma a subsidiar parte de seus custos com moradias sociais, atuando como “zeladores públicos”. É, ainda, recomendar a instituição de programas socioculturais que aproximem estes espaços do uso público democrático, com funções adequadas, tais como atividades artísticas, esportivas, feiras temáticas e subsídios para comércios e serviços de microempreendedores individuais. 

Como o poder público pode atuar para promover um design urbano mais inclusivo e acolhedor? 

Cláudio Crispim: Uma das minhas ações preferidas (e talvez mais utópica) é a de capacitar e integrar as populações que se estabelecem temporariamente nos espaços públicos para que cuidem dos mesmos, como a rega de jardins, de varrição e de “olhos da rua” que geram segurança, como diria a Jane Jacobs. Esta população poderia ser cadastrada nos programas sociais e abrigada temporária e progressivamente, até conseguir sua emancipação da situação de rua. É um debate nada simples, mas que já foi iniciado. Agora, precisa ser aprofundado.