Inteligência, um elo entre condomínios e cidades

Especialista em Gestão e Inovação em Cidades Inteligentes, Regiane Relva explica como o conceito pode ser aplicado aos condomínios, criando uma integração de impacto positivo na vida das pessoas.

Por Nathalia Ribeiro em 26 de novembro de 2024 9 minutos de leitura

Regiane Relva Romano condomínios inteligentes
Regiane Relva Romano (Foto: Arquivo pessoal)

A implementação de tecnologias inteligentes nos espaços urbanos é uma forma de transformação. Para a especialista em Gestão e Inovação em Cidades Inteligentes e mestre e doutora em Tecnologia da Informação, Regiane Relva Romano, ela tem um papel essencial para a criação de projetos que não só aprimoram a qualidade de vida das pessoas, mas também geram benefícios para a sustentabilidade e eficiência das cidades. Os condomínios inteligentes são um elo desse processo. Equipados com tecnologias que otimizam desde a gestão de energia até a segurança, eles estão transformando a maneira como as pessoas interagem com o ambiente em que vivem, integrando inovação, gestão e bem-estar.

Diretora de Inovação da Vip-Systems e diretora de Cidades Inteligentes da Faculdade de Engenharia de Sorocaba (Facens), Regiane já atuou no Ministério da Ciência e Tecnologia, quando foi lançando o Plano Nacional de IoT e onde colaborou para a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Hoje, se dedica justamente a promover essa conexão por meio de soluções inovadoras que integram as cidades, os condomínios e o futuro. A gestão automatizada, o controle de acesso por biometria, a redução do consumo de energia e o monitoramento de segurança são apenas algumas das inovações que visam atender às necessidades dos moradores, ao mesmo tempo em que contribuem para um futuro mais sustentável e inteligente, conforme ela compartilha na entrevista a seguir.

Você explora os princípios das cidades inteligentes no contexto de condomínios inteligentes. Como isso se dá?

Regiane Relva Romano: Nosso foco tem sido levar o conceito de cidades inteligentes para dentro dos condomínios. Vale destacar que não existe uma definição única para cidade inteligente, pois escolas americanas e europeias, por exemplo, têm abordagens diferentes. Nós adotamos uma visão mais abrangente, inspirada na perspectiva europeia, onde o cidadão é colocado no centro. A partir de suas necessidades, utilizamos, ou não, soluções tecnológicas. Aplicamos o mesmo conceito aos condomínios inteligentes, considerando a interação de todos os aspectos: econômicos, culturais, humanos, sociais, ambientais e tecnológicos.

Quais premissas orientam essa abordagem de condomínios inteligentes?

Regiane Relva Romano: Para desenvolver um condomínio humano, inteligente e sustentável é fundamental colocar o condômino no centro. A partir das necessidades específicas daquela comunidade, aplicam-se os recursos mais adequados. Nesse contexto, a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes traz insights importantes. Tive a oportunidade de contribuir para sua elaboração há três anos, enquanto atuava no Ministério da Ciência e Tecnologia. Na época, em 2019, estávamos lançando o Plano Nacional de IoT, que estabelecia quatro áreas prioritárias: cidades, agronegócio, saúde e indústrias.

Durante esse período, pesquisamos o que seria uma cidade inteligente no contexto brasileiro. A ideia era criar cidades comprometidas com o desenvolvimento urbano sustentável, promovendo uma transformação digital alinhada a aspectos econômicos, ambientais, socioculturais e tecnológicos. Isso inclui planejamento estratégico, inovação, trabalho em rede, governança colaborativa e serviços que realmente melhorem a qualidade de vida das pessoas. Esse conjunto de princípios pode ser aplicado diretamente aos condomínios inteligentes, seguindo a mesma lógica.

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Quais são os principais elementos que os condomínios inteligentes devem incorporar para garantir eficiência, sustentabilidade e bem-estar aos moradores?

Regiane Relva Romano: Um condomínio inteligente precisa ser inclusivo, acolhedor, diverso e justo. Ele deve promover um ambiente vivo onde os moradores possam construir uma comunidade baseada na união, no respeito mútuo, na segurança e na resiliência. Além disso, deve ser ambientalmente responsável, proporcionando um espaço seguro, ecologicamente correto e que utilize tecnologia de forma respeitosa à privacidade dos residentes.

Para isso, deve-se focar na sustentabilidade, redução de custos e otimização do consumo em diversas áreas. O objetivo é garantir que a administração atual não comprometa o bem-estar das gerações futuras. Um condomínio inteligente precisa oferecer canais de comunicação direta com os moradores, além de uma infraestrutura que permita o desenvolvimento econômico, adaptando-se às mudanças sociais. A pandemia, por exemplo, transformou a dinâmica dos condomínios: práticas antes restritas, como trabalhar em casa, se tornaram comuns. Isso mudou as necessidades e prioridades, exigindo uma nova abordagem na gestão e nos recursos disponíveis dentro desses espaços.

Quais mudanças permanentes você acredita que ocorreram na forma como as pessoas vivem, interagem e utilizam os espaços comuns?

Regiane Relva Romano: Nos condomínios com os quais convivo, percebo que muitas pessoas começaram a gerar renda diretamente em suas casas. Em um, por exemplo, há uma moradora que tem um salão de cabeleireiro, outra oferece massagens, prepara alimentos e há quem trabalhe como personal organizer. Esse movimento trouxe empregos para dentro do próprio condomínio, alinhando-se ao conceito de uma “cidade de 15 minutos“, onde tudo que você precisa está acessível a pé, reduzindo a necessidade de deslocamentos que impactam o meio ambiente.

Qual o impacto dos condomínios inteligentes que abraçam esses novos contextos?

Regiane Relva Romano: Quando um condomínio incentiva esse tipo de empreendedorismo e co-criação, promove cooperação entre os moradores. Além de reduzir a poluição [provocada por deslocamentos de automóveis], isso fortalece a economia local, pois os serviços são contratados diretamente de vizinhos. É comum encontrar aulas de inglês, espanhol e outras atividades sendo oferecidas nas próprias casas dos moradores, sem comprometer a segurança do condomínio. Na verdade, essa dinâmica impulsiona a inovação nos negócios locais.

A tecnologia desempenha um papel fundamental nesse processo, permitindo a criação de plataformas que conectam

Qual é o papel da tecnologia nessa nova organização da dinâmica condominial?

Regiane Relva Romano: Hoje, realizo praticamente todas as minhas atividades sem sair de casa, algo que só foi possível graças à tecnologia. Essa mudança reflete a busca crescente por qualidade de vida, especialmente dentro dos condomínios. No entanto, para que essa qualidade de vida seja plenamente alcançada, é necessário considerar os nove eixos que trabalhamos no conceito de cidades inteligentes.

Quais são esses eixos?

Regiane Relva Romano: Um deles é o meio ambiente. É preciso avaliar como está a coleta seletiva no condomínio, o cuidado com as áreas verdes e as iniciativas para reduzir emissões de CO2. Isso exige uma responsabilidade socioambiental diferenciada. Outro eixo essencial é a energia, que pode ser um desafio, como no local onde moro, onde quedas de energia são frequentes. Para contornar esse problema, algumas pessoas estão instalando geradores a diesel, o que aumenta a poluição. Uma alternativa mais sustentável seria investir em energia fotovoltaica, com sistemas que armazenem energia em baterias para uso em momentos de necessidade. Esse tipo de solução está mais acessível financeiramente, mas muitos ainda desconhecem sua viabilidade.

E os outros eixos, o que contemplam?

Regiane Relva Romano: Outro eixo fundamental é o de saúde e qualidade de vida. Isso inclui a instalação de equipamentos como academias, mas também a oferta de serviços, como massagens, campanhas de doação de sangue e palestras educativas. Ações agregam valor à saúde e ao bem-estar de toda a comunidade.

Já o eixo de indústria e negócios envolve o incentivo ao empreendedorismo dentro do condomínio. Essa iniciativa não apenas promove maior integração entre os moradores, mas também contribui para fortalecer as condições financeiras necessárias à manutenção do condomínio, beneficiando toda a coletividade. Temos também o eixo da educação que vai muito além das crianças. Em condomínios, é importante considerar também os adultos e, especialmente, os idosos. Muitos idosos vivem nesses espaços sem atividades adequadas à sua faixa etária. Oferecer aulas de artesanato, culinária ou até mesmo atividades artísticas em um espaço do empreendimento pode trazer grandes benefícios. Essas ações, além de promoverem educação, também impactam outros eixos como o de saúde e qualidade de vida, e o de empreendedorismo.

E quais seriam os outros quatro eixos?

Regiane Relva Romano: Outro eixo importante é o de urbanização. Ao pensar em um condomínio, é fundamental garantir a acessibilidade para todos, o que não é responsabilidade exclusiva de quem construiu o empreendimento, mas de todos os moradores. Ainda temos o eixo de mobilidade e segurança, para o qual a tecnologia pode ser uma grande aliada, oferecendo soluções para controlar o acesso e garantir maior segurança, sem comprometer a fluidez do ambiente. 

Por fim, temos o eixo de tecnologia da informação e comunicação (TIC) e o de governança. A TIC é essencial para uma gestão mais eficiente e segura no condomínio, sempre em conformidade com a LGPD. Ela também aprimora a gestão da portaria, com controle de acesso por biometria, além de organizar dados sobre animais de estimação, como vacinação e identificação. Essas ferramentas garantem um ambiente mais seguro, organizado e eficiente. A governança, por sua vez, envolve a gestão de todas as atividades dentro do condomínio, incluindo projetos em andamento, finanças e consumo de recursos. Um dashboard integrado pode mostrar informações como os gastos com água e outras despesas é um exemplo de boa prática pois oferece uma visão clara sobre a saúde financeira e a eficiência do condomínio, permitindo um gerenciamento mais transparente e eficaz.

A automação vem crescendo em diversas áreas. Como ela tem se dado no âmbito do condomínio, contribuindo para os eixos mencionados?

Regiane Relva Romano: A automação dentro do condomínio pode otimizar a gestão e aumentar a segurança. É possível implementar uma ouvidoria inteligente para registrar e solucionar problemas meio de um aplicativo que gerencie as manutenções, ou que centralize informações sobre eventos, áreas disponíveis para aluguel e outros serviços, tudo online. No aspecto de segurança, é possível integrar tecnologias como a leitura de placas para identificar veículos com problemas, como roubo ou excesso de velocidade, desde a portaria, e o uso de biometria e câmeras de monitoramento inteligente para verificar a entrada e saída de visitantes, alertar os moradores sobre visitas e até monitorar situações como crianças ou animais soltos, lixo fora do lugar ou riscos de fogo e fumaça. A inteligência artificial pode detectar essas ocorrências, proporcionando uma segurança mais eficiente e em tempo real.

Já existem diversas tecnologias no mercado. O que falta para que elas sejam implementadas e para que possam desempenhar todo seu potencial de impactar positivamente a vida das pessoas?

Regiane Relva Romano: Temos, por exemplo, diversas soluções chamadas de AIDC (Captura Automática de Dados e Identificação) que já estão disponíveis em muitos condomínios, mas, muitas vezes, não são usadas de maneira eficaz. Nossa proposta é integrá-las, permitindo o controle de portarias com reconhecimento facial, alertas de segurança e até botões de pânico em caso de emergência. Além disso, essas tecnologias podem ser integradas a outros dispositivos já existentes, como catracas, cancelas ou semáforos. Outro exemplo é o aplicativo “Papa Fila”, que ajuda a evitar longas filas no acesso ao condomínio, permitindo a liberação de entrada via dispositivo móvel. Esse sistema já está sendo utilizado em mais de 40 residenciais.

Com a crescente preocupação sobre privacidade e segurança como você vê o equilíbrio entre o uso de tecnologias de automação e rastreamento em condomínios inteligentes. É possível adotar essas tecnologias sem comprometer a segurança individual?

Regiane Relva Romano: A discussão sobre segurança e privacidade no mundo atual se tornou ainda mais relevante, especialmente quando consideramos a automação e o rastreamento constante. A verdade é que, muitas vezes, as pessoas já estão abrindo mão da sua privacidade sem perceber. Elas compartilham detalhes de suas vidas nas redes sociais, como o que estão comendo, com quem estão, onde vão, tudo isso alimentando um banco de dados que pode ser acessado por terceiros. Quando participamos de reuniões de condomínio é interessante observar como o uso de aplicativos como Instagram ou WhatsApp pode revelar mais do que imaginamos. Por exemplo, ao postar uma foto, a tecnologia já pode rastrear a localização, a data, a hora e até identificar as pessoas presentes na imagem simplesmente usando a Inteligência Artificial.

Além disso, em todos os lugares que frequentamos, estamos sendo filmados por câmeras de segurança sem que ninguém nos peça autorização. Essa realidade torna evidente que, de certa forma, estamos sendo monitorados constantemente.

A implementação dessas tecnologias encarece o empreendimento, tanto em termos de instalação, quanto de manutenção? Como isso impacta o custo total do projeto a longo prazo?

Regiane Relva Romano: Pelo contrário, essas tecnologias ajudam a reduzir os custos, não aumentá-los. Com a tecnologia implementada não é necessário manter uma equipe para monitorar o condomínio 24 horas por dia. Em vez disso, você foca nas áreas que realmente precisam de atenção, o que reduz o número de funcionários e de problemas pois os moradores sabem que têm um canal de comunicação direto para relatar qualquer situação. Além disso, a tecnologia proporciona a rastreabilidade das solicitações. A gestão eficiente, com apenas um clique, evita custos desnecessários e melhora a experiência de todos. 

Qual é o principal desafio na implementação de um condomínio inteligente?

Regiane Relva Romano: A maior dificuldade está na mudança cultural pois as pessoas são naturalmente resistentes ao novo. Para superar isso, o primeiro passo é identificar a liderança dentro do condomínio, pois sempre há alguém com influência sobre os outros. Uma vez identificada essa liderança, formamos uma equipe multidisciplinar e designamos um gestor dedicado ao projeto. Envolvemos todos os moradores no processo, não apenas nas assembleias, mas também por meio de grupos de WhatsApp e enquetes, garantindo que as opiniões sejam registradas.

O objetivo é entender os principais problemas enfrentados pelos moradores. Com base nesse diagnóstico, desenvolvemos um plano diretor, que inclui a identificação das tecnologias necessárias, estimativas de custos e possíveis parcerias com empresas dispostas a testar novas soluções dentro do condomínio, o que pode ajudar a reduzir os custos de implementação. Em seguida, criamos um plano de ação, implementamos um projeto piloto, medimos os resultados e fazemos ajustes conforme necessário como em um ciclo de melhoria contínua. Para garantir uma abordagem mais eficaz, muitas vezes contratamos profissionais externos para desenvolver esse plano diretor, o que facilita a coleta de dados, a criação de propostas e a execução do projeto.

O modelo poderia ser ampliado para uma cidade?

Regiane Relva Romano: O sistema de condomínio inteligente e sustentável coloca os moradores como protagonistas, o que os motiva a se engajar mais ativamente, diminuindo a necessidade de supervisão constante. Esse conceito pode ser expandido de um condomínio para uma cidade – aplicando as soluções de um micro ecossistema para o contexto urbano. Um exemplo disso é o projeto de bairro inteligente que estou desenvolvendo em Sorocaba. Começamos envolvendo as lideranças locais, como pastores, médicos, donos de comércio e outros influenciadores da comunidade. Organizamos reuniões para explicar o que é uma cidade inteligente e como os moradores podem contribuir para melhorar o ambiente onde vivem.

Um grupo de crianças, por exemplo, pediu a construção de uma pista de skate. Atendemos, mas também colocamos um parquinho e equipamentos de academia ao ar livre. A chave do sucesso foi envolver os próprios moradores na gestão e cuidado desses espaços, garantindo que fossem preservados.

O engajamento das pessoas, portanto, é estratégico? Ou seja, as pessoas estão no centro, não apenas como fim, mas também como meio do conceito de condomínio inteligente?

Regiane Relva Romano: Ao dar voz aos cidadãos, criamos soluções que atendem às necessidades reais de cada comunidade. O que um bairro precisa pode ser completamente diferente de outro. Como gestor é fundamental observar as necessidades específicas de cada local para criar soluções que realmente melhorem a vida dos moradores, transformando o conceito de condomínio inteligente em um solucionador de problemas real para a comunidade.

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