Filantropia estratégica, um elo de empoderamento da sociedade e da democracia

Reconhecida por sua atuação diplomata, Rebecca Tavares compartilha sua visão sobre filantropia estratégica em entrevista ao Habitability.

Por Nathalia Ribeiro em 4 de março de 2024 6 minutos de leitura

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Rebecca Tavares (Foto: Divulgação)

Em meio às paisagens ensolaradas da Califórnia, nos Estados Unidos, a estadunidense Rebecca Tavares trilhou seu caminho rumo à filantropia estratégica global com grande impacto no Brasil. Os serviços prestados ao país, entre outras coisas, lhe renderam o reconhecimento “Ordem de Rio de Branco”, a maior honraria concedida pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

Desde 2019 à frente da BrazilFoundation – organização sem fins lucrativos com foco em gerar impactos social e ambiental positivos no País por meio da filantropia estratégica -, Tavares foi premiada com o Yale Women Impact em 2019 e com o Prêmio de Melhor Organização por sua Trajetória Social, em 2023. Sob sua liderança, a BrazilFoundation alcançou grandes conquistas, incluindo a arrecadação de mais de US$ 35 milhões para beneficiar Organizações da Sociedade Civil em todo o Brasil.

Graduada pela Universidade de Yale e doutora em Educação pela Universidade de Harvard, integra atualmente o Conselho de Futuros Globais sobre Turismo Sustentável do Fórum Econômico Mundial. Sua vasta experiência como diplomata da Organização das Nações Unidas (ONU) é marcada pela sua atuação em prol de políticas de desenvolvimento econômico e na gestão de mudanças em ambientes complexos, com foco particular na América Latina e no sul da Ásia. Equidade de gênero e diversidade étnico-racial também fazem parte de sua atuação, especialmente como Representante Regional da ONU Mulheres em diversos países, incluindo o Brasil.

Em entrevista ao Habitability, Rebecca compartilhou sua visão sobre os desafios e oportunidades da filantropia estratégica no Brasil, destacando o compromisso contínuo com a defesa da diversidade: promoção da equidade de gênero e o empoderamento feminino, bem como a inclusão de grupos marginalizados como um todo. Para ela, as ações sociais, programas e políticas devem ser um meio de amplificar as vozes das comunidades locais, visando à construção de uma sociedade mais justa e inclusiva para todos.

Você possui uma vasta experiência em liderança na elaboração de políticas de desenvolvimento econômico e gestão de mudanças. Como essa experiência tem influenciado sua atuação na promoção da filantropia estratégica?

Rebecca Tavares – Comecei na filantropia apoiando os movimentos para cidadania e participação da sociedade civil na Assembleia Constituinte de 1988. Na Fundação Ford, apoiamos as primeiras associações de empregadas domésticas no Brasil, tirando a categoria da informalidade e garantindo o direito à carteira assinada. Há anos atuo com as questões de igualdade de gênero, empoderamento de meninas e mulheres, saúde e direitos reprodutivos, diversidade e inclusão étnica e racial.

Sem dúvida levo toda essa experiência para o meu trabalho à frente da fundação. Além disso, sempre me inspirei nas lideranças extraordinárias dos movimentos sociais do Brasil e tenho a honra de acompanhar algumas dessas lideranças em seu incansável engajamento pela justiça social. Ou seja, a maior parte da minha vida profissional tem sido dedicada ao fortalecimento da sociedade civil brasileira, um pilar imprescindível da democracia.

À frente da BrazilFoundation, você aumentou significativamente o volume de contribuições, registrando um crescimento de quase 40% em 2020. O novo modelo de negócios e a implementação de 12 fundos de doadores designados e aconselhados foi responsável por essa conquista?

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Foto: Reprodução/ Site da BrazilFoundation

Rebecca Tavares – Os resultados podem ser atribuídos a alguns fatores principais, com destaque para os vários modelos de fundos e parcerias para captar recursos que a BrazilFoundation oferece às empresas, funcionando como uma intermediadora capaz de distribuir investimentos de forma eficiente e adequada aos objetivos do doador. Além disso, ainda tem a expertise da fundação no monitoramento dos recursos e na transparência com a apresentação dos resultados dos investimentos.

Como você vê o papel da filantropia no fortalecimento da governança e da sociedade civil, especialmente no Brasil?

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Instituto Revoar (Foto: Reprodução/ Site da BrazilFoundation)

Rebecca Tavares – Temos visto nos últimos anos uma ampliação do papel da filantropia no Brasil. Notadamente pós-pandemia, acompanhamos uma onda crescente de iniciativas voltadas à responsabilidade social e à consolidação da filantropia estratégica como impulsionador de políticas públicas no País. As organizações da sociedade civil vêm ganhando cada vez mais protagonismo, já que conseguem compensar, ao menos em parte, a capacidade reduzida do Estado de atuar em políticas sociais. Além disso, trazem soluções aos interessados em investimento social, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, hoje comprometidas com a adesão à agenda ESG [do inglês, Environmental, Social and Governance – Ambiental, Social e Governança].

O ano de 2022 foi marcado por uma mudança profunda na área de programas da BrazilFoundation, resultando na criação de quatro fundos temáticos em áreas prioritárias. Quais são as principais metas e iniciativas desses fundos?

Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, uma das iniciativas do fundo “Empreendedorismo Negro” (Foto: Reprodução/ Site da BrazilFoundation)

Rebecca Tavares – Os fundos temáticos respondem a temas prioritários para a agenda do setor social no Brasil, sendo eles o “Empreendedorismo Negro”, “Equidade de Gênero”, “Meio Ambiente & Mudanças Climáticas” e “Educação”. Cada fundo apoia iniciativas específicas, como acelerar empreendimentos de pessoas negras, promover advocacy de gênero, apoiar populações tradicionais em questões ambientais e levar inovação à educação pública. Acreditamos que investir nessas temáticas é essencial para construir uma sociedade mais justa, igualitária e sustentável. Ao direcionar recursos para áreas-chave, podemos enfrentar desafios complexos e promover um desenvolvimento inclusivo e duradouro em nossa sociedade.

Como esses princípios estão incorporados nas iniciativas e programas da organização?

Rebecca Tavares – A BrazilFoundation tem como missão apoiar organizações da sociedade civil (OSCs) que promovem equidade, justiça socioambiental e oportunidades no País. Atua no combate ao racismo estrutural, à discriminação de gênero e desigualdades socioeconômicas, com foco em gerar impacto positivo e duradouro, contribuindo para uma sociedade mais justa e sustentável no Brasil. 

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Rebecca Tavares e Gisele Bündchen (Foto: Reprodução/ Site da BrazilFoundation)

Em 2022, quando ocorreu uma transformação na área de programas da BrazilFoundation, resultando na criação dos quatro fundos temáticos que mencionei, uma série de apoios foram recebidos, incluindo contribuições de figuras renomadas como a filantropa e ativista MacKenzie Scott, a top model e filantropa Gisele Bündchen, a cantora e atriz Selena Gomez, além de organizações, como Mubadala Capital, Porticus, Prudential Foundation, Ambipar, Grupo Partage e Banco Master, totalizando uma receita recorde de US$ 9,5 milhões.

E como são escolhidos os projetos que a BrazilFoundation irá apoiar?

Rebecca Tavares – O processo de seleção da BrazilFoundation se inicia com uma chamada aberta ou carta-convite para a inscrição de propostas. A partir de um conjunto de critérios baseados em inovação, potencial de gerar impacto socioambiental efetivo, escalabilidade e sustentabilidade, são selecionados os projetos finalistas para receberem visitas in loco. Após criteriosa avaliação de uma equipe técnica e um comitê de especialistas nas respectivas temáticas, são definidas as organizações que receberão apoio. 

Uma das áreas de especialização em sua carreira é a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas. Como você acha que esses temas estão progredindo no Brasil e quais desafios ainda precisam ser superados?

Associação Central da Cidadania (Foto: Reprodução/ Site da BrazilFoundation)

Rebecca Tavares – Embora tenhamos alcançado conquistas recentes, ainda enfrentamos desafios consideráveis na luta contra as desigualdades nos direitos das mulheres, meninas e da comunidade LGBTQIA+, que perpetuam disparidades raciais, de gênero e socioeconômicas em nosso País. É imprescindível fortalecer iniciativas que promovam o empoderamento econômico dessas populações, pois isso é fundamental para impulsionar avanços significativos na agenda de equidade de gênero e nos direitos das mulheres.

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Quais são os principais desafios para a promoção da igualdade de gênero e equidade racial no Brasil por meio da filantropia estratégica?

Foto: Reprodução/ Site da BrazilFoundation

Ainda que mais da metade da população brasileira se identifique como negra ou parda, esse grupo enfrenta uma sub-representação significativa nas iniciativas de desenvolvimento socioeconômico. Essas populações sofrem desigualdades no mercado de trabalho, distribuição de renda, condições de vida, moradia, educação e representação política. 

Afrodescendentes têm o dobro de chances de viver na pobreza em comparação com a população branca, com um impacto ainda maior para mulheres negras. Mesmo com potencial econômico do empreendedorismo negro, a dificuldade de acesso a linhas de crédito e a falta de investidores representam uma barreira, especialmente para as afro empreendedoras.

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O nosso Fundo de Empreendedorismo Negro foi criado com o objetivo de promover autonomia e sustentabilidade para pessoas negras em diversas áreas econômicas. Apoiamos iniciativas para construir um ecossistema mais solidário e permitir que as pessoas negras empreendedoras tenham acesso à capital, cadeias de suprimentos, mercados e autonomia financeira.

Quais as suas perspectivas em relação à filantropia estratégica?

Rebecca Tavares – Continuaremos trabalhando para o fortalecimento da sociedade civil brasileira e criação de uma consciência filantrópica no País. Em 24 anos de atividades, a BrazilFoundation investiu mais de US$ 50 milhões; apoiamos mais de mil organizações da sociedade civil nas cinco regiões; e em 2023 impactamos mais de 1 milhão de pessoas, direta ou indiretamente. Temos uma importante ferramenta para a sustentabilidade financeira da organização no longo prazo, que é o fundo patrimonial. Nossa meta é captar US$ 25 milhões até o final de 2025.