Em meio a cidades que crescem rápido demais, marcadas pelo concreto, pela desigualdade e pela urgência climática, surge a pergunta: como projetar espaços que acolham pessoas, histórias e também a própria natureza? É nesse território de inquietações e possibilidades que atua Guto Requena, arquiteto que, desde 2008, conduz seu estúdio em São Paulo explorando como a tecnologia pode se unir à sustentabilidade e à experiência afetiva. Seu trabalho abrange desde edifícios e interiores até planejamento urbano, design de produtos e arte interativa, sempre buscando criar projetos que façam sentido para quem os habita.
Em 2019, Guto fundou o Juntxs – Laboratório de Estudos sobre Empatia, Design e Tecnologia, onde desenvolve instalações interativas e imersivas, reforçando sua investigação sobre como o design pode gerar conexão e emoção. Ao longo dos anos, seu estúdio recebeu prêmios nacionais e internacionais e expôs projetos em diferentes países. Guto também acumulou experiências acadêmicas relevantes: por nove anos foi pesquisador do Nomads.USP, na Universidade de São Paulo, e é professor convidado da Université Sorbonne, em Paris. Desde 2013, ministra palestras e aulas internacionalmente, enquanto cria, escreve e apresenta programas de TV sobre arquitetura e design, sendo apresentador do Queer Eye Brasil na Netflix. Guto também foi o convidado do episódio 87 do podcast Habitability.
Nesta entrevista ao Habitability, ele compartilha sua visão sobre cidades mais humanas, a urgência de repensar nossa relação com a natureza, o papel da tecnologia como ferramenta de empatia e cuidado, e o potencial do Brasil em liderar a adoção de materiais bio-baseados na construção civil. Entre passado e futuro, tradição e inovação, ele mostra que projetar com afeto é possível e necessário.
Diante do cenário urbano atual, marcado pela crise climática, desigualdades nas cidades e o predomínio do concreto, qual você acredita ser a urgência mais negligenciada pela arquitetura?
Guto Requena: O que eu mais sinto falta são duas coisas. De um lado, esse olhar para as pessoas com empatia, entender que as metodologias e as ferramentas de arquitetura e de design precisam, e devem, colocar isso em primeiro plano. Temos o potencial de criar cidades mais afetuosas e humanas.
A segunda questão é a relação com a natureza, a necessidade de trazê-la de volta, de projetar pensando em múltiplas espécies, e não apenas na humana. Isso envolve o uso da biofilia, do verde, de mais florestas e plantas, e, junto com elas, de todas as outras espécies. Acho que isso é o mais urgente a ser feito.
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Você costuma falar sobre construir com afeto. O que significa projetar espaços com afeto e empatia?

Guto Requena: Existem diferentes maneiras de abordar a questão da empatia, e eu venho investigando isso em diferentes escalas. Acho que o exemplo mais prático é o Love Project (o Projeto Amor) que desenvolvi ao longo de 12 anos. Nele, convido pessoas a contarem uma grande história de amor e utilizo sensores que captam o biofeedback delas, sensores de atividade cerebral, batimentos cardíacos e voz, que detectam as emoções. A partir desses dados, crio objetos impressos em 3D.

Outro exemplo é uma instalação interativa chamada Empatias Mapeadas. Trata-se de um pequeno pavilhão arquitetônico, um desenho registrado em código aberto, para ser replicado, que pode funcionar, por exemplo, como um ponto de ônibus ou estar em uma praça pública. As pessoas se sentam, até cinco por vez, colocam o dedo em um sensor que capta os batimentos cardíacos e transforma esses sinais em música generativa e luz, criadas em tempo real.
É uma experiência que ativa o contato humano por meio da escuta dos batimentos de pessoas desconhecidas. Existem, portanto, diferentes formas de estimular essa chamada empatia, emoções e sentimentos, e o meu interesse particular está justamente no uso das novas tecnologias para isso.
Essas obras respondem ao toque, ao som, ao movimento das pessoas. Que tipo de cidade nasce quando a arquitetura deixa de ser “estática”?
Guto Requena: Temos pensado cada vez mais as cidades a partir do uso de sensores, da coleta de dados e dos feedbacks gerados a partir dessas análises. Há um grupo de pesquisa muito interessante no MIT chamado Sensible City Lab, fundado por Carlo Ratti, que foi o curador da última Bienal de Arquitetura de Veneza, onde esse tema esteve bastante em pauta.
Acabei de voltar de lá e se falou muito sobre essa ideia de uma cidade filtrada por dados, um ambiente em que as informações são coletadas e a inteligência artificial é usada para nos ajudar a interpretar esses dados e oferecer respostas que tornem a cidade mais eficiente.
Com isso, conseguimos mapear, por exemplo, zonas de calor e entender que tipos de políticas públicas precisam ser implementadas, como a criação de parques e áreas verdes, além de identificar regiões com maior ou menor índice de violência, ou obter informações sobre o trânsito. Estamos aprendendo que essas tecnologias já são e tendem a ser cada vez mais fundamentais para o redesenho de cidades mais afetuosas, humanizadas, verdes e sustentáveis.
A formação de arquitetos costuma ser muito técnica. Quais habilidades devem ser desenvolvidas para criar esses projetos afetivos, tecnológicos e socialmente responsáveis? Como desenvolver uma visão crítica e disruptiva, que vá além da estética e da função?
Guto Requena: O trabalho de campo é muito importante na formação dos alunos. É essencial colocá-los em contato prático, não apenas com o conhecimento técnico que a universidade oferece, mas também com experiências reais: visitar comunidades, ir para as periferias, participar de projetos sociais, colocar a mão na massa, aprender sobre bioconstrução, sobre construção em terra. E, junto a isso, valorizar os saberes do Sul Global.
Aos poucos, temos aprendido a falar mais sobre esse tema, mas a nossa formação ainda é, em grande parte, estritamente eurocêntrica. A maioria dos arquitetos e arquitetas que estudamos são homens brancos do Norte Global. Agora, começamos a aprender cada vez mais sobre os saberes do Sul Global, incluindo as formas de fazer arquitetura, de desenhar espaços e de pensar a coletividade a partir dos povos originários e quilombolas.
É fundamental aprender, reconhecer e valorizar essa cultura afrodiaspórica, que tem um impacto profundo na arquitetura brasileira. Acredito que esses saberes e conhecimentos precisam estar entrelaçados ao conhecimento técnico. É isso que forma não apenas um arquiteto, mas um ser humano mais completo.
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Como garantir que a tecnologia aplicada à arquitetura não se torne apenas um adereço futurista, mas uma ferramenta de empatia e cuidado com o cotidiano das pessoas?
Guto Requena: Uma coisa que sempre digo aos meus alunos é: quando vocês criarem algo que envolva muita tecnologia, façam um exercício e retirem a tecnologia. O projeto continua de pé? Continua existindo? Se sim, talvez essa tecnologia esteja sendo usada apenas como maquiagem, como um ornamento decorativo e, nesse caso, não é necessária. Acho que essa é uma boa maneira de filtrar o que realmente faz sentido.
Percebemos cada vez mais que, sim, existe um certo deslumbramento com essas tecnologias e ferramentas. Mas o próprio tempo, e a história das mídias nos mostra isso, se encarrega de filtrar e deixar apenas aquilo que é realmente resistente, relevante e interessante.
De todo modo, o uso de sensores, microcontroladores e tecnologias de interação, comunicação e visualização está mudando, e continuará mudando, de forma definitiva, a maneira como pensamos e fazemos arquitetura. O design computacional e os algoritmos nos permitem criar novas formas e estéticas, além de ajudar a racionalizar processos e reduzir o desperdício nas obras. São tecnologias que, de fato, têm um grande impacto também na sustentabilidade.
Você tem defendido a redução do uso de materiais tradicionais da construção civil, especialmente de concreto. Por onde passa, na prática, essa mudança de cultura no canteiro e no mercado?
Guto Requena: Acho que a palavra de ordem hoje é descarbonizar a construção. Estima-se que cerca de 40% das emissões de poluentes venham da indústria da construção civil, considerando todas as etapas envolvidas no processo. Por isso, descarbonizar é uma ferramenta fundamental quando falamos em emergência climática.

A construção em madeira engenheirada, taipa ou bambu, ou seja, construções bio-baseadas, surge como uma alternativa relevante. Essas soluções podem ser realizadas com alta tecnologia, como a impressão 3D, com métodos industrializados ou até de forma artesanal. Trata-se de uma indústria em pleno desenvolvimento. Na verdade, não há nada de novo nisso, pois historicamente já construímos assim. A diferença é que agora há um olhar mais industrializado e tecnológico sobre esse tipo de construção.
Qual pode ser o papel do Brasil no avanço do uso, por exemplo, de madeira engenheirada e materiais bio-baseados?

Guto Requena: O Brasil tem um grande potencial para liderar esse movimento. Não por acaso, estamos vendo novas fábricas surgirem e o uso crescente da madeira engenheirada, especialmente da CLT (Cross-Laminated Timber). É um caminho sem volta. Esse processo está acontecendo em todo o mundo e mostra que existe, sim, um desenho de futuro possível, um futuro em que usamos menos concreto e adotamos, cada vez mais, materiais bio-baseados.
Em entrevistas anteriores, você apontou que a tecnologia pode ser também ferramenta de memória. Como projetar para o futuro sem romper com os afetos do passado?
Guto Requena: Acredito muito nessa conexão entre passado e futuro, citando Ailton Krenak, nesse futuro ancestral. Só haverá futuro, e só é possível falar sobre ele, quando olhamos para nossas origens, nossas raízes, ou seja, de onde viemos, a história do nosso país, do nosso povo, das nossas tecnologias e da nossa arquitetura. Não se trata de inventar um futuro do zero, isso não existe. O que fazemos é nos referenciar, aprender e construir a partir desse legado.
E essa é uma das grandes riquezas do Brasil: ser um país com uma herança originária e afro-diaspórica, que nos permite enxergar o mundo por outras lentes, diferentes das lentes brancas, europeias, monoteístas, binárias, patriarcais e colonialistas.
Existe, portanto, um sopro de esperança quando percebemos que o Brasil carrega esse legado e esse saber, que precisam ser reconhecidos e valorizados. É justamente dessa união, entre ancestralidade e futuro, entre tradição e novas tecnologias, como a inteligência artificial, que podem nascer caminhos verdadeiramente transformadores.