O modelo de hospedagem que surgiu no Japão há mais de quatro décadas, pensado originalmente como solução prática para viajantes de curta duração, começa a ocupar um espaço inusitado no debate habitacional global. Na Espanha, os chamados hotéis-cápsula vêm atraindo não apenas turistas em busca de estadias econômicas, mas também moradores temporários e, em alguns casos, residentes que não encontram alternativas viáveis de moradia convencional nas grandes cidades.
Movido pela combinação de preços de aluguel em alta, escassez de imóveis acessíveis e novos estilos de vida urbanos, o fenômeno das cápsulas habitacionais na Espanha espelha transformações que também se observam em países como Japão, Austrália e algumas capitais europeias. Ao mesmo tempo em que oferecem uma resposta de curto prazo à crise de habitação, esses espaços mínimos desafiam conceitos clássicos de habitabilidade, qualidade de vida e urbanismo.
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O caso espanhol: hotéis-cápsulas como resposta à crise habitacional
Em meio à escalada dos preços dos aluguéis nas grandes cidades espanholas, uma solução importada do Japão começa a ganhar força: os hotéis cápsula. Inicialmente voltados para turistas e viajantes de curta duração, esses espaços compactos, com cerca de 3 metros quadrados, têm atraído cada vez mais moradores fixos, especialmente jovens profissionais, estudantes e trabalhadores temporários.
Estabelecimentos como o ArtSeven Hostel, no centro de Madrid, já registram hóspedes que renovam suas estadias semana após semana por meses seguidos, um perfil que antes não se esperava. “Pensamos que teríamos mais clientes internacionais do que nacionais e, no final, se tornou o contrário”, diz Efe Paula Funchal, um dos funcionários do Hostel em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia. “Muitas pessoas vêm para o trabalho, por uma semana ou duas, e se tornam clientes fixos”, acrescenta ele.
O sistema de cápsulas oferece acomodações em pequenas unidades individuais ou para duas pessoas, feitas de plástico, onde cada hóspede conta com acesso a Wi-Fi, ar-condicionado, tomada elétrica, iluminação própria e áreas comuns compartilhadas, como banheiros e cozinha.
O professor Luis Miranda, ouvido pela BBC, é um dos que optaram pelo formato. Em vez de enfrentar as exigências rígidas do mercado imobiliário tradicional, como contratos de longo prazo, depósito caução e comprovação de vínculo empregatício, ele paga aproximadamente 25 euros por dia (aproximadamente 160 reais) para viver em uma cápsula.
Natural de Cáceres, ele trabalha em Madri durante a semana e explica: “é praticamente impossível encontrar um aluguel por menos de mil euros por mês (cerca de R$ 6,3 mil), e ainda há proprietários que exigem depósitos de dois ou três meses e contrato de trabalho. Como não consegui alugar outro lugar, optei por essa solução para poder trabalhar aqui durante três dias por semana.” Atualmente, Madri conta com mais de seis hostels que oferecem esse tipo de acomodação em cápsulas.
O sonho da compra da casa própria no país também está cada vez mais distante para grande parte da população jovem. O preço médio do metro quadrado em cidades como Madrid supera os 3.800 euros, e o valor total de um imóvel pequeno facilmente ultrapassa os 200 mil euros, exigindo financiamentos longos e com juros que pesam no orçamento. As condições para crédito imobiliário também são rigorosas, dificultando ainda mais o acesso à propriedade.
Solução temporária que esconde a precarização da moradia

O uso de cápsulas como alternativa habitacional funciona, em muitos casos, como uma solução de curto prazo para a crise de moradia, especialmente para aqueles que enfrentam dificuldades financeiras e não conseguem acessar o mercado tradicional de aluguel ou compra.
No entanto, especialistas apontam que esse cenário é sintomático de um problema mais amplo. Para Javier Gil, pesquisador do Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC), ouvido pelo jornal Público, o crescimento das cápsulas como solução habitacional “precariza pessoas empobrecidas” ao oferecer espaços que não atendem a padrões mínimos de moradia, enquanto mantêm custos por metro quadrado muitas vezes superiores ao aluguel convencional. Essa dinâmica, segundo ele, alimenta a especulação imobiliária, reduz a oferta de moradias tradicionais e transforma uma solução emergencial em fonte de insegurança e vulnerabilidade.
Isso ocorre porque o espaço reduzido e a flexibilidade do contrato encarecem o preço final para o usuário, que acaba pagando mais por um espaço muito menor e com menos garantias de estabilidade. Além disso, Gil aponta que esse fenômeno pode alimentar a especulação imobiliária, já que o mercado reconhece nessas soluções rápidas uma forma de rentabilizar imóveis em regiões valorizadas, reduzindo a oferta de moradias tradicionais e pressionando ainda mais os preços.
O fenômeno não se restringe a Madrid. Em Málaga, por exemplo, empresas como a Superlativo 8 promovem cápsulas como opções para estadias prolongadas, desafiando os limites legais da legislação espanhola, que prevê o uso dessas instalações apenas para hospedagem temporária.
Raquel Rodríguez Alonso, arquiteta urbana e pesquisadora de políticas habitacionais, reforça em entrevista ao Público que “ninguém opta por essas soluções se tiver uma alternativa melhor.” Para ela, a expansão das cápsulas reflete a ausência de oferta habitacional acessível e a exploração da vulnerabilidade das classes menos favorecidas. Ao mesmo tempo, ela alerta para o fato de que esses espaços não podem ser considerados habitação legítima, pois não cumprem normas mínimas de segurança e conforto, configurando uma situação de ilegalidade que coloca em risco os moradores.
Expansão rápida expõe falhas na regulamentação e segurança
O rápido crescimento dos hotéis cápsula em cidades espanholas, como Madri, tem evidenciado lacunas na regulamentação e fiscalização desse modelo de hospedagem. Muitos desses estabelecimentos operam sem as licenças necessárias, contrariando normas urbanísticas e de segurança, o que tem levado ao fechamento de alguns deles pelas autoridades locais.
Em abril de 2025, a Prefeitura de Madrid ordenou o fechamento do Gallery Hostel, localizado no bairro de Carabanchel, por operar sem a licença adequada e por não atender aos requisitos mínimos de habitabilidade e segurança estabelecidos pela legislação municipal.
O estabelecimento oferecia cápsulas de aproximadamente 3 m², alugadas mensalmente para estudantes e trabalhadores temporários, por cerca de 395 euros. No entanto, a falta de ventilação adequada, instalações sanitárias insuficientes e a ausência de condições mínimas de segurança levaram à intervenção das autoridades.
Crise habitacional empurra espanhóis à precariedade dos hotéis-cápsula

Nos últimos anos, a Espanha vem atravessando uma crise habitacional estrutural, que expõe os limites do modelo atual de acesso à moradia e explica, em parte, a ascensão de soluções cada vez mais precárias como os hotéis cápsula. Entre 2022 e 2025, o país acumulou um déficit estimado de até 600 mil residências.
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Outro fator preocupante é a existência de 3,8 milhões de imóveis vagos, o equivalente a 14% do total do parque habitacional espanhol. Essa realidade, mais evidente em áreas rurais, contrasta com a escassez de moradias nas cidades, onde as pressões demográfica e econômica é maior.
A população jovem, especialmente, tem encontrado no mercado de aluguel uma alternativa cada vez menos acessível, enfrentando aumentos superiores a 8% ao ano, que frequentemente consomem até 44% da renda mensal dos inquilinos nas grandes capitais, de acordo com informações da AP News.
O fenômeno do turismo, altamente relevante em cidades como Madri, Valência e Barcelona, contribui para inflacionar ainda mais os valores e restringir a oferta de moradias para residentes permanentes. Estima-se que entre 25% a 50% dos imóveis residenciais nessas regiões estejam vinculados a aluguéis de curta temporada, e cerca de 40% dessas propriedades operam de forma irregular, dificultando o controle e reduzindo a disponibilidade para o mercado habitacional tradicional.
Esse desequilíbrio estrutural é intensificado pelo crescimento acelerado do número de lares. Em Madri, por exemplo, a população cresceu em mais de 140 mil habitantes em 2024, mas foram aprovadas somente cerca de 20 mil novas moradias.
Em meio a esse quadro, a população tem se mobilizado de forma expressiva, com protestos em dezenas de cidades exigindo políticas públicas eficazes e preços mais justos para moradia. Mesmo com os anúncios recentes do governo para investir cerca de 1,3 bilhão de euros em habitação social, visando erguer entre 15 mil e 20 mil novas moradias por ano, a resposta é insuficiente para a magnitude do problema.
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Hotéis-cápsula: mercado global avança com força e pode dobrar até 2030

A Espanha não é a única a ver os hóteis-cápsula ganharem força. O mercado atravessa um ciclo de expansão, impulsionado por mudanças no perfil dos viajantes e transformações nos grandes centros urbanos. Em 2022, o setor movimentou cerca de US$ 1,85 bilhão, e as projeções mais recentes indicam que o volume quase dobrará até 2030, alcançando US$ 3,97 bilhões, com uma taxa média de crescimento anual (CAGR) de 10,1%, segundo a consultoria Data Bridge Market Research.
Outras projeções de mercado, embora com números diferentes, também apontam para um crescimento robusto. A Straits Research projeta uma elevação de US$ 290,8 milhões em 2025 para US$ 575,9 milhões em 2033, com crescimento de 8,9% ao ano. Já a Zion Market Research estima que o mercado, que foi de US$ 232 milhões em 2023, chegará a US$ 456 milhões em 2032, crescendo a uma média de 7,8% ao ano.
Contudo, à medida que o segmento cresce, surgem questionamentos sobre seu papel no contexto da crise habitacional contemporânea. O Relatório Mundial de Cidades 2024, da UN‑Habitat, aponta que 2,8 bilhões de pessoas vivem em condições habitacionais inseguras, muitas em ambientes compactos e informais. O estudo relata que as cidades enfrentam não apenas falta de moradia, mas também desafios de infraestrutura e qualidade de vida.
Pesquisas em contextos urbanos como Pequim demonstram que viver em espaços extremamente reduzidos, como as cápsulas, prejudica a saúde mental, aumentando taxas de depressão entre moradores. Junto a isso, alertam que lutar contra a crise habitacional com espaços compactos pode normalizar uma moradia ultracompacta para jovens e pessoas em estado de vulnerabilidade, em vez de oferecer soluções estruturais.
O um modelo, portanto, embora inovador, não pode ser visto como solução plena para a crise habitacional, mas sim como um sintoma da urgência por políticas públicas que assegurem habitação adequada, digna e sustentável.