Inércia do G20 sobre o clima pode custar 18% do PIB global, afirma Arilson Favareto

Em entrevista, diretor científico do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento destaca as consequências da inação, que vão muito além do custo financeiro.

Por Paula Maria Prado em 20 de maio de 2025 9 minutos de leitura

Foto: Arquivo pessoal

Ondas de calor que matam, enchentes que expulsam famílias de suas casas, queimadas que sufocam cidades inteiras. Os impactos das mudanças climáticas já estão entre nós — e a inércia do G20 sobre o tema pode custar ao mundo até 18% do PIB global até 2050, como destaca Arilson Favareto, diretor científico do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), professor titular da Cátedra Josué de Castro da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisador das relações entre clima, economia e política pública.

É que o G20, grupo de cooperação internacional que reúne os países com as maiores economias do mundo, é responsável por 80% das emissões globais de Gases de Efeito Estufa (GEE), mas seguem provendo incentivos a combustíveis fósseis. O prejuízo envolve áreas como economia, saúde, perdas de lavoura e de rebanhos, déficit no turismo, além de trazer consequências que afetam diretamente a vida das pessoas.

A equação é delicada: como frear a crise do clima e, ao mesmo tempo, garantir crescimento e justiça social? Para ajudar a responder a essa questão, um grupo de 12 especialistas de áreas como mudanças climáticas, economia, governança pública, sustentabilidade, política energética e finanças produziu o relatório “A Green and Just Planet: The 1,5°C Agenda for Governing Global Industrial and Financial Policies in the G20”, sob encomenda da Presidência Brasileira do G20. O grupo que o assina é co-coordenado pela italiana Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação e Valor Público na University College London (UCL) e diretora fundadora do Instituto de Inovação e Propósito Público da UCL, e pela camaronesa Vera Songwe, fundadora e presidente do Conselho do Mecanismo de Liquidez e Sustentabilidade e membro sênior não residente da Brookings Institution (EUA).

Em entrevista ao Habitability, Favareto destaca o papel do Brasil em relação às propostas apresentadas pelo documento e os desafios de colocá-las em prática. Para ele, o custo da inação climática é alto demais para ser ignorado — e o G20 pode liderar um caminho mais justo e sustentável.

O relatório mostra que o G20 responde por 80% das emissões globais, mas segue apostando em combustíveis fósseis. O que explica essa inércia diante de uma crise que já cobra um preço humano e econômico tão alto?

Arilson Favareto: Há vários fatores. Isso envolve a força de empresas e países que hoje lucram com a exploração das fontes fósseis de energia. Também contam as disputas geopolíticas porque, na falta de um arranjo global, há o risco de que quem for mais ousado na redução do uso de fósseis, possa arcar com custos mais altos no curto prazo e, com isso, perder a competitividade. Mas o principal problema, talvez, seja a dificuldade de fazer com que governos, empresas e pessoas consigam entender a dramaticidade dos efeitos das mudanças climáticas em longo prazo. A intensificação dos chamados eventos extremos tem mudado um pouco isso, mas ainda não há uma tradução razoável dos riscos e dos custos (humanos, ambientais e financeiros) nos comportamentos, nos preços e nas estratégias de investimento.

O que está sendo colocado em risco se o G20 continuar postergando decisões efetivas?

Foto: wahyusyaban/ Shutterstock

Arilson Favareto: Não estamos falando só de economia. Estamos falando de vidas humanas – pois os eventos extremos afetam principalmente os mais vulneráveis (como no caso das secas prolongadas ou de tragédias como a do Rio Grande do Sul, que ocorreu meses atrás). Deslocamentos humanos significativos já ocorrem, motivados por mudanças climáticas em diferentes partes do planeta. Falamos também de impactos em diversas formas de vida, pois, neste momento, ocorre um processo de extinção de espécies com rápida erosão da biodiversidade. ​​​​​​

Quando falamos em “18% do PIB global até 2050”, quais os impactos concretos isso tem na vida do cidadão?

Arilson Favareto: Quem paga essa conta é o cidadão comum. E muitas vezes se paga duas vezes. Quando alguém perde uma casa em uma enchente ou quando há uma alta nos preços dos alimentos porque eventos climáticos afetam a produção – ambos os fenômenos vão se tornando mais e mais frequentes -, é a sociedade que está pagando. Quando os governos precisam gastar mais com seguro agrícola ou reconstruindo pontes e estradas devastadas por eventos extremos, também são os cidadãos que pagam. E não há dúvida de que esses custos vão subir, na mesma proporção em que se intensifica a mudança do clima.

Subsídios a combustíveis fósseis chegam a US$ 1,4 trilhão só no G20. Como explicar a persistência desse modelo de incentivo, algo sabidamente destrutivo? Estamos “viciados” em uma economia que lucra com o colapso climático?

aumento dos precos
Foto: BongkarnGraphic/ Shutterstock

Arilson Favareto: A questão é complexa porque, simplesmente, aumentar o preço dos fósseis pode elevar os custos de produção — e isso também afeta a vida das pessoas comuns. É preciso uma estratégia de transição com metas claras, progressivas e uma mudança gradativa (mas rápida!) de matriz energética baseada na limitação das emissões. Outra medida é taxar aqueles que consomem mais, porque o impacto global da ação humana é bastante desigual. Boa parte do consumo global é concentrado e não beneficia a expansão do bem-estar. Por isso, uma engenharia aprimorada da governança internacional é tão necessária – não existe “bala de prata”, soluções únicas. É preciso uma governança para a transição que envolva: limitação de emissões, taxação, financiamento, comércio internacional, cooperação entre países e proteção aos mais vulneráveis. Por isso é tão difícil avançar mais rápido. 

Menos de 3% do financiamento climático global foi para países de baixa e média rendas. Que tipo de lógica – ou ideologia – sustenta essa disparidade?

Arilson Favareto: Os países mais ricos têm mais recursos e, muitas vezes, economias mais estáveis ou mercados mais promissores. Isso acaba favorecendo a concentração dos investimentos. Mas há também uma disputa sobre quem vai liderar a transição para uma economia de baixo carbono. Estamos vivendo um daqueles momentos em que as bases de funcionamento do capitalismo global mudam. E, nesses momentos, pode haver mudanças na hierarquia entre países e economias. Fala-se em “não deixar ninguém para trás”, mas a verdade é que todos querem estar “na frente” e não perder a posição privilegiada que ocupam hoje.

O relatório fala em “governança climática desigual”. Em termos práticos, quem está tomando as decisões hoje e quem está pagando a conta dessas decisões?

Arilson Favareto: Há uma crise do multilateralismo. Com isso, o peso das decisões individuais de países, empresas ou grupos de empresas se impõem sobre as nações com menos poder e, claro, reproduzem desigualdades. A conta vai ser paga por todos, porque as mudanças climáticas são generalizadas. Mas isso não significa que a conta será paga igualmente por todos. Como sempre, grupos sociais e países mais vulneráveis terão menos condições de se adaptar ou mitigar os danos. Por outro lado, se as emissões são concentradas em países, setores e empresas, por que não começar por aí? Pode ser que, nesse momento de crise do multilateralismo, esse tipo de acordo entre um número mais restrito de partes volte à cena e seja uma forma de promover avanços.

O relatório propõe que os países mais ricos liderem os financiamentos para transições verdes. O que trava essa decisão, se é também do interesse desses países garantir estabilidade global e novos mercados sustentáveis?

Foto: Piyaset/ Shutterstock

Arilson Favareto: Embora no longo prazo todos perdem, os ganhos em curto prazo relacionados a esses investimentos fazem com que exista uma inércia, segundo a qual os recursos continuam a ir para os lugares de sempre, onde há mercados ou maior estabilidade. O caso dos EUA antes de Trump é exemplar. Condições mais atrativas associadas a uma política industrial verde naquele país acabavam sendo mais atrativas para certos fundos e empresas do que investir em países mais pobres. No caso das empresas, muitas das que exploram petróleo, hoje investem também em energias renováveis – são as soluções de tipo “e”, quando se agrega tecnologias, e não de tipo “ou”, quando se substitui uma coisa pela outra, o que deveria estar acontecendo. Isso ocorre porque a estrutura de incentivos está errada e porque a governança internacional está sem foco.

A atual arquitetura de financiamento internacional – com juros altos, dívidas crescentes e burocracias imensas – está desenhada para manter certos países fora do jogo?

Arilson Favareto: Juros altos drenam recursos que poderiam estar indo para uma transição sustentável via novas tecnologias e investimentos. A burocracia dificulta o acesso a fundos por parte de países e setores mais vulneráveis. Não sei se é correto dizer que isso é proposital para manter países fora do jogo. Mas certamente não há um esforço em colocar países mais pobres e segmentos mais vulneráveis das economias dos diferentes países dentro do jogo. Também é preciso melhorar bastante a qualidade dos projetos, mas, principalmente, os objetivos e as estratégias de transição. Isso quer dizer que financiamento é, sim, um problema, mas tampouco está claro o que financiar, com que propósito e como. É preciso, sim, discutir financiamento. Mas isso, por si só, não substitui uma definição mais clara sobre o que financiar.

O G20 pode transformar a crise climática em oportunidade de inovação, crescimento e justiça. O que falta para que essa promessa se torne realidade e não apenas retórica de cúpula?

Arilson Favareto: Primeiramente, é preciso limitar as emissões. Vai ficando cada vez mais claro que a ideia de “net zero”, baseada em emissões líquidas, tem problemas, porque a ideia de captura, que entra nesse balanço, é muito incerta. Segundo, é preciso mudar o estilo de produção e de consumo – nisso a taxação a certos produtos e serviços e o incentivo a outros é fundamental. Terceiro, para isso, é preciso rever a forma como vem se estruturando a governança global, que tem se revelado lenta e insuficiente para acelerar e corrigir o sentido da transição que, a rigor, já está em curso, mas, nos seus termos atuais, não vai resolver o problema.  

O relatório fala da necessidade de “reformar licitações e financiamentos públicos”. Isso exige uma revisão do papel do Estado. Qual seria o novo papel do setor público na transição ecológica?

Arilson Favareto: As licitações e financiamentos públicos movimentam uma parte expressiva da economia e, nesse sentido, podem induzir práticas coerentes com o que foi dito acima.

Por que estratégias industriais verdes não podem ser exclusividade dos Ministérios do Clima ou da Indústria, como aponta o relatório? Como construir uma política transversal para a descarbonização?

Arilson Favareto: Primeiramente, é preciso dizer que não se trata apenas de descarbonizar. Eu tenho dito que, nos termos atuais, há um duplo descasamento na agenda climática. Entre descarbonização e biodiversidade, porque certas soluções para baixo carbono podem levar à erosão da biodiversidade, como no caso dos biocombustíveis, tal como eles vêm sendo produzidos; e entre descarbonização e desigualdades, porque algumas soluções podem concentrar ainda mais a renda e as oportunidades, o que significa mais problemas para conciliar bem-estar e conservação. Segundo, uma transição como essa precisa fazer com que esse tipo de objetivos ético-normativos orientem o conjunto da ação governamental e os incentivos ao setor privado. Não é uma questão de se criar um ou outro programa, apenas. Porque se outros programas, outras políticas ou formas de financiamento continuarem estimulando emissões e erosão da biodiversidade, estaremos favorecendo um jogo de soma zero (ou negativa). Isso acontece hoje no setor de energia (nunca houve tanta energia renovável, mas também se expandem os investimentos em petróleo) ou no setor agroalimentar (nunca houve tantas tecnologias de conservação, mas as emissões associadas a esse setor crescem).

No Brasil, temos o BNDES. Qual o papel das instituições financeiras públicas nesse redesenho? E como evitar que virem apenas “selo verde” para negócios de fachada?

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Foto: Picture Creative/ Adobe Stock

Arilson Favareto: O BNDES e outras instituições como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e outros têm um papel fundamental porque podem induzir esse tipo de transformação. Mas também aí é importante evitar o “jogo de soma zero”. Não é só uma questão de ampliar fundos para transição verde. E, sim, tornar isso um critério a orientar o conjunto das operações, diminuindo o financiamento ao aumento de emissões e a atividades que comprometem a biodiversidade.

E se o G20 decidir continuar como está? Que cenários estamos desenhando se não houver mudança agora? O que ocorrerá?

Arilson Favareto: Caminhamos para um aquecimento superior a 2 graus. Isso trará o aumento dos eventos extremos e o crescimento dos gastos públicos para mitigar os efeitos do aquecimento e dessas catástrofes. Os mais pobres pagarão a maior parte da dívida, seja em custos monetários ou em vidas. No longo prazo, a economia tende a se tornar mais verde, já que, cada vez mais, empresas adotam medidas nessa direção. Mas o ritmo e a forma ambígua como isso é feito não evitará o agravamento da crise climática.

Leia também: Justiça climática: o que é e como afeta as cidades?

A população mundial está ciente da urgência e da escala dessa crise ou ainda vivemos em uma bolha de conforto climático temporário – e ilusório?

Arilson Favareto: Acredito que estamos em um meio termo. A consciência sobre a existência da crise é crescente. Mas ainda não há igual clareza sobre os caminhos para superá-la ou para a magnitude dos custos envolvidos na inação ou, mais precisamente, no ritmo lento e ambíguo das decisões públicas e privadas sobre isso.

Que mensagem o senhor deixaria para os jovens que estão herdando esse planeta? Ainda há espaço para esperança realista?

Arilson Favareto: Claro que há espaço. E as gerações mais novas têm mais sensibilidade para este tema. O que não se pode fazer é cair no catastrofismo, que é tão perigoso quanto o negacionismo, pois pode levar à passividade. É verdade que a situação é crítica e segue piorando. Mas também é certo que nunca tivemos um arquipélago tão rico de inovações e um engajamento crescente de pessoas, empresas e governos na agenda climática. O problema, repito, é que isso ainda é lento e ambíguo demais. Acelerar e corrigir o ritmo dessa transição é a principal tarefa dessa geração.

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