Das áreas remotas da Antártida até o topo dos prédios mais altos de Dubai, a crise climática atinge a todos. Isso não significa, no entanto, que os efeitos sejam igualmente distribuídos pelo mundo. Pessoas em situações mais vulneráveis de pobreza, miséria e fome, assim como comunidades localizadas em espaços de infraestrutura precarizada, tendem a sofrer mais com os eventos extremos do que o resto da população. E é aí que entra o conceito que tomou conta do debate sobre transição energética, com razão: a justiça climática.
A justiça climática é uma das principais pautas de jovens ativistas, como Greta Thunberg e a brasileira Amanda Costa. Foi em nome do movimento Climate Justice, inclusive, que Greta ficou conhecida, em 2018, por seu discurso emocionado na Organização das Nações Unidas. O movimento busca, de acordo com a Alana, uma divisão mais justa dos investimentos e responsabilidades no combate à emergência climática. E as cidades serão o principal espaço para que o termo se torne realidade.
O que é justiça climática?
A justiça climática procura colocar as pessoas e as questões éticas como prioridade no combate ao aquecimento global. O conceito funciona partir do entendimento de que os países e regiões com maior desenvolvimento causam maior impacto nas emissões de gases de efeito estufa, mas, ao mesmo tempo, têm uma população menos vulnerável aos estragos que o aquecimento global pode trazer.
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De acordo com relatório do Stockholm Environment Insitute, o 1% mais rico da população global causou o dobro de emissões de carbono do que os 50% mais pobres, nos últimos 25 anos. Nas contas da Unicef, os 50% mais pobres foram responsáveis por menos de 10% das emissões nos últimos anos. Enquanto isso, 3 bilhões de pessoas no mundo vivem em lugares vulneráveis à crise climática. Em outras palavras: quem está pagando os custos do aquecimento global não são aqueles que contribuíram para a devastação do meio ambiente.

A preocupação do movimento é com o “MAPA”, sigla de “Most Affected People and Areas”. São pessoas do sul global, de territórios e comunidades marginalizadas. E aí entram principalmente as mulheres negras, a população LGBTQI+, minorias raciais e as populações originárias. Colocar a perspectiva daqueles que podem ser mais afetados é essencial quando se fala de justiça e equidade.
“A mudança climática está profundamente entrelaçada aos padrões globais de desigualdade. As pessoas mais pobres e vulneráveis sofrem o impacto das mudanças climáticas, mas contribuem menos para a crise. À medida que os impactos aumentam, milhões de pessoas vulneráveis enfrentam desafios desproporcionais, como eventos climáticos extremos, efeitos na saúde, alimentos, água e segurança dos meios de subsistência, migração e deslocamento forçado, perda de identidade cultural e outros riscos relacionados”, indicou o World Bank.
Mas, e as cidades?
Os impactos das mudanças climáticas representam riscos únicos para áreas urbanas com alta densidade populacional. E, como é esperado que até 70% da população mundial viva em cidades até o final de 2030, o centro da ação climática terá que ser nas regiões mais urbanizadas. A prioridade é que os espaços urbanos consigam ajudar a mitigar os riscos de eventos extremos e proteger a vida de seus cidadãos mais vulneráveis.
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As pessoas que moram na “cidade informal”, ou seja, em espaços mais distantes dos investimentos públicos e privados, são aquelas que, invariavelmente, sofrerão mais em casos de enchentes, excesso de calor (ou frio), tufões e falta de água. No Brasil, 10% da população vivem em favelas e apenas um entre quatro moradores de aglomerações urbanas vive bem.

De acordo com o WRI Brasil, quase metade da população em 15 grandes cidades no Sul global não tem acesso a água encanada confiável, e 62% do esgoto e do lodo fecal são gerenciados de forma insegura. Mais de 1,2 bilhão de habitantes das cidades – um em cada três globalmente e dois em cada três em países de baixa renda – estão desassistidos, sem acesso a um ou mais serviços urbanos básicos.
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Só descarbonizar não é a resposta
Pode parecer um paradoxo, mas para lutar contra a mudança climática, o tema que as cidades precisam pensar menos é… na mudança climática. Reduzir as desigualdades que os moradores enfrentam no acesso a habitação digna, água limpa, saneamento básico, eletricidade, transportes e oportunidade de trabalho, indica o WRI Brasil, é uma das mais poderosas formas de se atingir uma ação climática nas cidades.
Na ótica da justiça climática, as pessoas devem estar sempre no centro.
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Se uma cidade coloca apenas o meio ambiente no centro das suas políticas, existe um grande risco de esquecer das demandas da população. Um exemplo dado pelo World Bank: políticas que expandem o transporte público ou a precificação do carbono podem tornar a tarifas de transporte público mais altas, o que pode impactar desproporcionalmente as famílias mais pobres.
“Da mesma forma, se não forem elaboradas, em colaboração com os beneficiários e as comunidades afetadas, abordagens sobre como limitar as atividades florestais a determinadas épocas do ano, existe o risco de impactar adversamente as comunidades indígenas, que dependem das florestas o ano todo para sua subsistência”, diz o World Bank.
“Buscar a justiça climática significa combater a injustiça social, econômica, intergeracional e ambiental. A interseccionalidade desses desafios deve ser reconhecida para abordá-los de forma holística. Por exemplo, alguns projetos climáticos, inadvertidamente, criam injustiças climáticas quando as comunidades locais são deslocadas por uma iniciativa de conservação ou de geração de energia renovável”, indicou a Unicef.
Justiça climática é também uma pauta de direitos humanos
No Brasil, o Ipea revelou que em 2024 cerca de 876 mil pessoas foram diretamente afetadas por enchentes e deslizamentos no Rio Grande do Sul, das quais 310 mil já viviam em vulnerabilidade antes da crise, um exemplo de como eventos extremos agravam desigualdades socioeconômicas.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) destacou, em maio de 2025, que políticas pós-desastre precisam ser pautadas pelos direitos humanos, com participação efetiva das comunidades e transparência, para evitar aprofundar as desigualdades pré-existentes.
Essa questão também vem sendo discutida na Alemanha, onde estudos sobre precificação de carbono mostraram que sem mecanismos compensatórios, como um “bônus climático”, famílias de baixa renda correm risco de sofrer impactos financeiros desproporcionais, principalmente em relação a custos de aquecimento.
No entanto, os pesquisadores destacam que esse tipo de programa, isoladamente, não é suficiente para garantir a inclusão dessas famílias na transição climática. Para que elas possam acompanhar esse processo sem prejuízo, seriam necessários apoios mais direcionados, além do fornecimento, por parte do Estado, de infraestrutura que viabilize o acesso a alternativas sustentáveis.
Povos indígenas e a proteção do meio ambiente
Os povos indígenas têm um papel essencial no enfrentamento ao aquecimento global. Guardiões de importantes biomas, como a Amazônia, essas populações protegem áreas que armazenam vastas quantidades de carbono e mantêm o equilíbrio dos ecossistemas. Ainda assim, são frequentemente ameaçados por projetos que não respeitam seus modos de vida ou direitos territoriais.
O IPCC, no seu Sexto Relatório de Avaliação, reconheceu o valor do saber ancestral indígena como parte integrante das respostas à crise climática. O documento ressalta que os Sistemas de Conhecimento Indígena e Local são fundamentais para fortalecer a adaptação climática, por meio de práticas como manejo tradicional de florestas, sítios sagrados e monitoramento de mudanças ambientais.
A Organização Internacional IWGIA destaca que esse posicionamento representa um avanço, ao reconhecer que a exclusão histórica desses povos é parte das razões para sua extrema vulnerabilidade, e enfatiza a necessidade de inclusão efetiva nas políticas climáticas.
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Perdas e danos: quem paga a conta da crise climática?
A questão das perdas e danos vem ganhando força nas negociações climáticas internacionais, emergindo como um pilar central da justiça climática e da garantia de direitos para países do Sul Global.
Em junho de 2025, durante a conferência preparatória em Bonn, na Alemanha, o Loss and Damage Collaboration estimou que as necessidades financeiras das nações em desenvolvimento para lidar com múltiplos desastres climáticos, como enchentes, secas e elevação do nível do mar, ultrapassam US$ 395 bilhões apenas em 2025, incluindo perdas econômicas e não econômicas, como culturais, identitárias e de biodiversidade.
Ainda assim, o financiamento efetivo está muito aquém. Embora os países desenvolvidos tenham se comprometido a destinar US$ 1,3 trilhão por ano até 2035, incluindo US$ 300 bilhões provenientes de verbas públicas, ainda não há um cronograma claro de distribuição. As negociações do Fundo para Perdas e Danos, criado na COP27 e agora operacionalizado com apoio do Mecanismo de Varsóvia, avançam para estruturar um modelo funcional de repasse de recursos.
Paradoxalmente, esta dinâmica enfrenta retrocessos políticos. Em março de 2025, os Estados Unidos anunciaram sua retirada do Fundo para Perdas e Danos, renunciando a uma contribuição de apenas US$ 17,5 milhões e enfraquecendo uma iniciativa que já contava com US$ 741 milhões de promessas de doações.
A decisão foi amplamente criticada por especialistas ouvidos pela The Associated Press, que afirmam que o país com maior histórico emissor de gases de efeito estufa está abandonando seu compromisso com aqueles que menos contribuíram para a crise climática. Esse movimento agrava as disparidades, pois são os países mais vulneráveis, que enfrentam eventos extremos, que aguardam compensações que raramente chegam.
Relatórios do IPCC e do UNEP destacam que os impactos de desastres têm aumentado 250% nos últimos quatro anos no Brasil, e que a lacuna entre a necessidade de adaptação climática e os recursos disponíveis varia entre US$ 215 e US$ 387 bilhões por ano, sendo que os fluxos atuais para adaptação são inferiores a US$ 30 bilhões anuais. Nesse cenário, a operacionalização eficiente do Fundo e sua capacidade de financiar iniciativas reais nos países afetados pode representar um avanço na luta pela justiça climática e pela reparação das perdas causadas por décadas de poluição e degradação.
A justiça climática reforça que enfrentar a crise climática é, acima de tudo, uma questão de equidade. Nas cidades, onde os impactos recaem com mais força sobre os mais vulneráveis, é fundamental que as ações climáticas estejam alinhadas a políticas públicas que garantam direitos básicos.
Matéria originalmente publicada em 13/02/2023
Veja também o episódio 24 do podcast Habitability: