Futuro, memória e comunidade: conheça o chinês Liu Jiakun, o novo “Nobel” da arquitetura

Projetos do arquiteto vencedor do Pritzker, o Oscar da arquitetura, contemplam vida em comunidade e conexão entre passado e modernidade

Por Ana Cecília Panizza em 29 de julho de 2025 6 minutos de leitura

Liu Jiakun
Liu Jiakun (Foto: The Hyatt Foundation/ The Pritzker Architecture Prize)

Tijolos Renascidos. O nome do projeto do arquiteto chinês Liu Jiakun não poderia ser mais emblemático. Dos escombros de um terremoto na China, ele coletou e fragmentou destroços, misturou fibras de palha de trigo e cimento e criou tijolos, que foram incorporados na construção de novas edificações. Entre elas, o Museu Shui Jing Fang (em Chengdu) e o Campus Novartis Shanghai, ambos projetos de sua autoria.

Museu Shui Jing Fang (Foto: Arch-Exist/ The Hyatt Foundation)

Sua obra, no entanto, não se limita ao reaproveitamento de materiais. É também uma forma de preservar a memória. Em 2009, ele projetou o Memorial Hu Huishan, em homenagem a Hu Huishan, menina de 15 anos que morreu na tragédia. Externamente, a estrutura inclinada e revestida de gesso assemelha-se a uma tenda temporária. Visível apenas através de um olho mágico, o interior revela um quarto rosa repleto de pertences da garota. 

Foi a partir desse trabalho entre espaços físicos que integram futuro, passado, legado e história, tendo as pessoas, suas relações e seu entorno no centro, que Jiakun conquistou o prêmio Pritzker 2025, considerado o Nobel da arquitetura. Em mais de 40 anos de atuação, exclusivamente na China, Liu Jiakun projetou instituições de ensino e culturais, espaços cívicos e edifícios comerciais, além de realizar planejamento urbano em todo o país. À frente do escritório Jiakun Architects, ele é também escritor; seu romance, Bright Moonlight Plan, publicado em 1999, pode ser interpretado como uma releitura de seu propósito. A obra traz a história de um arquiteto que planeja uma cidade do zero e promete dar nova forma ao espírito dos moradores. 

Camila Valbert (Foto: Arquivo pessoal)

Como lembra a arquiteta, urbanista e sócia no escritório Portela Arquitetos, Camila Valbert, Liu Jiakun tem um olhar que vai além da materialidade, que tenta criar identificação das pessoas com o espaço. “Ele entende toda a localidade em que o projeto está inserido, o entorno, a topografia; ele cria e provoca percepções e relações; mas, além disso, é como se ele coroasse essa arquitetura com materiais locais para gerar ainda mais a identificação nas pessoas que estão ali, criando esse senso de comunidade. Ele traz qualidade para o lugar. Alguns institutos e museus que ele criou, como também projetos de revitalização urbana e intervenções, são fortes nesse sentido: exploram a experiência de algo que é imaterial. Ele consegue chegar em algo inerente à sensibilidade”. 

Liu Jiakun e o senso de comunidade  

Liu Jiakun almeja contribuir, por meio de seu trabalho, para a igualdade social no ambiente construído a partir da criação de espaços comunitários, em contraposição ao individualismo no estilo de vida típico dos grandes centros urbanos. A ideia é, assim, harmonizar espaços aos mesmo tempo coletivos e individuais, combinando esses dois elementos aparentemente contraditórios para oferecer para as pessoas locais que ajudem a melhorar a qualidade de vida e o dia a dia, otimizando áreas urbanas densas. 

Departamento de Escultura do Instituto de Belas Artes de Sichuan (Foto: Arch-Exist/ The Hyatt Foundation)

Um exemplo é o Departamento de Escultura do Instituto de Belas Artes de Sichuan, projeto concluído em 2004, que apresenta níveis superiores salientes projetados para ampliar ao máximo o espaço disponível. Já o Bairro Cultural de Songyang, projetado por Liu Jiakun e concluído em 2020, é fruto de um projeto de revitalização de um antigo centro espiritual e cultural em Lishui, que contou com a implantação de museu, hotel, café e livraria conectados por corredores de aço.

É esse foco nas pessoas que tem sido valorizado na arquitetura. O arquiteto japonês Riken Yamamoto, que venceu a edição de 2024, também destaca em suas criações a vida cotidiana e em comunidade. Suas obras projetadas em países como Japão, China, Coreia do Sul e Suíça variam de residências particulares a complexos habitacionais públicos em grande escala. Já a edição de 2022 coroou Francis Kéré, alemão nascido na África, que procura envolver os habitantes de sua vila na construção das edificações.

“As últimas edições do Pritzker têm mostrado uma mudança de valores. Se antes ´joias de arquitetura´ – casas, lojas, igrejas, e até pequenos museus – foram apreciados enquanto programa, hoje a expectativa tem sido por projetos que agenciem instituições privadas e agentes públicos para a criação de espaços simbióticos, acomodando o coletivo das grandes massas, e não terminando em si mesmos”, comenta Felipe de Souza Silva Rodrigues, mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie e sócio do escritório que leva seu nome. 

Para Camila, tratam-se de exemplos a ser seguidos, que inspiram os profissionais da área para que a arquitetura dê respostas para as pessoas. “O prêmio sinaliza a importância de um pensamento específico de um arquiteto, mas é algo que dura, perdura por muitos anos. Todos os projetos têm que ser pensados priorizando essa qualidade de espaço e de vida das pessoas presente na obra de Liu Jiakun“, destaca ela, que também cursou neurociência aplicada à arquitetura.

Reinventar a tradição 

Jiakun é expoente da reinvenção da tradição na arquitetura chinesa. Em seu trabalho, a renovação se associa à preservação da rica herança cultural da China, guardada por templos ancestrais e palácios imperiais. Suas obras se conectam com o passado para aprimorar o futuro a partir da combinação de elementos tradicionais chineses (marcados por sutileza e minimalismo, realçando a beleza dos materiais) com soluções contemporâneas, buscando fazer frente aos desafios colocados pelos crescimentos populacional e econômico chineses, fenômeno que extinguiu aldeias tradicionais, causou degradação ambiental e levou à homogeneização da arquitetura e do estilo de vida nas cidades. 

Assim, as técnicas vernaculares chinesas se mesclam com soluções inovadoras, a exemplo do West Village, complexo multifuncional na cidade de Chengdu, onde ele usou materiais locais, como taipa de pilão, tijolo e madeira. Além de preservar a continuidade cultural, esse tipo de escolha aumenta a viabilidade e a eficiência dos processos construtivos. Ocupando um quarteirão inteiro, o empreendimento agrega habitação, escritórios, áreas comerciais e espaços culturais e recreativos. No meio disso tudo, um pátio central com paisagismo incentiva o pulsar de toda a dinâmica: o encontro da comunidade.

West Village (Foto: Chen Chen/ The Hyatt Foundation)

Mas o West Village também tem em sua composição materiais atuais como concreto aparente, que confere à estrutura principal expressividade e durabilidade, enquanto painéis de vidro dão transparência e fluidez, reforçando o fluxo contínuo entre os espaços internos e externos, conectados por uma rede de rampas para pedestres e ciclistas.

Segundo o júri do Pritzker, “Liu Jiakun busca um nível de tecnologia que não seja nem alto nem baixo, mas sim o ´apropriado´, baseado na sabedoria local, bem como nos materiais e no artesanato disponíveis. Desde seus primeiros projetos, ele rompeu com a linguagem arquitetônica vigente para introduzir qualidades de simplicidade, derivadas dos recursos disponíveis. Sua sinceridade no uso dos materiais permite que eles falem pelo que são, pois sua integridade não requer mediação ou manutenção. Também permite que envelheçam sem medo de deterioração, pois a memória coletiva está guardada neles”.

O reconhecimento do trabalho de Liu Jiakun é mais uma demonstração da valorização de uma nova visão da arquitetura que tem as pessoas e as suas culturas como início, meio e fim, tendo a China como um dos principais percussores dessa abordagem. O primeiro arquiteto chinês a ganhar o prêmio, em 2012, foi Wang Shu, que também reutilizava materiais de locais de demolição, destacando a mistura entre a arte tradicional chinesa e o estilo contemporâneo.

Para isso, como explica Camila, é necessário que cada profissional entenda a região do projeto e não imponha seu traço, sua solução, sua vontade particular. “A arquitetura não é uma imposição, é algo para ser sentido. E ela tem que fazer sentido para o local e responder para as pessoas. A arquitetura é feita para as pessoas. O tempo não deve nunca desgastar a arte. O tempo só deve aperfeiçoar todos esses espaços e a qualidade de vida das pessoas. O principal papel da arquitetura é transformar as relações e conexões de uma forma positiva, entendendo o cenário, a localidade, a região, as dificuldades que precisam resolvidas”, analisa.

Como reflete o próprio Liu Jiakun: “Sempre aspiro a ser como a água — a permear um lugar sem carregar uma forma fixa própria e a infiltrar-se no ambiente local e no próprio lugar. Com o tempo, a água gradualmente se solidifica, transformando-se em arquitetura e talvez até na forma mais elevada de criação espiritual humana. No entanto, ela ainda retém todas as qualidades daquele lugar, tanto as boas quanto as ruins.”

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