A cidade deveria ser, em essência, um espaço construído para aqueles que a habitam. No entanto, ao observarmos sua organização, percebemos que a lógica da segregação ainda dita suas formas, ruas e barreiras… algumas visíveis, outras disfarçadas no cotidiano. Quem tem direito a ocupar determinados espaços? Quem pode transitar sem ser visto como ameaça? Essas perguntas, muitas vezes ignoradas, expõem um modelo urbano que, em vez de acolher, exclui. Para Maria de Nazareth Agra Hassen, professora de Filosofia e Antropologia, compreender a cidade é também compreender os mecanismos que sustentam essas desigualdades. Com mestrado em Antropologia Social e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sua trajetória acadêmica e intelectual reflete um olhar atento às dinâmicas sociais que moldam os espaços urbanos.
Seja em pesquisas como O Trabalho e os Dias: ensaio antropológico sobre trabalho, crime e prisão, investigação realizada no Presídio Central de Porto Alegre, que lhe rendeu o Prêmio Açorianos na categoria Ensaio de Humanidades, ou em estudos sobre a relação entre Porto Alegre, o capital e a infância, Nazareth examina como a cidade pode ser, ao mesmo tempo, um lugar de oportunidades e de exclusões estruturais.
Nesta entrevista ao Habitability, ela compartilha sua visão sobre o que significa uma cidade realmente pensada para as pessoas, discute os impactos da segregação urbana e reflete sobre caminhos para tornar o espaço público mais inclusivo e acessível a todos.
O que significa, do ponto de vista filosófico, uma “cidade para pessoas”? Como podemos desconstruir a ideia de que todas as cidades já são feitas para seus habitantes?
Maria de Nazareth: Na sua origem, como aldeias, eram os habitantes que conferiam sentido a esse tipo de vida coletiva. No processo de complexificação da ideia desse agrupamento com interesses comuns, conhecido por cidade, a apropriação de sentido foi mudando. Um novo ente, ao longo do processo, se fez necessário para dirimir os conflitos dessa forma de viver que se opõe à natural. A cidade é um mecanismo artificial de modo de convivência, e, como tal, necessitou de regulação. Com a gerência do Estado, ela se torna ainda mais distanciada de uma mera junção social ditada por interesses comuns.
Há momentos na história das cidades em que Estado e habitantes têm percepções diferentes do que é melhor. E há momentos em que o Estado e moradores das cidades têm a mesma concepção do que é o melhor, mas o Estado se deixa mover por interesses escusos, principalmente os do grande capital que o mantém, mesmo em situações democráticas. Nesses momentos, as cidades são menos feitas pelos seus habitantes e mais feitas por modelos que não seriam os de sua preferência, ou que até mesmo contrariam radicalmente a sua preferência, ou a preferência de parte considerável desses habitantes.
Em que medida a estrutura urbana reflete uma visão de mundo específica? Quais valores e princípios filosóficos estão por trás das cidades que temos hoje?
Maria de Nazareth: É difícil responder a essa questão sem generalizar e, portanto, errar. As cidades variam enormemente de país para país, às vezes de região para região dentro de um mesmo país. Além disso, ainda temos as pequenas, médias e grandes cidades. A realidade de cada uma é bastante diferente em termos de valores que a sustentam. O certo é que a estrutura urbana reflete visões de mundo, e, claro, cidades onde os moradores participam mais das decisões são cidades mais representativas de suas visões de mundo. Por isso, as pequenas cidades são mais originais, enquanto as metrópoles se parecem no mundo todo. Na dinâmica administrativa, é mais provável que o morador da pequena cidade seja ouvido pelo poder público e que sua interferência no meio urbano seja mais acatada e, portanto, menos coibida. Nas pequenas cidades, a diferença de classe é menos pronunciada e há menos fossos entre as classes, o que se reflete nos ambientes de convivência e nos equipamentos urbanos.
E como você enxerga a dinâmica das grandes cidades?
Maria de Nazareth: Nas grandes cidades, por ser o oposto, o individualismo e a competição, a disputa e o conflito violento estão mais presentes. Na pequena cidade, a coletividade e seus valores correlatos, no que tem de bom e de mau, é que estão mais presentes. Quanto mais as pessoas se conhecem e se identificam, conhecem o passado e os antepassados, as famílias de origem e a história de cada um, mais o diálogo entre elas se torna possível, de um lado. De outro, inimizades históricas produzem o contrário, inviabilizam o entendimento. É o paradoxo de conhecer mais. A impessoalidade também tem seus convenientes. E, assim, cidades grandes versus cidades pequenas têm seus prós e contras. Nenhum dos modelos consegue se libertar do conflito que está na base da vida em proximidade.
Esse é um reflexo do narcisismo das pequenas diferenças?
Maria de Nazareth: esse conceito já foi bastante analisado por pensadores brasileiros como Vladimir Safatle e Christian Dunker, que analisam a lógica do condomínio apresentado às classes abastadas como a solução para viver nas cidades: os condomínios, fechados, aparentemente mais seguros, que são o ápice da segregação, que traduzem o desejo dos ricos de estarem com outros ricos, apartados da miséria e da violência urbana. Entretanto, muito cedo, onde esse tecido social seria composto por iguais, surgem as pequenas diferenças e elas se mostrarão extremamente desagradáveis e altamente desagregadoras.
O filósofo grego Aristóteles afirmava que a pólis deveria proporcionar o bem viver. Como essa visão se aplica ao planejamento urbano contemporâneo?
Maria de Nazareth: A felicidade é o propósito final para Aristóteles e, portanto, “viver bem” é tomar decisões na direção da felicidade. Nos indicadores modernos de felicidade, a noção de tempo livre muitas vezes se destaca como um fator mais fortemente associado à felicidade do que outros aspectos, como saúde, emprego, renda, casamento e religião.
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O conceito de “bem viver”, originário de povos indígenas da América do Sul, presente no debate sobre Decrescimento, tem como base alguns princípios, como solidariedade e harmonia com a natureza e o meio ambiente, e pode ser muito bem relacionado com a ética aristotélica. Essas duas ideias que podem ser fundidas deveriam ser aplicadas ao planejamento urbano desde sempre. Sem a previsão da harmonia, da reciprocidade e de algum nível de renúncia visando ao bem comum, qualquer convivência se inviabiliza.
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Então, para que as cidades realmente promovam o bem viver, a participação ativa dos cidadãos é indispensável?
Maria de Nazareth: A pólis é o local de adensamento de convivência, e não apenas convivência, longe disso, da vontade e do querer, mas é a convivência obrigatória. Na pólis, o relacionamento entre as pessoas é constante e precisa da mediação estatal na forma de regramentos que levem à maior felicidade possível, com o menor gasto energético possível e com a maior redução de danos possível. Mas nada é simples no planejamento urbano quando as visões de mundo são diferentes, e então esse ente mediador precisa da esfera do debate, do que Habermas chamou de razão comunicativa. Sem criar esferas de debate onde os cidadãos sejam chamados à razão, o planejamento urbano se apresenta vertical, surdo ao cidadão, autocrático. Seja como for, sem uma crítica profunda ao capitalismo, é difícil se pensar nesses conceitos de bem estar do cidadão. A lógica do capitalismo é manter o indivíduo centrado em atividades produtivas, e por isso ele precisa trabalhar muito e ter pouco tempo livre.
Já o filósofo Michel Foucault, falava sobre espaços de controle e vigilância. Como o desenho das cidades pode reforçar desigualdades ou, ao contrário, promover maior liberdade e inclusão?
Maria de Nazareth: Foucault produziu uma filosofia que cada dia se atualiza mais, mesmo ele tendo morrido nos anos 1980. A vigilância é uma das tônicas das cidades. O cidadão é vigiado em toda parte. Há muitas coisas curiosas nesse sentido: o sujeito mais liberal e defensor de liberdades é adepto das câmeras de vigilância com que pretende se defender da criminalidade, mas acaba constrangendo até o beijo dos namorados. Entretanto, nem vigiar e nem punir resolvem a questão da violência urbana que é outra chaga das grandes cidades. Já a segregação que a cidade promove, com o esquadrinhamento dos espaços, conceito também de Foucault, tornou a cidade mais violenta do que nunca. Dentre os vários tipos de violência, há os menos óbvios, como um tipo de calçamento embaixo de viadutos com piso que não permite caminhar e ponteiras de grade em beirais de janelas, ferro no meio de bancos. Eles são utilizados para pássaros não pousarem e para moradores de rua não sentarem ou deitarem, caracterizando a humilhação social.
Há um espaço para pobre, outro para rico e eles não devem ultrapassar suas fronteiras sob risco de morte. O pobre identificado no espaço do rico, se não estiver na condição de serviçal, com seu uniforme, pode ser morto. Seria ele um criminoso? E o rico identificado no espaço do pobre também pode ser morto. Seria ele um policial? E segue a violência simbólica dessa segmentação, crianças confinadas a espaços infantis (creches, escolas), idosos isolados em asilos, doentes restritos a hospitais, jovens circunscritos a ambientes próprios à juventude. Uma cidade que reunisse mais segmentos, no lugar de os separar, seria uma cidade mais segura, mais plural, com mais espaço de troca e de sociabilidade não estrita, mais humana.
Em muitas cidades, vemos processos de “higienização social”, afastando populações mais pobres para áreas periféricas. Como podemos garantir que o desenvolvimento urbano seja mais inclusivo e evite esse tipo de segregação?
Maria de Nazareth: Quando se fala em cidade, cidade para pessoas, cidade amigável, com frequência a periferia é esquecida, é como se ela não fosse a cidade. A periferia tem que lutar por si, porque não tem o poder público presente a não ser para perseguir, para segregar e, excepcionalmente, em período eleitoral, aquilo que conhecemos: candidatos na padaria comendo pastel, abraçando bebês e disfarçando a cara de nojo. A urbanização cidadã precisaria chegar à periferia, criar espaços de escuta porque não seremos nós que poderemos dizer o que a periferia quer e precisa. E cada uma das periferias vai ter suas particularidades culturais, seus anseios, suas necessidades específicas.
O primeiro passo é a criação de espaços de escuta, reuniões nas quais estivessem presentes para ouvir a comunidade os responsáveis por todas as esferas dos governos, com técnicos preparados e dispostos a executar os desejos e anseios das comunidades periféricas. A higienização social, a gentrificação, estão praticamente sem controle. Desde o avanço de um pensamento neoliberal, a gentrificação ocorre com apoio e sustentação muitas vezes de quem será vitimizado. E os gestores, por alguma razão, são os facilitadores da gentrificação, são seus agentes.
No seu TEDx, você cita que o episódio da pavimentação da rua onde você morava trouxe mudanças perceptíveis no uso do espaço pelas crianças. Como pequenas decisões urbanísticas, como essa, podem transformar a dinâmica social de um bairro?
Maria de Nazareth: Na rua onde eu morava, com a colocação do asfalto sobre o paralelepípedo, aumentou a velocidade média dos automóveis, e o brinquedo de rua das crianças acabou. Paralelamente ao asfalto, as grades dos prédios fecharam os limites do recuo dos prédios nas calçadas, criando gaiolas e, por alguma razão, as gaiolas não se apresentaram como local atrativo para o jogo de bola das crianças, em parte porque confina e tira a oportunidade de uma criança passante aderir ao jogo, em parte porque cria uma artificialidade, uma limitação que já não é o mesmo que estar na rua.
Tenho uma outra experiência com a questão do asfalto. Há algumas décadas, uma administração mais progressista da nossa cidade teve a boa intenção de levar asfalto às periferias. Isso valorizou as ruas e os imóveis, conferindo uma aparente urbanização. Entretanto, as serpentes asfaltadas não foram acompanhadas de calçadas, permanecendo o espaço que seria de calçadas um piso irregular com barro e pedregulhos. Com isso, os pedestres passaram a andar no asfalto. Lembro de um professor de escola pública que entrevistamos em um projeto de pesquisa da relação escola-comunidade. Ele classificou os moradores da vila como mal-educados porque caminhavam no asfalto e desapegados à vida porque tardavam a sair da frente do seu carro.
Você poderia compartilhar um exemplo de intervenção urbana que, em vez de excluir, promoveu a inclusão?
Maria de Nazareth: Na época do TEDx, mencionei as vagas-vivas e os parklets, que poucas pessoas conheciam no Brasil. Em outras ocasiões, havia quem risse e falasse que isso só funcionaria na Europa. E hoje eles existem e cumprem um pouco dessa função. Foi uma das raras e louváveis iniciativas que aconteceram recentemente na minha cidade, ainda que vinculadas a bares e restaurantes.
Pequenas cidades do Nordeste do Brasil tinham TVs em praças, instaladas numa caixa abrigada. Não sei se elas ainda existem, mas me impressionou ver as pessoas ao anoitecer se reunindo na praça para ver novela. Voltando a Porto Alegre, a administração criou pistas de skate e outros equipamentos de esporte na beira do rio. Esses equipamentos deveriam existir nas periferias, porque é lá que estão os jovens que precisam dessas iniciativas e que não têm clubes. Entretanto, elas foram instaladas no lugar nobre de contemplação do rio, elas são grandes áreas concretadas onde deveria haver solo permeável para absorção dos volumes de água dos rios e mata ciliar. A enchente de 2024 mostrou o quanto se equivocam administrações que não escutam o povo e nem os especialistas. Uma pista de skate, quadras de esporte seguras e iluminadas em uma comunidade periférica ou um equipamento para favorecer outro esporte ou arte poderiam ter um excelente impacto na formação e na sociabilidade do local.
A ideia de projetar cidades a partir da perspectiva das crianças nos remete a uma ética do cuidado, como proposta por filósofas como Carol Gilligan. Que impacto esse modelo teria para toda a sociedade?
Maria de Nazareth: A ética do cuidado é sempre importante, mas ela deve “cuidar” para não roubar a autonomia do sujeito. Tenho um pouco de resistência à noção de administrador que “cuida” da população. Eu prefiro a administração que escuta a população, que põe em debate as questões e que, se é preciso tomar uma atitude que julga correta, que isso se dê dentro da já citada ação comunicativa. As pessoas cuidam daquilo que elas ajudaram a construir mais do que daquilo que é dado a elas por alguém que não as ouviu. É preciso ouvir mais o cidadão. E, quando o cidadão tem uma opinião infundada, é preciso envolvê-lo para que conheça as diferentes opções, e possa ser convencido sem perder a liberdade de participar.
O projeto mostrado por Francesco Tonucci fala precisamente que as crianças precisam ser ouvidas, que é preciso criar esses espaços de escuta. São as crianças que dizem como querem as praças. Por exemplo, no caso de Fano, elas queriam que as praças tivessem lugar onde se esconder, elas não queriam praças em que ficam expostas todo o tempo e que não oferecem nada a aprender, que são apenas para gastar energia. Elas queriam praças onde realizar descobertas. Então, penso que o maior impacto para a sociedade aconteceria quando as pessoas pudessem dizer o que esperam ter na sua rua, no bairro, na cidade.
Existem muitas cidades ao redor do mundo que fecham ruas para pedestres e investem em calçadas largas. Como podemos priorizar essa lógica do transporte público e da mobilidade ativa?
Maria de Nazareth: A calçada larga é fundamental. As pessoas precisam poder andar umas ao lado das outras e não em filas. Elas precisam poder caminhar conversando. Elas precisam de bancos públicos para sentarem ao fazerem longas caminhadas. Elas precisam de bebedouros. Para elas e para seus animais de estimação. Elas precisam de árvores bem cuidadas, de sua sombra e seus frutos, de árvores não cimentadas. Elas precisam de beleza urbana. Elas precisam que as ruas não sejam bretes de paredões de edifícios.
Por isso, [Jan] Gehl fala dos pequenos comércios que deveriam existir nos térreos dos edifícios. Uma pesquisa feita por [Francesco] Tonucci com crianças em escolas em que se perguntava o que as crianças mais desejavam revelou que elas queriam ir a pé para a escola. As razões, as mais variadas. Uma vez tentei ir de van à faculdade onde lecionei. Foi um suplício, porque ela se desvia do caminho para buscar cada um em sua casa, manobra, aguarda, volta. Quando as crianças chegam à escola entediadas por essa longa jornada, querem extravasar a energia contida. Quando as crianças vão a pé, dá-se o oposto, elas gastam saudavelmente a energia no caminho e chegam à escola com o cérebro oxigenado e as pernas cansadas, melhor hora para sentar e aprender, não que devam ficar sentadas muito tempo na escola.
No caminho para a escola, crianças de diferentes idades interagem. Os irmãos mais velhos cuidam dos mais novos, há essa mistura de idades fundamental para a infância. A supervisão do adulto foi introduzida na ideia e por isso as cidades que ouvem as crianças criaram o “ônibus a pé” em que um ou mais adultos são “motoristas” a pé, observam e sinalizam as horas de atravessar a rua. Existem “paradas” onde passa o ônibus a pé, e os cuidadores levam as crianças até esses pontos onde as crianças ingressam na excursão. Tudo começa na calçada. Um detalhe na vida de uma cidade. Como se diz, um detalhe que vale muito, que faz muita diferença.