Responsável por mais de um quarto das emissões industriais de dióxido de carbono no Brasil, a indústria do cimento está no centro de um desafio ambiental urgente. Reduzir a pegada de carbono do setor passa, principalmente, pela substituição do clínquer – composto intermediário altamente poluente – por alternativas mais sustentáveis, como o fíler calcário, a argila calcinada e as biocinzas. Essa é uma das conclusões do relatório “Descarbonização e Política Industrial: Desafios para o Brasil (DIP-BR)”, conduzido pelo Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GIC/IE-UFRJ), divulgado pela Agência Bori. O estudo aponta que a adoção de matérias-primas de menor impacto pode cortar até 11% das emissões do setor, além de estimular a circularidade e a modernização da cadeia produtiva.
Os pesquisadores mapearam os principais atores da cadeia produtiva do cimento no Brasil e reuniram dados de estudos acadêmicos anteriores, tendências de mercado e fontes, como o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG). Segundo este último, a produção do cimento foi responsável por 26% das emissões de CO₂ do setor industrial brasileiro, representando até 2% das emissões totais do País em 2022.
Atualmente, o clínquer é produzido a partir da queima de calcário em altas temperaturas — processo que responde por grande parte das emissões de CO₂ do setor. Além da substituição do clínquer, o relatório destaca outras frentes essenciais para uma cadeia produtiva mais limpa: a transição para combustíveis menos poluentes nas fábricas e o aumento da eficiência energética dos processos industriais.
A introdução de tecnologias de captura e armazenamento de carbono também é vista como um caminho promissor, ainda que em estágio inicial no Brasil. Algumas empresas já começam a investir em métodos como a captura de CO₂ por meio da água antes de o gás ser liberado na atmosfera.
No entanto, o relatório revela que o avanço da descarbonização enfrenta obstáculos estruturais. A falta de políticas públicas com metas claras para o setor industrial e a rigidez das normas técnicas em vigor dificultam a adoção de soluções inovadoras. O documento sugere que a atualização dessas normas, com foco no desempenho e não apenas em prescrições, pode abrir caminho para a modernização.
Para falar sobre o tema, o Habitability conversou com dois pesquisadores: Julia Torracca, professora do Instituto de Economia da UFRJ, e Lucas Rosse Caldas, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e do Programa de Engenharia Civil (PEC/COPPE/UFRJ), ambos autores do documento junto de outros pesquisadores.


O cimento está em todo lugar, mas há consciência da sociedade acerca do custo ambiental da sua produção e a relação disso com as mudanças climáticas?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: Grande parte da sociedade parece não saber que os gases de efeito estufa (GEE), em especial o CO₂, são os responsáveis pelo aquecimento global e mudança climática. E, quando sabem, não fazem a associação direta de que quase tudo que consumimos demanda combustíveis fósseis e emite GEE na sua produção. Os materiais de construção, em especial o cimento, parece que fica mais longe ainda. Ou seja, essa percepção de impacto pode variar de setor a setor a depender se o produto produzido por ele entra mais como insumo para outras atividades ou se é mais um produto final, como no caso do vestuário e carne por exemplo. De todo modo, enquanto as pessoas não pensarem no ciclo de vida de todos os produtos que consomem direta ou indiretamente, dificilmente será possível mudar essa relação!
Estamos falando de 26% das emissões industriais no Brasil em 2022. Por que a indústria do cimento não integra mais profundamente o debate público sobre clima?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: Quando pegamos a emissão do cimento em relação a emissão total do Brasil ela representa em torno de 1% a 2%, pois grande parte da emissão do nosso País está ligado a atividades de agropecuária e queimadas, ou seja, atividades com origem no uso da terra. Então, acaba não chamando muita atenção. No entanto, quando olhamos a participação relativa do cimento nas emissões mundiais, esse valor passa a ser em torno de 8%, ou seja, quase 10%.
Se considerarmos o universo da indústria somente, a participação relativa é ainda maior, como você apontou, ampliando a importância em se observar de perto os segmentos considerados “hard to abate” [termo usado para definir setores da economia que, apesar de serem intensivos em energia e emitirem grandes quantidades de gases de efeito estufa, apresentam sérias dificuldades em descarbonizar seus processos].
O cimento é um dos materiais mais consumidos no mundo, podendo ser comparado à água. As pessoas precisam saber disso! Internacionalmente, a indústria de cimento recebe uma atenção especial e muita pesquisa tem sido feita para diminuir a emissão dessa indústria, inclusive no Brasil. Só precisa, talvez, relacionar esses esforços com algo mais tangível para a sociedade em geral.
A substituição do clínquer por matérias-primas alternativas, como o fíler calcário e as biocinzas, pode reduzir significativamente as emissões. O que ainda impede a adoção ampla dessas soluções? É custo, cultura e/ou regulação?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: É uma combinação de todos esses fatores, especialmente ligados à logística e à escala. É essencial que essas soluções tenham escala, pois só assim facilitarão sua difusão e barateamento. Existe também preconceito e medo de se investir em novas tecnologias. Esse investimento não é barato e o uso de novos produtos no mercado de construção deve ser acompanhado com regulação e normatização. Um ponto importante é a necessidade de discussão dessas novas tecnologias nos cursos de graduação e formação de futuros profissionais da construção.
O documento menciona o potencial da circularidade ao incorporar subprodutos de outras indústrias. É válido transformar essa prática em política pública ou mesmo em exigência regulatória?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: Acredito que os dois caminhos são válidos e importantes. Infelizmente sabemos que, sem um “empurrão” como uma exigência ou legislação, as coisas demoram muito a mudar. Esse é o caso típico de ação que requer uma atuação do Estado direcionando os incentivos. Até porque, mesmo quando existe, ainda é um processo lento (veja, por exemplo, a Política de Resíduos Sólidos). É importante também pensar estratégias na forma de incentivos. Na Europa, onde a economia circular possui uma maior capilaridade, muitos países adotam as duas estratégias.
Como o Brasil pode superar o desafio logístico da dependência do transporte rodoviário para viabilizar o uso de matérias-primas alternativas de forma eficiente?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: Seria interessante o desenvolvimento de soluções locais e regionais, até porque o Brasil é um País amplo em termos de território. Também por conta disso, a distribuição de algumas matérias-primas alternativas é bastante diferente. Por exemplo, a cinza de casca de arroz tem sua predominância na região Sul, enquanto a cinza do caroço do açaí, na região Norte. Mas, para tudo isso dar certo, é preciso ter disponibilidade adequada desses resíduos e fazer bons estudos de viabilidades técnica e financeira. É muito comum um resíduo ser muito volumoso para o seu gerador e, por outro lado, ser gerado em uma quantidade muito pequena, que não justifica a mudança do processo de produção. Essas são questões-chave.
Sobre a descarbonização, por onde o Brasil deve começar: pela política industrial, pelos incentivos fiscais ou pela revisão normativa?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: As ações precisam ser sistêmicas. Ou seja, precisa haver a coordenação de diferentes agentes do sistema para que o desafio seja coberto na sua integralidade. O esforço de descarbonização da indústria e do segmento do cimento em específico, precisa ser entendido como parte integrante de uma política de Estado mesmo, com incentivos que possam atuar tanto pelo lado da demanda, quanto pelo lado da oferta. Se pensarmos em política industrial no sentido amplo, ela própria já abarcaria ou se integraria aos incentivos fiscais e às questões normativas. Uma dimensão não pode ser vista desassociada das outras, até porque os impactos não estão.
O relatório aponta a ausência de metas específicas de descarbonização para o setor industrial. O que está em jogo quando deixamos esse tema fora da política industrial?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: A política industrial vigente, embora assuma compromissos relativos à transição energética, não possui uma meta específica de descarbonização. Claro que há esforços governamentais nessa direção, mas não está documentado como objetivo explícito de política industrial. Isso significa que estamos deixando de desenhar uma estratégia concreta que envolva a modernização e o adensamento de atividades produtivas. Descarbonizar, além de ser uma resposta necessária em um contexto de mudança climática, deve ser visto também como o próprio futuro da indústria, onde ela atua como principal ofertante e demandante de soluções tecnológicas de ponta. Não deveríamos perder essa chance.
É possível imaginar um cenário em que a captura de carbono deixe de ser promessa futura e se torne prática comum? O que falta para virar a chave?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: Para muitos casos, essa solução será a única capaz de atingir a neutralidade de carbono. A principal barreira são os custos e alguns riscos tecnológicos. Existem outras rotas tecnológicas de menor custo do tipo Captura de Carbono e Uso, como a cura por CO₂, que tendem a ser mais fáceis de serem implementadas nas indústrias de cimento e outros materiais cimentícios (argamassas, concretos etc). Já existem startups com esse foco, falta agora mais investimento e ganho de escala.
Como a sociedade civil pode contribuir para pressionar por mudanças nessa cadeia produtiva? Há espaço para o consumidor final influenciar?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: O primeiro ponto é que a sociedade precisa ter conhecimento de que a casa e os locais que ela usa na cidade são construídos com materiais que podem emitir mais ou menos carbono. Já existem certificações ou selos que falam qual a pegada de carbono de um produto da construção. Normalmente, os elementos estruturais e a base de concreto e cimento são os mais impactantes. Então, se existe uma pressão da sociedade por prédios e infraestrutura de menor carbono, a indústria de cimento e outros materiais, junto com projetistas e construtores, serão pressionados a diminuir a pegada de carbono de seus projetos.
No Brasil, temos algumas ferramentas que podem ajudar. O Sidac é uma plataforma gratuita com uma lista da pegada de carbono e energia dos principais materiais de construção utilizados no País. A CECarbon é uma calculadora que permite quantificar a pegada de carbono de uma obra de construção. Sem medir essas emissões, não será possível pensar em metas de redução e a sociedade não ficará devidamente informada.
De que forma a descarbonização da indústria do cimento pode beneficiar diretamente a população e o ambiente urbano brasileiro?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: No contexto de uma economia circular, de forma direta, na redução de resíduos destinados incorretamente que podem encontrar um caminho mais seguro de disposição final e redução dos impactos gerados por esses resíduos. Muitas pessoas são impactadas direta ou indiretamente por descartes mal projetados, além de todo o desperdício que poderia ser utilizado como insumo em diferentes segmentos.
Se avançarmos com as mudanças necessárias hoje, como será a indústria do cimento no Brasil em 10 ou 20 anos? O que muda na vida das pessoas?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: As mudanças necessárias podem em um primeiro momento trazer um impacto negativo, por aumentar um pouco o custo de produção do cimento, o que será sentido em toda a cadeia, inclusive no preço de compra de moradias e outros produtos de construção. Por outro lado, de forma positiva, caso forem contabilizadas as externalidades ambientais negativas ligadas, principalmente, à disposição incorreta de resíduos, poderá existir recuperação de paisagens, melhoria dos locais localizados no entorno direto das fábricas e outros impactos indiretos.
E se não fizermos nada? Que riscos corremos – enquanto País, enquanto sociedade – ao manter o modelo atual de produção de cimento?
Julia Torracca e Lucas Rosse Caldas: Para responder a essa questão de forma mais adequada é necessário fazer uma avaliação mais completa de todo o setor industrial e outros correlatos como o de energia, florestal e de toda a cadeia da construção civil e infraestrutura. No entanto, há aí um desafio competitivo importante. Como as principais potências econômicas estão investindo em formas de reduzir a pegada de carbono do cimento e produtos correlatos, o Brasil pode ter a sua imagem e relações comerciais prejudicadas caso fique estagnado nesse sentido, ainda mais por ocupar um lugar de destaque em relação aos países da América Latina e dos BRICS, por exemplo.
Podemos pensar também que todo o esforço de descarbonização da cadeia do cimento requer o investimento em tecnologia e sofisticação da atividade produtiva que, no geral, estão associados a ganhos de produtividade e impactos positivos em outros segmentos associados à cadeia. Sob o ponto de vista da sociedade, no limite, estamos falando de habitações que terão por detrás um processo de produção mais limpo e isso tende a se tornar um valor cada vez mais importante.